Ela se interessou por música desde cedo, tendo aulas de piano aos quatro ou cinco anos de idade. Começou a compor suas próprias músicas, e se formou numa universidade de prestígio. Embora seus planos fossem de ensinar música, uma proposta de emprego na Capcom mudou completamente o rumo de sua carreira, acompanhado de um certo receio de seus professores e família, que haviam investido numa universidade de alto custo e não conseguiam entender porquê ela aceitaria um emprego para trabalhar com música numa cultura tão inferior e desvalorizada. O nome dela era Yoko Shimomura, e ela aceitou o emprego mesmo assim.
No último sábado, dia 2, estive à convite da Square Enix na “Kingdom Hearts Orchestra – World of Tres”, que passou por São Paulo em sua turnê mundial (ano passado também tivemos uma edição). O concerto contou com as mais vibrantes e inesquecíveis músicas da franquia sendo executadas pela Orquestra Sinfônica Villa Lobos, com 100 músicos e coral e conduzida pelo Maestro Adriano Machado, responsável também pelo Video Games Live e Star Wars in Concert no Brasil. Acompanhando no piano, estava Elio Di Tanna, que tem performado em toda a turnê, além de outras como Final Fantasy VII: A Symphonic Reunion.
O Espaço das Américas não possuía uma acústica tão boa ou assentos tão confortáveis quanto o Teatro Bradesco – onde ocorreu a Kingdom Hearts Orchestra do ano passado – então a platéia mais ao fundo ficava mais com o som dos instrumentos processados através das caixas de som do que com a acústica em si, mas nada que impedisse de aproveitar o show em todo seu esplendor.
Após sermos agraciados com Dearly Beloved na versão de Kingdom Hearts 3 como introdução ao espetáculo, lá estava ela: Yoko Shimomura tomou o palco para dar boa noite a todos e se apresentar (o que ela fez, com muito esforço e carisma, em português do Brasil), apresentar o evento e agradecer o apoio dos fãs. A apresentação seria dividida em duas partes, tendo um intervalo de 15 minutos entre elas, e com as músicas em sincronia com cenas dos principais acontecimentos da série exibidas num grande telão. Com isso, o show poderia então começar.
A primeira parte consistiu num grande resumo dos principais acontecimentos e composições de todos os jogos da série anteriores a Kingdom Hearts 3, seguindo sua ordem de lançamento. A ênfase ficou nos títulos numerados – Kingdom Hearts I e II – considerando que seus spin offs não possuem muitas composições originais, mas diversos remixes das músicas destes dois.
Começando pela sombria e impactante Destati, revivemos as aventuras de Kingdom Hearts, Chain of Memories, Kingdom Hearts 2, 358/2 Days, tivemos Coded com uma pequena participação, o grandioso Birth by Sleep, Dream Drop Distance, e um medley que uniu o jogo mobile Union χ, seu filme Back Cover e um pouco de Birth by Sleep 0.2 – A Fragmentary Passage, encontrados na coletânea 2.8 de PS4. Por fim, a orquestra performou “Diabolic Bash” – uma sequência com os mais icônicos temas de batalha contra bosses da série até então.
Este primeiro segmento foi, ao mesmo tempo, enérgico e nostálgico, levando os fãs rapidamente numa grande viagem pelos mundos, amigos, inimigos, desafios, alegrias e tristezas vividas numa dezena de títulos que a franquia deu origem nos últimos 17 anos – idade que a própria Shimomura fez questão de destacar no início.
Após o intervalo, todos correram de volta aos seus assentos para o Gran Finale: Todos os games da série até agora fazem parte da “Dark Seeker Saga”, a história do grande vilão Xehanort que, enfim, culminaria no combate final entre 13 cavaleiros da luz e 13 cavaleiros da escuridão em Kingdom Hearts 3. E era essa épica conclusão que estávamos prestes a reviver através de sua música.
A segunda parte começou com a incrível versão orquestrada de Face my Fears, a música de abertura do game feita por Utada Hikaru em parceria com Skrillex. A música então nos levou pelos mundos de Hércules, Toy Story, Ratatouille e Pooh (Twilight Town), Enrolados, Monstros S.A., Frozen, Piratas do Caribe, Operação Big Hero até chegar, enfim, ao Cemitério das Keyblades, onde se deu o enorme e emocionante confronto final. A melhor parte do game foi também a melhor parte do show, com as épicas aparições, confrontos e resoluções dos principais personagens da série acompanhadas por algumas das mais intensas composições executadas naquela noite. A batalha final de Sora, Donald e Pateta contra Xehanort foi a única que contou com algumas cenas de gameplay no telão, enquanto os oponentes se digladiavam.
A performance de Kingdom Hearts 3 se encerrou com o pós créditos, na cena em que o Mestre Eraqus conta a Xehanort sobre um “outro jogo” (o primeiro teaser de um possível futuro projeto que há no game), mas as emoções não pararam por aí.
Após encerrar a história de toda a saga, veio o maior desafio para quem segurou as lágrimas até então: a orquestra performou Simple and Clean em sua versão orquestrada, sob uma montagem inédita com várias cenas do relacionamento de Sora e Kairi, desde a infância até a cena pós créditos de Kingdom Hearts 3, com os dois sentados numa árvore, frente ao pôr do Sol de Destiny Islands; cena que foi contraposta com os dois também vendo o pôr do Sol no píer da ilha quando pequenos, no primeiro Kingdom Hearts. Em seguida, Shimomura voltou ao palco para agradecer novamente e pedir aos fãs que continuem a apoiar a franquia, mas dessa vez tomou o piano para apresentar “Rhapsody in Tres for Piano, Chorus and Orchestra” junto com a Sinfônica Villa Lobos. Tratava-se do arranjo dos créditos de Kingdom Hearts 3, mas os créditos exibidos no telão eram de todas as pessoas que trabalharam na Kingdom Hearts Orchestra – World of Tres. Se isso não fosse suficiente, fomos presenteados com um “bis”, e o encore não era nada mais, nada menos que a versão orquestrada de Don’t Think Twice, a música tema de Kingdom Hearts 3 feita por Utada Hikaru.
No dia anterior, ao dizer para os meus pais que eu já tinha um compromisso no Sábado, precisei explicar para eles, que estavam tendo dificuldade em entender, como funcionava uma “orquestra de videogame”. O mesmo ocorreu quando disse que faria Design de Jogos na faculdade, ou quando pedia um jogo de aniversário, e acredito que o mesmo aconteça com os inúmeros cosplayers que encontrei por lá, ou com os fãs, streamers, colecionadores, pro players e qualquer outro que tenha pelos games o mesmo apreço e interesse, mas que, assim como foi para Yoko Shimomura um dia, decidiram trilhar esse caminho por paixão. Embora a Ásia e alguns outros lugares do mundo já estejam bem à frente, os jogos ainda enfrentam um grande estigma de serem uma “cultura inferior”, alternativa ou infantil demais, ainda mais ao lado do cinema, por exemplo, ou da própria música.
Mas se essa cultura “inferior” continuar a nos permitir viver tantas aventuras, conhecer (e ser) tantos personagens e pessoas diferentes, experimentar inúmeras emoções, e criar e apreciar o encontro de tantas proezas artísticas – como a música – então eu também decido escolhê-la mesmo assim.
Agradecemos a Square Enix pelo convite para conferir a Kingdom Hearts Orchestra – World of Tres.