Diablo II IV

Não é segredo que a minha jornada com a franquia Diablo é um tanto quanto diferente do que foi para muitos fãs old school: por ser um incorrigível jogador de consoles, minha primeira experiência com a série foi com Diablo III, lá no meu PS3. A paixão foi instantânea, e provavelmente este foi o jogo que mais horas acumulei não só na plataforma como eu toda a minha vida até então. Eu já sabia que esta era a terceira iteração do capiroto, compreendia que o hype sobre o game era insano graças a tudo o que veio antes, mas de certa forma tinha passado um tanto quanto alheio a esse universo.

Esta realidade precisou mudar no momento em que eu exaltava o quanto eu estava completamente seduzido pelo jogo com outras pessoas, que invariavelmente me provocavam dizendo que se eu gostei do terceiro é porque ainda não tinha vivenciado Diablo em sua essência. Não teve jeito, e foi necessário fazer uma das poucas exceções, até então, na minha convicção de só jogar na TV da sala – a outra era minha fixação quase doentia por SimCity 2000 – para entender o que esse jogo que já parecia datado, a essas alturas, tinha de tão especial a ponto de causar uma certa rejeição (ou ao menos indiferença) em relação aos saudosistas. E, bem, eu entendi.

Diablo II, mesmo já sendo um jogo fruto de seu tempo, era dotado de uma capacidade única em tornar aquele mundo um lugar de pura opressão e pessimismo. Se o seu sucessor me dava uma certa ansiedade empolgada pela próxima catacumba, este me exigia quase que um ritual de preparação emocional e psicológica, tamanha a carga de tensão que uma simples caverna mal iluminada causava. Uma experiência das poucas que me cobrava esse vínculo não simplesmente só com a história, mas com o mundo que se moldava a minha volta. Enquanto antes eu ia curtir descompromissadamente os cantos longínquos antes de me aventurar pelas missões principais, aqui eu realmente estava envolvido com o que estava desmoronando e sabendo que era minha responsabilidade interromper o mal maior. Não à toa, na época da análise da versão Ressurected há quase dois anos, eu não pestanejei em afirmar que foi um dos jogos, mesmo que eu o tenha descoberto tardiamente, que me moldou como jogador.

Também não é uma coincidência que a Blizzard tenha oportunamente o recolocado no mercado meses antes de lançar o mais novo capítulo da saga. Toda a campanha de marketing não se furtava de nos levar a essa relação direta, algo que foi se confirmando conforme víamos novidades sobre o game, vídeos de gameplay, pistas da narrativa e assim por diante. Não é raro encontrar, na época dos testes fechados (inclusive nossas no texto de preview), afirmações de que o jogo se parecia, em termos de ambientação e tonalidade, muito mais com o segundo que com o terceiro game, reafirmando um compromisso de retorno às raízes. Eu mesmo, ainda que fosse inevitável encontrar semelhanças com a modernalização do terceiro jogo principalmente em se tratando de jogar no console e não no PC, sabia que, de alguma forma, lá nas primeiras reuniões de brainstorm, havia um claro objetivo de trazer o clima de 20 anos atrás de volta, se aproveitando de todas as benesses da modernidade.

Outro sinal bastante evidente deste movimento está logo na premissa. Ainda que se construa sobre os escombros do que sobrou do mundo pós Reaper of Souls, último grande conteúdo narrativo do terceiro game, Diablo IV em nada dependia da compreensão do que veio imediatamente antes. As primeiras cenas sequer se preocupam em fazer uma ponte direta entre uma coisa e outra, e a nova ameaça pode, muito bem, seguir de onde o segundo jogo tinha nos deixado sem sequelas no entendimento da trama ou mesmo na compreensão do universo de Diablo. Não é randômico que grande parte de nós jogamos Diablo II, e não o III, pouco antes de Diablo IV, graças à estratégia da própria Blizzard, excluindo, obviamente, o game para dispositivos móveis (Diablo Immortal) que tem claramente uma outra meta.

Jogar ambos em um intervalo de tempo tão pequeno – eu ainda estava com Ressurected instalado quando comecei a me aventurar por Santuário nos primeiros betas de IV – trouxe uma sensação de continuidade genuína, e ao mesmo tempo, um movimento de evolução quase que natural. O inventário parecia tratar dos mesmos equipamentos, mas sem aquela complicação do espaço ocupado diferenciado; a organização do mundo em hubs bem localizados era uma necessidade, e a economia do jogo parecia privilegiar os exploradores mais do que os negociantes; e as características de MMO não influenciavam a experiência solitária do exército de um guerreiro só. Eu até me surpreendi com um clima mais iluminado das primeiras horas do novo jogo, mas só para ter um impacto maior quando a coisa se torna cada vez mais sombria.

Outra grande novidade na franquia funcionava, de certa forma, para atualizar a sensação de amplitude que o segundo jogo se mostrara pioneiro em seu tempo. Se hoje nós conseguimos olhar, de uma forma mais distanciada, para uma estrutura de missões encadeadas que revelam pouco a pouco o mundo em bolsões exploráveis, Diablo II era, na média, um grande vislumbre do que seria uma exploração mais livre, diferente da linearidade roteirizada de outros games dominantes da época. Na comparação com seus contemporâneos, havia uma sensação de liberdade tão grande que Diablo III, neste aspecto, sequer mexeu, tamanha era ainda a relevância desse desenho de mapa. Os tempos mudam, os mundos abertos cada vez mais abissais se tornaram uma regra no mercado, e para se atualizar, Diablo IV encontrou seus meios de quebrar as paredes invisíveis e criar sua própria versão disso, sem abrir mão de suas características mais reconhecíveis. Os desavisados podem até questionar – mas peraí, Diablo já não era mundo (quase) aberto desde sempre? – Agora é, mas para garantir a mesma sensação de outrora.

Diante tudo isso, ainda me é mais latente que é no próprio traço onde as referências são mais explícitas. São os guerreiros mais sisudos, as criaturas mais grotescas que ficam no limiar entre o sugerido e o gore, o ambiente mais esquálido, coisas que me dizem o quão Santuário é algo bem diferente do que seu título levaria a crer. A própria construção do fantástico medieval e a sua relação com religiões e mitos ocidentais trazem um tratamento mais amadurecido e menos deslumbrado do espetáculo relativamente otimista de Diablo III. Até os diálogos e textos, considerando inclusive a interpretação da dublagem original e a brasileira, se mostram bem distintas no que se refere a intencionalidades. É como se não houvesse qualquer resquício de alegria mesmo na melhor das situações.

Assim como pode ser visto em muitas franquias ditas de terror que fizeram um movimento de aproximação com a ação mais leve nas últimas décadas afim de seduzir um público mais amplo, há aqui uma óbvia e bem-vinda retração que, ciente de quem é o seu público, compreende que concessões podem descaracterizar aquilo que de mais especial havia em suas origens. Diablo IV não renega seu antecessor e, ao contrário, se apropria de muitas de suas grandes qualidades, mas nem por isso se desvia dos objetivos de honrar o legado que a marca construiu décadas atrás, aquilo que a tornou um dos grandes pilares da história dos videogames. Repaginado, modernizado, atualizado e consciente de que seu público envelheceu, mas continua se renovando, Diablo IV é mais do que um aceno para seu passado, mas sim uma nova pedra fundamental nas estruturas do gênero que ele mesmo definiu principalmente com – olha a surpresa – Diablo II. Sem receios, posso dizer: que bom!

Winz.io