Por medidas questionáveis e um resultado inesperado, a campanha de Mighty No.9 no Kickstarter será lembrada como um modelo “do que fazer e não fazer” para futuros projetos de financiamento coletivo. Após arrecadar mais de 3.8 milhões de dólares, de um desenvolvimento conturbado e de diversos adiamentos, o polêmico jogo de Keiji Inafune chega ao mercado, mas não da forma que os fãs e apoiadores imaginavam.
Parecia um projeto dos sonhos, em que nada podia dar errado. Produzido pelo pai de Mega Man, desenvolvido pela Inti Creates (responsável por Mega Man Zero, Mega Man ZX, Mega Man 9 e 10) e com o apoio financeiro de milhares de fãs, Mighty No.9 seria a resposta para o descaso da Capcom e para revitalizar o gênero que Mega Man consolidou anos atrás.
Mas a cada conteúdo relacionado ao projeto que era divulgado, era evidente a preocupação dos fãs. Os constantes atrasos para o lançamento só pioraram a situação. Mighty No.9 talvez seria melhor recebido pelo público caso não carregasse o peso de representar uma série tão querida como Mega Man. Ainda assim, desvencilhar o jogo de Inafune de Mega Man não o livraria da mediocridade técnica, artística e da falta de criatividade.
De perspectiva “2.5D”, Mighty No.9 decepciona em diversos campos, mas a qualidade visual é o que mais desaponta. O primeiro protótipo do jogo destoa bastante da versão final do game – um downgrade similar aos "casos Ubisoft". Além de possuir uma iluminação muito mais avançada, a versão inicial apresenta melhores modelos poligonais e um fundo mais elaborado. Uma ilusão que provavelmente enganou muitos dos apoiadores no Kickstarter.
O produto final tem gráficos fracos e uma direção de arte questionável. Alguns chefes possuem designs interessantes, mas a aparência do protagonista Beck (o mesmo vale para diversos outros personagens) é abominável. Os cenários são simplórios e utilizam-se de técnicas baratas, faltando o polimento que fora exibido no protótipo.
A animação no game é boa, contudo deve muito nas cutscenes. Embora rasa e infantil, a apresentação da história é empobrecida pela locomoção estranha e artificial. Mighty No.9 também precisava de maior polimento no PS4 – existem muitos bugs e problemas de framerate são constantes.
No estágio de Pyro, explosões provocam uma queda notável na taxa de quadros por segundo. No de Cryo, o reflexo das superfícies trava o jogo a 40 fps. Em cenários perto do fim do game, explodir diversos inimigos ao mesmo tempo acarreta em um intenso slowdown (decorrente de apenas um dígito na framerate). Tais inconsistências comprometem o input das ações e atrapalham o jogador de maneira significativa em um jogo de plataforma/ação como este, que exige muita precisão.
Da longa lista de decepções em Mighty No.9, a trilha sonora é outro aspecto que falhou ao resgatar o legado de Mega Man. Não são ruins, mas também não são expressivas, apenas decepcionantes. Há a possibilidade de alterar as músicas para chiptunes, aproximando mais da música dos Mega Man 8 bits. A dublagem acompanha o padrão infantil da história. É um trabalho decente, mas sem profundidade. É uma narrativa com apelo a crianças e jovens e, por vezes, com diálogos de tom mais leve, característicos de animes ou desenhos infantis, que tentam preservar o humor.
O ponto de partida da trama em Mighty No.9 é um misterioso defeito que atinge os robôs e faz com que eles se tornem hostis e rebeldes. Sem saber exatamente a causa do problema, o Dr. William White manda Beck investigar outros locais e o paradeiro dos demais Mighty Numbers.
A história e o gameplay são similares à dos outros Mega Man e o desenrolar da jornada acontece exatamente da mesma forma. Falta criatividade, mas pelo menos é preservada a fórmula que os fãs tanto apreciam. Existe um estágio introdutório e, em seguida, oito fases/chefes são disponibilizados. O jogador pode acessar os estágios na ordem que quiser e, ao finalizar cada um, Beck adquire um novo poder.
Ainda que Mighty No.9 possua tantas imperfeições, o sistema de gameplay não é um deles. Não é inovador o suficiente, mas é basicamente o que os fãs esperavam. Um Mega Man tradicional com uma nova mecânica – a absorção por dash. É possível derrotar os inimigos do jeito tradicional atirando até destruí-los, no entanto, para jogar de forma eficiente, o jogador precisa enfraquecer o inimigo e então usar o dash para absorver o Xel (material da composição de um robô).
Absorver diversos Xels consecutivamente rendem novos poderes-bônus para Beck e, usando essa ação no tempo certo, a contagem do combo aumenta. Quanto maior o combo, maior a pontuação e, consequentemente, melhor o rank ao final de cada estágio. A mecânica de absorção por dash traz um novo dinamismo para a fórmula de Mega Man e incentiva o replay, a fim de conquistar melhores pontuações ao fim de cada estágio.
Itens clássicos como o Energy Tank estão de volta, mas são recebidos como uma recompensa na absorção de Xel. Cada inimigo possui uma cor específica de Xel, garantindo poderes relativos à cor (verde – velocidade, vermelho – ataque, etc.). Itens tradicionais como vida extra e recuperação de HP ainda existem, mas upgrades como os da série Mega Man X estão ausentes. Isso acarreta em mapas mais lineares e que pouco recompensam a exploração.
O desafio é agradável e na medida certa, dificilmente os veteranos do gênero conseguirão passar das fases sem morrer algumas vezes. Existem armadilhas e inimigos bem posicionados, é comum ver o jogador “tropeçar” em obstáculos por falta de cuidado. A batalha contra os chefes, é, sem dúvidas, o aspecto mais divertido do jogo. É imprescindível que o jogador use bem o dash para desviar de golpes e saber quando atacar para absorver o Xel de cada Mighty Number.
Infelizmente, um dos chefes mais divertidos (Ray, rival de Beck), faz parte de uma DLC paga. Ray também pode ser controlado na campanha principal, assim como a personagem Call em um momento específico. Ambos possuem movimentos e armas próprias, diversificando do gameplay usual com Beck.
A campanha é curta, mas também nesse caso, é algo esperado para um jogo que resgata a estrutura de Mega Man. Todavia, existem diversos modos alternativos, como missões VR, corrida online para dois jogadores, entre outros extras. É um game também dedicado para jogadores hardcores – estão disponíveis Rankings/Leaderboards, além de dados que facilitam speedruns. O conteúdo de Mighty No.9 é satisfatório, mas é difícil dedicar tanto tempo com um jogo que peca em tantos aspectos.
Veredito
Mighty No.9 não é um desastre, ou um jogo ruim. Diante de tanto hype negativo, faz-se necessário esclarecer que o game possui suas qualidades. No entanto, em meio a tantas expectativas, é impossível não se decepcionar com o prometido sucessor espiritual de Mega Man. É um jogo que deveria ser muito mais do que o entregue, especialmente se tratando dos elementos estéticos. Também faltou inovação e cuidado ao polir o game. Mesmo sendo um grande fã de Mega Man e de seu estilo de jogo, Mighty No.9 não me trouxe nenhuma experiência memorável. É uma recomendação válida aos fãs do robô azul da Capcom, desde que tenham consciência que MN.9 não estabelece marco algum dentro do gênero.
Jogo analisado com código fornecido pela Deep Silver.