Culpa, tradicionalmente, descreve uma percepção de responsabilidade por se fazer algo – ou por deixar de agir – e que tem como consequência um mal causado a si mesmo, a outra pessoa ou a uma comunidade inteira. Enquanto sentimento, descreve um certo vazio angustiante, um incômodo que, por vezes, pode ser desesperador e se desenvolver, em muitos casos, até em distúrbios mentais e emocionais. Não é, portanto, um tema simples de se tratar, seja qual for o veículo, a mídia, ou a forma narrativa. E exatamente por isso, games que se arriscam a tratar desta temática com respeito não são lá muito comuns. Neversong é uma destas produções que surgem vez ou outra, que conseguem trazer sensibilidade sem parecer pretensioso ou arrogante demais.
Trata-se de um projeto nascido de financiamento coletivo, até então intitulado Once Upon a Coma (título que ainda aparece em alguns cantos do projeto), que pretendia dar prosseguimento às ideias do autor, Thomas Brush, iniciadas em uma proposta em formato flash, um game chamado simplesmente de Coma. É uma obra, ainda que conte com uma série de ótimos artistas dentre seus desenvolvedores, bastante autoral, com uma assinatura marcante, algo também raro, mesmo dentre produções independentes. E, talvez exatamente por isso, saiba bem o tamanho de seu escopo e como aproveitá-lo para servir ao assunto.
Em um resumo mais direto, Neversong é um jogo de plataforma sidescroller onde controlamos uma criança chamada Peet que, recém acorda de um estado de coma, percebe que sua melhor amiga Wren está desaparecida. Não tarda para que ele se recorde de não ter conseguido fazer nada para evitar que ela fosse sequestrada por algo muito além da sua compreensão e encontros ao longo dessa jornada lhe darão ainda mais dados para que esta história – e o que veio enquanto ele estava inconsciente – fiquem mais claras em sua mente. Rapidamente ele consegue sua melhor ferramenta, um belo bastão de beisebol, e parte em busca de uma salvação. Mas ela não se dará como ele imagina.
Dizer mais do que isso sobre a história do jogo poderia estragar a experiência de quem quiser se aventurar até o assustador Blackfork Asylum, mas é importante salientar que a estrutura narrativa do jogo, mesmo que em síntese esteja baseada em níveis que se abrem conforme o jogador adquire novas habilidades, como em incontáveis outras produções, é talvez o maior e mais delicado trunfo da produção. Contando com uma narração em versos rimados (muito bem localizados, em texto, para o português, vale destacar) temos uma poesia nos guiando, estabelecendo um tom ora sombrio, ora doce, contando não só eventos e acontecimentos, mas principalmente preenchendo as lacunas emocionais que Peet precisa enfrentar antes de seguir em sua busca.
Aqui, a narrativa encontra no traço (que poderia muito bem acompanhar uma produção baseada em um encontro entre Neil Gaiman e Stephen King) um fortíssimo aliado. Com um misto entre a cor e a sobriedade, entre o lúdico e o sombrio, entre a sutileza e o assustador, as escolhas estéticas do jogo se apoiam em estabelecer um clima de horror psicológico, fugindo do lugar comum. Não espere aqui inimigos grotescos ou apelo gore. Ao contrário, são poucos os inimigos que enfrentamos durante toda a jogatina, e nem de longe eles tem traços feitos pra chocar. Na verdade, o arrepio na espinha vem muito mais de ver um adulto com uma faca em mãos atrás da janela em uma noite tempestuosa do que qualquer outro apelo gráfico.
A banda sonora, contudo, é o aspecto artístico que se eleva ao protagonismo, não só pelas belas composições musicais ou pela ambientação minimalista e, ao mesmo tempo, cheia de nuances e sutilizas, mas principalmente porque assume um papel preponderante dentro de todo o jogo, sendo ela mesma quase que uma personagem. Não à toa, nosso primeiro vislumbre do jogo é exatamente um piano de calda, o qual ainda não fazemos ideia para que serve, mas que rapidamente dá o tom de completude da jornada, visto que já nos primeiros minutos do jogo (que você pode conferir no vídeo que acompanha essa análise) entendemos que é necessário buscar passagens de canções para seguirmos em frente em nossa busca, e que para isso, teremos que enfrentar grandes chefes.
Ao todo, são basicamente 3 grandes bosses que darão a possibilidade de termos os principais instrumentos para alcançarmos o fim dessa aventura. Afinal, como seguir adiante sem um skate, um guarda-chuvas e um bastão cheio de espinhos, não é mesmo? Também encontraremos outras ferramentas para vencer certos obstáculos e, claro, não podemos esquecer de uma inseparável amiga que nos acompanhará e nos dará forças para sempre continuarmos, mesmo nos piores momentos. Ir e voltar em alguns cenários para abrir espaços antes inacessíveis é parte da experiência. Essencialmente, um metroidvania.
