Jimbaori

Neste trabalho, temos a oportunidade de conhecer jogos produzidos por pessoas diferentes, com visões distintas do mundo, e por vezes, encontramos uma perspectiva visionária que vai para muito além do que nosso conceito de realidade nos faz crer. Gilson B. Pontes, mente por trás de Jimbaori: The Onin War e de outros clássicos instantâneos do nosso tempo como o lendário Ashigaru: The Last Shogun do qual já tivemos a honra de falar aqui no site, certamente terá o seu legado sob olhares gentis em um futuro distante, e espero estar lá, de camarote, para presenciar o reconhecimento que sua obra merece.

Na contramão da pasteurização industrialista recente de um oriente feudal nas mais diversas mídias, como visto em Ghost of Tsushima, no mais recente A Ascensão do Ronin ou até naquele cinema esquemático de Akira Kurosawa, Jimbaori: The Onin War consegue transpor para as telas toda a crueza de um mundo inóspito, horroroso, vazio e sem sentido, de chão duro e vegetação rala, colocando nossa heroína solitária sem nome, tal como uma versão de Clint Eastwood se ele usasse uma katana em seus westerns, em uma jornada de redenção e justiça que desafia o espaço e o tempo. Não importa o nome dos pobres coitados de mesmo rosto a morrerem sem manifestar uma palavra, eles precisam ter paz no além-vida.

Jimbaori: The Onin War Director's Cut

Se o mundo real, porém, não conta com as benesses de saltos de cinco metros de altura, nem de cavalos que vem de lugar nenhum com um simples assobio, esta intrépida guerreira não terá vida fácil. A espada é tão pesada quanto sua responsabilidade com os mais fracos, e dois movimentos é tudo o que ela precisa para expurgar o mal do mundo. Não se pode pular com uma espada em chamas na mão, já diriam nossas avós, então porque seria diferente em um jogo cuja relação com a realidade confunde nossas mentes e corações? Precisamos entender que a fantasia vendida por estes enlatados das grandes corporações videogamísticas nos deixou moles e mimados. O mundo é tão duro quanto o chão pisado pelos pés descalços de uma verdadeira heroína.

Esta visão única  não poderia ser tão bem representada se não fosse a perspicácia da utilização pontual de uma textura árida, granulada e sem cor, tal como era a Coréia do século XVI. As cores em alta definição de Sekiro: Shadow’s Die Twice ou os artifícios pirotécnicos de Nioh até podem parecer bonitinhos para esta geração leite-com-pêra, mas nós, pessoas com mais experiência, sabemos que as chamas de antigamente distorciam o ar enquanto afiavam nossas armas, fazendo com que a Lua incendiada pareça só uma ameaça distante e sem sentido. Nem mesmo os esqueletos gigantes que habitavam o mundo naquele tempo poderiam fazer frente ao terror do brilho roseado da extensão do corpo de um verdadeiro ronin.

Jimbaori: The Onin War Director's Cut

Toda a caracterização da guerra retratada no game ganha contornos ainda mais sofisticados a cada nova incursão que o jogador, totalmente imbuído pela personalidade complexa deste complexo avatar, com quem por vezes podemos nos confundir, precisa enfrentar de ladinho. Seríamos nós mesmos, lutando contra nossos próprios demônios, ali presentes naquela tela? Poderíamos nos despir de nossas máscaras ocidentais para vestir o manto de um verdadeiro guerreiro em busca da pureza? Parafraseando um grande pensador japonês, a flor tem que ser de cerejeira, mas as vestes de um verdadeiro samurai têm que ser jimbaori!

Esta ambientação imersiva, temperada com a mistura das batidas pesadas dos tambores coreanos com o farfalhar das folhas se rendendo ao vento impiedoso, nos envolve com os sons emitidos pelo DualSense, que vibra intensamente a cada passo dado pelo demônio errante que nos espreita, nos deixando inebriados, quase embebecidos com tamanho agenciamento. Recomendo, para uma experiência ainda mais aprofundada, valorizar os aspectos quadridimensionais do game, ligando um ventilador de frente com seu rosto e instalando o seu PS5 do lado de fora de casa para sentir o sol escaldante ou a chuva torrencial tocando a sua pele enquanto o ar em movimento a arrepia. Não há sensação melhor, creio.

Jimbaori: The Onin War Director's Cut

Em um ciclo de eternos recomeços, mortes e a mais absoluta desgraça, nossa jornada parece interminável em um ritmo que faz doer as nossas entranhas, sem descanso, sem espaço para pensar ou sentir, só sofrer, algo que não poderia ser interrompido por qualquer interferência externa, e por isso o jogo, tal como a vida, não tem pausa. Se você precisa ir ao banheiro durante uma jornada tão visceral, certamente não está apto a enfrentar os perigos que virão pela frente e deve se render às próprias fraquezas. Desista, entregue-se à morte, e aí sim poderá atender a visita que toca a sua campainha, ou ao menos garantir um pouco da sanidade mental que ainda lhe restar. Seja fraco se assim desejar. Ou então continue, mostre que está pronto para quaisquer provações, porque este jogo irá testá-lo até o limite.

Traduzir Jimbaori: The Onin War (na sua versão Director’s Cut) em palavras é uma das tarefas mais difíceis que já recebi em minha vida de redator. Por isso, permito-me o livramento de não emitir uma nota, ou qualquer veredito parecido, como fazemos com outros games mundanos, porque no final das contas, não se pode quantificar a arte. Eu não seria capaz de valorar a Monalisa, Guernica ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, assim como não posso fazê-lo com as as criações de Gilson B. Pontes. Não seria justo com a experiência única que vivi, muito menos com o tamanho deste legado para toda a nossa sociedade. Qualificar o inqualificável ainda está para além da minha vã capacidade. A maioria dos jogos são para se jogar. Este é feito para se sentir.

Jimbaori: The Onin War Director's Cut

Se uma vez eu não tive medo em dizer que Ashigaru: The Last Shogun é Gilson B. Pontes e Gilson B. Pontes é Ashigaru: The Last Shogun, não tenho dúvidas em cravar agora que Jimbaori: The Onin War é Ashigaru: The Last Shogun e Gilson B. Pontes é Gilson B. Pontes. E tenho dito.

Recomendação:

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