De tempos em tempos, surgem alguns jogos que se revelam verdadeiras experiências sensoriais cuja avaliação vai para muito além de aspectos mais objetivos, como gráficos, jogabilidade ou estrutura narrativa. Journey talvez seja o maior exemplo-clichê disso, mas está longe, claro, de ser a única referência. Ainda que assuma uma roupagem um pouco mais tradicional, Hoa se mostrou, para mim, algo nessa categoria.
Logo em seus primeiros segundos, Hoa nos apresenta a forte influência de uma mitologia oriental das menos populares, a vietnamita, e conhecemos uma pequena e singela fada em seu vestido vermelho, adormecida e navegando a esmo em uma folha por águas desconhecidas e, ao chegar em terra firme, inicia uma aventura por um reino estranhamente familiar. A cada novo passo, nossa heroína vai (re)encontrando um pedacinho de sua história, e como jogadores, vamos desvendando esses fragmentos junto com ela. É como aquelas boas histórias onde o protagonista sofre de algum tipo de amnésia ou algo assim, para que somente no fim tudo o que acontecera antes fique realmente evidente para ele e para nós.
Por meio de uma estrutura de progresso bastante linear, não demora para que entendamos as mecânicas básicas do jogo: começamos com as habilidades de caminhar e de saltar para superar obstáculos. Em alguns momentos, haverá a necessidade de encontrarmos soluções criativas e contarmos com alguns recursos a mais disponíveis no ambiente, como os simpáticos aliados que parecem nos conhecer de muito tempo atrás, que vão desde besouros, joaninhas e caramujos que nos servem como degraus para uma plataforma mais alta até criaturas elásticas como verdadeiros trampolins.
Cada mundo do jogo, se assim podemos chamar, conta com um formato bastante direto: coletar cinco borboletas espalhadas e escondidas pelos cantinhos do cenário e iluminar totens que despertam os principais NPCs do lugar. Uma vez que isso é realizado, o chefão da fase – ainda que não se comporte como um inimigo, muito pelo contrário – nos reconhece e nos concede uma nova habilidade e a passagem para o próximo nível. É deste modo que aprendemos o salto duplo, a possibilidade de mover blocos pesados, de quicar em superfícies flexíveis e até voar. Nada que seja muito complexo ou realmente profundo, mas que diversifica um pouco o sistema de gameplay a ponto de oferecer ferramentas para o jogador lidar com o que vem adiante.
O grande entrave nesse aspecto é que o jogo nunca chega a exigir muito destas habilidades, tampouco qualquer combinação mais elaborada delas. Ao contrário, cada novo aprendizado é cobrado de forma muito tímida, pontualmente nos minutos seguintes, sendo que algumas delas são usadas literalmente uma única vez. Claro que cada um desses movimentos facilita um pouco as coisas adiante e, uma vez aprendido, por exemplo o salto duplo, dificilmente se aposta no salto simples, mesmo em distâncias menores, mas ainda assim, o jogo desperdiça aquilo que ensina em trechos muito específicos e somente neles.
Hoa, quando se trata das mecânicas e do desafio que propõe ao jogador, nunca chega a ir muito além do básico, com alguns picos específicos. Quando ensina, em dado momento, a saltar sobre insetos que se movem quando tocados, traz passagens que pedem mais atenção e uma certa prática. Depois disso, nunca mais há qualquer trecho onde a agilidade desenvolvida ali é testada. Quando ensina a resolver quebra-cabeças empurrando caixas, há alguns puzzles pontuais que vez ou outra exigem um pensamento lógico mais esforçado, mas ainda assim o jogo consegue ser bastante acessível para públicos de várias idades, mesmo para quem não tem costume com games de plataforma. A platina, aliás, para os mais atentos à lista de troféus, é facilmente conquistada em uma única campanha sem qualquer esforço, com algo em torno de 2 a 3 horas.
Essa simplicidade, a princípio, pode frustrar os mais experientes que esperam algo novo e desafiador de um jogo de plataforma 2D de progressão lateral, gênero que cada vez mais se renova com ótimas produções independentes lançadas na última década, mas o fato é que o jogo não é sobre isso. Não espere, portanto, nenhum tipo de sistema de combate ou algo parecido. Quando muito, teremos um ou outro inimigo mecânico intruso que fica chutando para empurrar, mas não há embates, não há enfrentamentos. A mensagem de Hoa, se é que podemos esperar uma, é exatamente o contrário e bebe muito de uma ideia filosófica da não-violência e da busca pelo equilíbrio.
A história do game, em si, fica completa somente na cinemática final, exibida por meio de uma montagem que mistura animação e construções imagéticas estáticas, dando forma a muitos eventos que já havíamos imaginado a partir de pistas e dicas recebidas ao longo da jornada. O final, contudo, se abre para a leitura e, principalmente, para o sentimento do jogador, e não tem qualquer pretensão gananciosa que não a de envolver emocionalmente sem cair em clichês melodramáticos demais. Hoa é sensível, singelo, humilde em suas aspirações, e provavelmente por tudo isso seja tão potente.
