Jogos de micro e de macro gerenciamento de unidades e recursos com temática náutica não são lá tão raros assim, e não faz tanto tempo que falamos aqui no site sobre King of Seas, por exemplo, que tem um foco grande no combate naval e na prática da boa e velha pirataria, mas que traz algumas similaridades interessantes com Port Royale 4, game de simulação es estratégia produzido pela Gaming Minds e publicado pela Kalypso Media que é o foco desta análise. Se os primeiros jogos da franquia – o primeiro de 2002 e o segundo de 2004 – foram exclusivos dos computadores – tivemos já o terceiro desembarcando no saudoso PS3 e agora temos uma nova edição também para consoles atuais, mais especificamente, Playstation 4 e Playstation 5.
Essa herança das origens da marca são evidentes em todos os aspectos da produção, que vão desde a interface, que claramente é muito mais responsiva e otimizada para o uso de mouse e teclado; até a própria organização das atividades, da administração de suas posses e da estruturação de menus e submenus. Dito isso, é fundamental entender que há um esforço bastante louvável em transportar o jogo para um modelo diferente de controle e que esse trabalho, mesmo com suas limitações, é bastante satisfatório, mas que, ao mesmo tempo, pode ter contribuído para a simplificação de algumas mecânicas, algo que pode agradar alguns jogadores, principalmente os de primeira viagem, mas que pode ter tornado aquilo que Port Royale tinha de especial em uma coisa um tanto quanto amorfa e genérica.
Antes de mais nada, claro, melhor falar um pouco mais sobre do que se trata o jogo. Em Port Royale 4, assumimos o papel de um mercador cuja especialidade é basicamente comprar e vender mercadorias em um sistema comercial entre cidades litorâneas caribenhas do início do século XVII, com níveis de controle que podem ir desde a produção em terra firme de matéria-prima e de produtos manufaturados até o transporte e comercialização com cidades aliadas, além de ações de defesa contra eventuais saqueadores, ou até de atuação como os próprios corsários contra nações coloniais rivais. O jogador, assim, assume o papel de articulação de diferentes embarcações e frotas, rotas comerciais, construção e manutenção de infraestrutura, e para animar um pouco as coisas, de batalhas em mar aberto por turnos.
O vídeo que acompanha essa análise, por escolha nossa, trata do trecho de tutorial do jogo que aborda didaticamente cada um desses elementos, a não ser batalhas navais, e como cada atividade funciona. É um bom indicador de como funciona cada um desses aspectos, que serão 90% de todo o tempo que você passará jogando Port Royale 4. Logo de início, é importante deixar evidente que este é um jogo bastante voltado ao trabalho administrativo e, diferente de outros simuladores, como Tropico 6, Sim City, e Anno 1800 (este último já bem menos conhecido do público geral), serão poucos os momentos de ação verdadeira e de tensão, seja com ataques inimigos e desastres naturais, seja com intempéries econômicas.
Isso porque a máxima do jogo (e talvez de todo o sistema capitalista) é comprar na baixa e vender na alta para gerar lucro. Não, não estamos tecendo qualquer crítica ideológica ao game – ou a qualquer outro setor da sociedade – e esse mandamento é praticamente um mantra pregado desde os primeiros cinco minutos nos próprios tutoriais. Logo no início, seja da campanha, seja do modo livre, você começa modestamente, com uma única frota, mas não demora muito para que amplie suas posses. Ao começar as negociações, é bastante intuitivo descobrir quando uma cidade tem sobras na produção, por exemplo, de grãos, mas falta de algodão, e aí com um pouquinho de paciência, encontrar compradores para essas mercadorias em outro porto.
Conforme as rotas vão se estabelecendo, o balanço naturalmente e com bastante tranquilidade se torna positivo, possibilitando que o jogador seja mais ousado, comprando novos navios, estabelecendo novos acordos e criando núcleos automatizados que fazem o trabalho braçal por conta própria sem muitos sobresaltos. Não demora para que percebamos que depender da produção de terceiros pode ser algo instável e aí, nas regiões onde temos o controle político – há algumas atribuições que dependem de permissões especiais do vice-rei que são liberadas conforme se atinge alguns marcos de importância para a coroa – temos a possibilidade de nós mesmos estabelecermos fazendas e fábricas para produção de mercadorias, espaços para armazenamento de excedentes, e mesmo infra-estrutura para melhoria da vida e da satisfação da população.