Não espere, todavia, um daqueles jogos de plataforma pautados em incontáveis puzzles e na exaustão de suas mecânicas. Neversong está longe de ser um game desafiador de fato, e exceto por um ou dois pontos onde a precisão de movimentos e a sagacidade são realmente necessários para avançar, dificilmente o jogador se vê enroscado no avanço. As mecânicas de combate são tão eficientes quanto básicas, com apenas um botão de ataque (que pode ser direcionado) e inimigos relativamente simples de se vencer. Mesmo as batalhas de chefe não são complicadas, e o troféu que exige zerar o game sem morrer não parece nem um pouco distante. Não é difícil descobrir o que deve ser feito e, uma vez que isso acontece, também não é difícil de executar.
Se os chefes de fase tem lá suas peculiaridades e doses de criatividade, os inimigos comuns são certamente o ponto mais baixo do jogo. Sem qualquer carisma e personalidade, muito menos a qualidade artística vista em todos os demais aspectos do game, são genéricos, bobos e simplórios. Alguns andam, outros pulam, outros voam, mas todos são bastante sem sal, com padrões de ataque preguiçosos, e parecem estar lá só para preencher algum trecho para que não atravessemos sem parar para olhar os belos cenários ao fundo. A coisa melhora na segunda metade da campanha, mas não tanto assim. Exatamente por isso, o sistema de batalha é impreciso e não exige qualquer técnica ou preocupação. Basta que não se queira morrer e pronto, nada de estresse.
Somado a isso está o tempo da campanha em si, bastante curto. Se excluirmos a possibilidade de o jogador enroscar em um ou outro ponto, é um jogo para se fechar em 4 horas com tranquilidade. Para os speedrunners, o troféu de finalizar o game em menos de 1 hora é perfeitamente possível uma vez que se conhece os caminhos. Ainda que isso garanta que a passagem do jogador nunca se aproxime de um esgotamento ou da repetição, também parece um tanto quanto frustrante ao não explorar de formas diferentes e mais criativas os instrumentos e habilidades conquistadas, principalmente na segunda metade, quando se pode contar nos dedos das mãos os momentos onde se é necessário utilizar recursos como o já citado guarda-chuva.
Coletando fragmentos de luz, é possível melhorar a saúde do personagem com corações extras e vencer os inimigos (até mesmo os mais comuns) repõe esse recurso e, somando tudo isso, a sensação de perigo real é quase nula. Claro, uma bobeira aqui e outra ali, principalmente na reta final, podem até complicar um pouco, mas para a maioria dos jogadores que já passaram por games desta natureza, não há preocupações. A sensação de desconforto é, mais uma vez, muito mais uma percepção sensorial da narrativa do que um elemento real de jogo. Sim, você poderá sentir arrepios e calafrios como reação natural, mas esqueça a adrenalina de uma luta bem feita, de uma vitória merecida.
Portanto, não é no volume, mas na densidade onde estão as melhores características do jogo. Mesmo curto, o jogo apresenta uma série de NPCs interessantíssimos e que se apropriam dos clichês iniciais para criar algo novo. Se temos ali alguns arquétipos, como o melhor amigo, o atleta, os caras descolados, e por aí vai, logo tudo fica muito menos polarizado e interessante. Os diálogos trazem poucas opções significativas, e a maioria delas só ajuda a saber um pouco mais sobre aquele mundo estranho e que, claro, não é exatamente o que parecia ser. Então, uma sugestão para quem pretende se aventurar no game: dê atenção aos diálogos, que fogem da armadilha de querer ser mais do que são e que, mesmo assim, dizem muita coisa.
O grande charme de Neversong está, sem dúvidas, na atmosfera imersiva que ele oferece, e mesmo curto e sem oferecer grandes desafios, temos uma experiência narrativa muito particular, ao mesmo tempo fofa e perturbadora, daquelas que vão ficar martelando a cabeça por boas horas depois de desligar o videogame. Se em um primeiro momento o jogo lhe parecer mais uma daquelas aventuras juvenis para salvar a garota indefesa do monstro, espere mais um pouco. Peet não é um herói clássico, ou pelo menos não pretende sê-lo. Coragem, talvez, mas culpa e angústia certamente o acompanharão em sua busca.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Serenity Forge.
Veredito
Neversong é uma bela e sensível viagem de um garoto em uma busca que vai muito além da jornada do herói. Com um estilo artístico muito particular e uma atmosfera que flerta com o horror psicológico de forma bastante criativa, tem no combate e no desafio quase inexistente seus pontos mais fracos e na construção delicada da narrativa sua melhor qualidade.
Veredict
Neversong is a beautiful and sensitive journey of a boy on a quest that goes far beyond the hero’s journey. With a very peculiar artistic style and an atmosphere that flirts with psychological horror in a very creative way, it has in the combat and in the almost nonexistent challenge its weakest points, and in the delicate construction of the narrative, its best quality.