Karate Kid é das franquias de filmes de ação e aventura juvenil dos anos 1980 (e início dos anos 1990, já que o tal Miyagiverso também considera o quarto filme, de 1994, como parte do cânone oficial) mais características e nostálgicas. Está tudo lá: adolescente que sofre bullying dos valentões da escola, que aprende a se defender, consegue chamar a atenção da garota mais popular – e namorada do seu grande nêmesis – e no final consegue se superar, vencer os desafios, compreender os ensinamentos de seu mestre e dar uma bicuda na cara do vilão, com direito a um pop rock que gruda na cabeça por dias, e encerrar a coisa toda com um monte de gente aplaudindo.
Cobra Kai, 24 anos depois do filme original da franquia, surge como uma resposta um pouco – só um pouco – mais complexa, mostrando o que aconteceu com aqueles mesmos personagens depois dos eventos narrados no filme, principalmente pelo ponto de vista do outrora antagonista. Como uma produção original da iniciativa do Youtube Red em criar conteúdos mainstream originais, o seriado, hoje sob os cuidados da Netflix, encontrou seus tom e público, atualizando alguns conceitos para os dias atuais, mas mantendo toda a ambientação narrativa oitentista que lhe confere um sentimento um tanto quanto anacrônico, e consegue fazer disso uma qualidade, um diferencial.
Tal como um produto tipicamente de décadas atrás, não é surpreendente que se tenha pensado também em seguir uma prática muito comum na geração 16 bits: os jogos licenciados e providencialmente sincronizados, bastante utilizados como estratégia de manutenção e fixação de marcas em evidência em outras mídias. Toda essa introdução, muito mais do que um relato sobre o que levou à produção de Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues, nos ajuda a entender várias das escolhas técnicas e criativas que estão presentes no game, um beat ‘em up nos moldes clássicos que se apropria de coisas recentes e outras mais tradicionais para tentar encontrar seu lugar no mercado para um gênero que se não está em seu pleno auge de popularidade, parece estar retomando o prestígio junto a um nicho significativo de jogadores e exemplos recentes disso não faltam, como os interessantes Streets of Rage 4 e 9 Monkeys of Shaolin, que vocês já viram por aqui recentemente.
Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues, portanto, está longe de ter a intenção de reinventar a roda, ou o gênero, e oferece uma experiência muito convencional para quem já saiu por aí distribuindo porrada virtual em inimigos repetitivos até chegar a um chefão brutamontes. Aqui, o jogador terá à disposição um total de quatro personagens em cada um dos “clãs”, totalizando oito jogáveis. Eles serão facilmente reconhecíveis para quem acompanha a série no streaming, e suas versões no game são bastante fiéis ao que já conhecemos. Do lado Cobra Kai, teremos Miguel, Falcão, Tory e o próprio Johnny Lawrence e, por parte do Miyagi-Do, poderemos assumir o papel de Robby, Sam, Dimitri e Daniel Larusso (ou Daniel-San para os mais íntimos).
Em uma dinâmica onde as narrativas individuais (que se desenvolvem em paralelo aos eventos contados na série de TV), ainda que bem superficiais, vão sendo apresentadas conforme se avança na campanha, rapidamente todos os personagens estarão a disposição do jogador tanto no modo single player quanto em um multiplayer local. Não há qualquer alteração na dificuldade jogando sozinho ou acompanhado, e o jogo tem um sistema bem interessante para manter o equilíbrio: a exceção de algumas fases, o jogador, ou jogadores, tem os quatro personagens a disposição, podendo alternar livremente entre eles. Na prática, são quatro vidas para conseguir finalizar a fase, e se houver um segundo player, esses personagens são divididos.
Ou seja, tanto faz quantas pessoas jogam, já que serão quatro vidas ao todo de qualquer forma. A vantagem de ter um parceiro é, claro, poder lidar com vários inimigos ao mesmo tempo com ajuda e cobertura. Nada tão estratégico, já que a lógica do gênero se mantém intacta: é só bater até não sobrar inimigo nenhum em pé em uma campanha composta por 28 fases que nos guiam atrás de pistas para se alcançar o nível final, que deverão ser repetidas ao menos duas vezes cada como parte do projeto do jogo (que detalharemos adiante), mas que podem ser revisitadas a qualquer momento para se farmar mais dinheiro ou até para se divertir novamente já com mais habilidades e recursos em mãos.
Talvez seja uma coincidência providencial, mas nada mais natural para um game baseado em Cobra Kai onde a regra básica é bater primeiro, bater forte e sem misericórdia para conseguir avançar, certo? A boa notícia é que mesmo com o título remetendo aos “vilões”, o jogo dá espaços semelhantes para ambos os lados da picuinha. Explicando melhor, a campanha do jogo oferece, logo no início, a possibilidade de se escolher qual o lado pelo qual você quer acompanhar a narrativa. Ainda que as campanhas de ambos sejam muito parecidas – são praticamente as mesmas fases, só mudando a ordem em que elas ficam disponíveis – é interessante poder, tal como a proposta da franquia nas diferentes mídias, acompanhar cada um dos grupos, compreender suas expectativas e se afeiçoar a um ou a outro. O final verdadeiro do jogo, porém, só vem quando se vence pelos dois lados, favorecendo e incentivando o replay.