Portanto, diferente de outros games onde a estrutura de exploração e expansão marítimas são derivados dos objetivos em terra firme, aqui o caminho é o contrário, verticalizando o sistema comercial da região e assumindo um papel político relevante depois de assegurar um relativo controle das águas internacionais. Ou seja, começamos como pequenos comerciantes que fazem a ponte entre diferentes cidades e ilhas do que se convencionou chamar de Caribe ainda em tempos coloniais, mas nossa atividade pode migrar tanto para terras sob nosso domínio (ainda que subordinados a um poder político maior), construindo instalações de produção agrícola ou de produtos finalizados, como tecidos, roupas e bebidas, estabelecendo estruturas mais tradicionais de um ambiente pseudo-urbano, como áreas residenciais, bares, igrejas, hospitais e tudo o que outros jogos já nos ensinaram; ou até para atividades menos lícitas, assumindo nós mesmos a pirataria em nome do rei. Seja como for, temos algumas boas escolhas para onde estarão direcionados os nossos esforços braçais e intelectuais.
Obviamente, o crescimento atrai atenção e ficam cada vez mais frequentes as abordagens para pilhar nossas riquezas. As mecânicas para combate assumem, nesses instantes, a atenção do jogador. Temos aqui um modelo por turnos em que o cenário se torna um tabuleiro com células hexagonais. A meta, claro, é derrotar as embarcações inimigas antes que elas causem danos mais severos à nossa frota. De forma objetiva, é daqueles sistemas simplificados onde quem pode mais, ou seja, tem mais poder de fogo e/ou estruturas mais fortes, chora menos, e há algumas variáveis que influenciam nessa determinação de força, como especialidades do capitão contratado, tripulação, quantidade de canhões e tipo de embarcação. Outra coisa que traz um elemento mais estratégico às batalhas é o desejo de nada que seja seu afunde. Afinal, é melhor perder 2/3 dos dois ou três navios da frota do que perder um dos barcos inapelavelmente. Afinal, dá pra arrumar (mesmo não sendo barato) algo bem arrebentado, mas não dá pra recuperar o que se afundou.
Com uma descrição como essa, pode até parecer que o jogo é muito mais dinâmico do que realmente é. O problema é que os pontos de tensão são espaçados demais, mesmo nas dificuldades mais elevadas. Talvez as maiores dificuldades que eu tenha tido nas poucas dezenas de horas em que pude experimentar o ritmo do jogo são a repetição contínua e a falha, a médio e longo prazo, da automatização. Não me entenda mal, é possível sim criar rotas comerciais muito efetivas e deixar que o jogo trabalhe por você, mas para chegar a esse estado, é necessário estudar bem cada porto, entender quais são as forças e quais são as fraquezas de cada localidade, e se programar para chegar lá bem para lucrar. Criar um caminho lógico pode ser bastante trabalhoso e, para ser bastante sincero, enfadonho. E em algum momento, todo o trabalho pode começar a enfraquecer pela valorização ou queda de alguma commodity, sendo necessário repensar suas rotas, suas estratégias, suas prioridades.
E aí entra a questão da repetição: ou você fica horas simplesmente montando e ajustando rotas, o que fica ainda mais trabalhoso conforme se cria uma frota maior e com várias rotas em paralelo; ou você assume a rota principal de forma manual para ter certeza que seu dinheiro está sendo investido da forma certa, comprando produto por produto no preço mais baixo, vendendo no preço mais alto, e assim por diante. No começo, tudo parece bem divertido, mas logo a coisa parece ficar patinando no mesmo lugar. É como se estivéssemos pagando algum tipo de penitência para enfim chegarmos ao ponto de fazer coisas novas, ganhar confiança diplomática, que nos permita melhorar instalações, administrar outras cidades, ter permissão de saque a outras embarcações, construir estruturas mais complexas de produção, e assim por diante.
Falando dessas permissões, na vida real nós temos um costume comum de reclamar da burocracia para empreender, com taxas, documentos, prazos, mais taxas e tudo mais, mas em Port Royale 4 a coisa não é muito diferente, mesmo tendo sido simplificada na comparação com as versões anteriores. Não basta ter o dinheiro para investir em algum projeto, é necessário cumprir algumas missões especiais para receber autorizações e chancelas, e muitas vezes tais missões necessitam de investimentos financeiros e de tempo que são exatamente os recursos que você usaria de outra forma não fossem as obrigações. Ou seja, a liberdade, algo que eu prezo muito nesse tipo de jogo, é um tanto quanto limitadora, mesmo jogando no Modo Livre. A caixa de areia, por assim dizer, tem roteiro com sérias amarras.