Essa suavidade pode ser percebida também em cada aspecto do projeto artístico do jogo em suas diferentes camadas. Com uma trilha musical cheia de nuances e delicadezas, um piano gentil que lembra acordes de filmes como Up: Altas Aventuras em seus momentos de maior ternura, Hoa nos embala quase que instintivamente para um mundo de conto-de-fadas colorido, solar, cheio de brilho, mesmo em passagens mais sombrias. Texturas naturais são o grande forte do estilo estético do game, mas quando precisa investir no metal, nas texturas industriais, o faz com extremo capricho.
Dos enquadramentos que mais parecem obras de arte em aquarela sobre a natureza ao design de todos os personagens que surgem no mundo da nossa protagonista, há um cuidado artesanal no traço, mesmo em modelos e objetos tridimensionais com textura cel shading. Há uma mistura de técnicas que funciona harmoniosamente, sem exageros, sem sequer elementos de HUD para poluirem a tela, a não ser aquele lembrete de que o triângulo abre o mapa no canto superior direito. Não há barra de vida, pontuação ou tempo, nada disso importa para Hoa.
Tecnicamente, o jogo não é perfeito, contudo. Há um ou outro engasgo em certas passagens de cena, e houve alguns momentos onde a realização de uma tarefa simples bugou e acabei demorando algum tempo até ter certeza de que não era eu que tinha deixado de fazer alguma coisa. Em outra passagem, acabei enroscando onde não deveria e como o salvamento é automático e não há como voltar a um estado anterior, quase precisei recomeçar tudo do zero. Por sorte, acabei me livrando ao apertar todos os botões em desespero. Nada grave, nada que comprometa verdadeiramente, mas há algumas arestas a serem aparadas.
Outra questão que não se trata de um defeito propriamente dito, mas que demanda um certo costume, é o direcionamento no momento de saltos. O jogo tende a responder mal quando se tenta acertar lados quando já em movimento no ar, então por vezes acabamos perdendo a distância por um atraso nesse feedback. Entender isso acaba se tornando algo corriqueiro, mas principalmente nas primeiras horas – e você poderá ver como isso me afetou no vídeo que acompanha essa análise – há uma necessidade de adaptação e costume. Como dito, o jogo nunca chega a ser muito exigente na maioria do tempo, então essa questão não será nada demais. Talvez tenhamos algumas quedas a mais do que gostaríamos, mas nunca mais do que isso.
Hoa é, sem sombra de dúvidas, uma experiência bastante curta, muitas vezes rasa em termos de jogabilidade, mas que conta com um estilo artístico bastante particular e uma história intimista de amizade com subtexto bastante pertinente, ainda que não exatamente original, das questões entre a natureza e a intervenção da tecnologia, por vezes se apropriando, por outras subvertendo o maniqueísmo pueril das histórias infantis. Se por um lado é uma aventura rápida demais, por outro parece investir em um ritmo que garanta que jamais haverá um esgotamento do interesse do jogador. Até a localização para o português, nesse caso, trabalha para que seja um tempo de puro relaxamento e zero estresse.
Do design de níveis econômico ao mapa didático, é como se o jogo se esforce, o tempo todo, para que nos sintamos sempre confortáveis. De alguma forma, é o jogo indicado para quem só quer relaxar e se envolver; por outro lado, aquilo que pouco incomoda nesse meio que preza pelo desafio e pela busca da superação corre o risco de não ser marcante o suficiente. Felizmente, pude experimentá-lo em um momento onde ele me foi muito acolhedor e realmente me senti comovido pela história tocante e sem frescuras.
A falta de colecionáveis ou incentivos para voltar àquele mundo pode ser um problema para o fator replay para a maioria das pessoas. Revisitei o jogo em mais duas campanhas, uma para entender melhor coisas para essa análise e outra para diversão pura em família, mas compreendo que esse não será o perfil de muita gente. Ainda assim, é uma recomendação fácil para quem compreende o seu objetivo. Nem todo jogo precisa de dezenas de horas para ser significativo, nem toda experiência precisa ser punitiva e difícil para oferecer satisfação. Hoa trata da percepção, de um diálogo interno, de uma vivência lúdica pouco comum dentre os videogames. E que bom haver jogos assim.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela PM Studios.
Veredito
Hoa propõe uma experiência intensa, sensível e cheia de sutilezas, um conto-de-fadas divertido e confortável. Com uma duração bastante curta para os padrões atuais, nunca chega a explorar todas as suas potencialidades no que tange a jogabilidade, mas é tocante, belíssimo e uma verdadeira vivência sensorial cheia de personalidade.
Veredict
Hoa proposes an intense experience, sensitive and full of subtleties, a fun and comfortable fairy tale. With a very short duration by today’s standards, it never gets to explore all its potential in terms of gameplay, but it is touching, beautiful and a true sensory experience full of personality.