Outra recomendação importante, aliás, é exatamente explorar os modos de uma forma mais organizada. Partir inicialmente para o Modo Livre pode não ser a melhor escolha, a não ser que você seja um veterano da franquia e esteja bem acostumado com o gênero, ou então se realmente gostar de um bom desafio misterioso. Mesmo que seja possível escolher níveis de dificuldade – que basicamente determinam com quanto dinheiro começamos e o quão duras serão as negociações e batalhas contra piratas – mesmo nas dificuldades menores o jogador poderá entrar em um looping infinito sem descobrir bem para onde progredir. A campanha – ou campanhas, porque há algumas disponíveis, assumindo as diferentes potências coloniais da época, com certos objetivos específicos cada – é muito mais adequada para entendermos os melhores caminhos, a melhor sequência de ações para se tornar influente, respeitado e finalmente conquistar a soberania comercial da região.
Se as questões de gerenciamento sofreram uma simplificação acentuada na comparação com o último game da franquia, a parte visual é outro elemento que passou por uma grande reformulação. Não que Port Royale 4 seja um deslumbre estético, e nem mesmo consegue ser o mais belo dentre os jogos do gênero, mas houve uma clara e evidente atenção ao aspecto técnico audiovisual, com melhorias significativas nos modelos dos barcos – há uma diversidade interessante deles que ajuda a entender suas diferenças e potencialidades – nas localidades e até na iluminação e textura da água. O mesmo vale para a interface, com um bom trabalho tipográfico e de diagramação, ainda que a iconografia e a organização de sub-páginas careça de um refinamento melhor para a navegação com controles.
Mesmo o aspecto sonoro ganhou algumas belas nuances, com canções temáticas que lembram a sensação aventureira de produções como Piratas do Caribe, só que sem a grandiloquência megalomaníaca de uma produção de ação hollywoodiana. É muito instigante poder ouvir um belo trabalho de ambientação, com uma mixagem dos sons da natureza, como cantos de pássaros, ondas tranquilizantes e outros ruídos que agregam vida ao lugar. Se a movimentação humana não parece uma qualidade visual – mesmo no ponto mais próximo do zoom, não se vê as pessoas andando, trabalhando, vivendo suas vidas, a exceção de um ou outro balão de reclamação aqui e acolá – essa vivacidade está muito mais presente na construção da parte sonora. Aqui vale experimentar jogando com um bom headset não pela grandiosidade, mas pela sutileza do design de som.
A soma de todas estas características – um visual melhorado, uma jogabilidade voltada aos elementos mais sérios da administração de negócios, um sistema de progressão bastante burocrático e cheio de barreiras e uma contextualização histórica com óbvias licenças poéticas mas cheias de bons detalhes para os mais atentos – fazem de Port Royale 4, mesmo a franquia celebrando quase 20 anos de existência, uma bela porta de entrada para os entusiastas do jogos de simulação e administração, porque mesmo com muitas coisas com as quais lidar, tudo é relativamente acessível e de fácil compreensão, desde que se tenha atenção à forma como o jogo ensina o que deve ser feito e à resultados das nossas escolhas.
Ao mesmo tempo, pode decepcionar fãs de longa data que apreciavam a maior riqueza de detalhes e variantes dos anteriores, sobretudo as do segundo jogo, como também quem espera vir de outros jogos similares e estiver buscando mais ação, disputas marítimas intensas ou algo do tipo. O jogador vai se ver desafiado muito mais a criar um sentimento de imersão emergente – eu mesmo continuo a minha saga para me tornar o maior produtor de bebidas recreativas dos sete mares – e somente com essa meta auto-estabelecida vai se ver negociando seus produtos até ver o sol nascendo aqui do lado de fora. Se não é essa a sua vontade, se não é esse o jeito que você gosta de jogar, pode ser que este não seja um jogo para você, ou que seja alg para questionar as suas expectativas, já que você pode até ficar ansioso por uma abordagem inimiga e por um bom conflito, mas vai se ver, na maior parte do tempo, estudando correntes marinhas e torcendo para o preço do algodão melhorar na região norte do mapa.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Kalypso Media.
Veredito
Port Royale 4 traz boas soluções para o gênero e certamente agradará muita gente que tem interesse pela administração de recursos, sistemas comerciais de época e o tema náutico como um todo. Mas é importante saber que é um jogo muito mais burocrático do que aventureiro, tendo muito mais de bastidores do que de ação.
Veredict
Port Royale 4 brings good solutions for the genre and will certainly please many people interested in resource management, period commercial systems and the nautical theme as a whole. But it’s important to know that it’s a much more bureaucratic than an adventurous game, having a lot more backstage than action.