Felizmente, há diferenças bastante significativas entre os diferentes grupos – o mais evidente deles sendo relacionado ao de Lawrence vinculado ao fogo e ao ataque, enquanto Larusso é mais pautado pela defesa e pelo gelo – e, dentro de cada dojo, há diferenças também entre os personagens, com cada um compartilhando movimentos especiais do grupo e tendo outras tantos individuais. Esse sistema é bem explorado quando se investe o dinheiro conquistado no jogo em treinamentos e aperfeiçoamentos do time e/ou individualmente em árvores de habilidade independentes e intuitivas. Em outras palavras, é possíveis investir em um novo golpe para o time todo, ou em ataques cada personagem. Não é preciso dizer que é mais coerente tentar equilibrar ambos os aspectos, mas claro que a experiência do jogador será própria e poderá indicar mais foco em um aspecto do que outro.
Essas escolhas de gerenciamento se refletem diretamente na jogabilidade. Além dos comandos convencionais e indispensáveis, como socos, chutes (a combinação de ambos leva a combos relativamente diversificados), esquiva (que também pode ser usada para aparar golpes dos agressores) e pulo, há também como disparar esse movimentos especiais com o uso de uma barra de energia para os golpes de dojo, usando o L2 somado a um botão de ataque, e os individuais, usando o R2 e os mesmos botões de ataque. Na descrição, parece mais complicado do que é, mas o sistema é bastante simplificado e, logo, se torna bem prático para os momentos de maior intensidade de combate. No mais, tudo é facilmente reconhecível: avance, enfrente uma horda de inimigos repetitivos, pegue alguns objetos, como tacos de baseball, violões e outros para usar como arma, ou recupere vida pegando comida que pode ficar escondida dentro de caixas destruíveis e espalhadas pelo cenário. Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues sistematiza tudo o que de mais comum houve no gênero e colocou tudo lá da forma mais pura possível.
Claro, há algumas peculiaridades em cada um desses elementos, e várias delas são verdadeiros easter eggs para os fãs mais atentos. Alguns dos objetos usados como armas improvisadas, ou ainda outros espalhados pelo cenário os quais podemos usar para golpear os inimigos (como carros, brinquedos de shopping e até um certo polvo de brinquedo) são bem reconhecíveis e até alguns alimentos para recuperar HP remetem a comidas favoritas vistas na TV. O mesmo vale para os cenários, passagens de Los Angeles, como o colégio, o shopping e uma certa revendedora de carros que fazem uma ponte direta com o seriado, ainda que sejam visualmente genéricos e as vezes preguiçosos. Como um grande fan service, Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues cumpre bem o seu papel. Em termos da prática em si, contudo, há algumas ressalvas.
Produzido em 3D e utilizando um envergonhado efeito de cel shading (aquele que dá aspecto de desenho 2D para modelos tridimensionais), a movimentação remete diretamente aos melhores jogos do gênero, como o já citado Streets of Rage ou o inesquecível Final Fight, com o avanço lateral, mas com uma profundidade explorável. Essa movimentação funciona, mas parece um tanto quanto deslocada para o estilo visual adotado, e se parece muito mais com o encadeamento de layers chapadas e não com um espaço com volume de fato. Isso significa que alguns golpes acabam não encaixando como deveriam. Os personagens, por suas vez, parecem estar deslizando em uma superfície qualquer e se conectam muito pouco com o ambiente, lembrando por vezes uma animação de recortes. É uma sensação estranha, falta peso para os objetos, falta paralaxe, sobretudo porque há poucos momentos de ambiente aberto, então a percepção do mundo e das pessoas – sejam eles protagonistas, inimigos ou NPCs perdidos pelos cenários – é um tanto quanto precária.
Os combos, por sua vez, são bem divertidos de serem aplicados, e suas variações valem a pena o investimento, ainda que não demore tanto para estarmos aplicando os mais simples porque os efeitos das variações não são tão perceptíveis assim. Melhor é o encadeamento usando golpes comuns e os movimentos especiais, e entender o timing de cada ataque, bem como as qualidades de cada personagem demanda sim um pouco de dedicação para saber o que é mais adequado para cada momento. Resumindo, é um sistema simples o suficiente, mas surpreendentemente profundo para um beat ‘em up. Não se preocupe, contudo: no final, você ainda vai estar esmagando botões para acabar com tudo o que aparece pelo caminho, e mesmo se especializando em certos tipos de ataque, a base continua sendo a mesma.
Falando nos inimigos, o game não escapa da repetição tão convencional, e falta um pouco de carisma para cada arquétipo de inimigo. O artifício da repetição de modelos, mudando só cores para delimitar uma variante deles está lá, bem como o uso descarado de versões maiores deles como chefes de fase. Então, sim… você vai enfrentar, do começo ao fim do jogo, pessoas com fantasia de caveira com variações brancas, verdes, azuis, e por aí vai. E isso vale para patinadores, punks, brutamontes com correntes, hippies tranquilões, mauricinhos, jogadores de futebol americano e mães chiques (?). Ah, e caratecas, claro, principalmente os do time adversário. Há ainda um sistema interessante de contornos que declaram que o inimigo está invulnerável, ou ainda que não pode ter seu movimento interrompido, o que ajuda muito a planejar combos, esquivas e ataques.
Essa limitação visual, como dito anteriormente, pode ser percebida não só nos modelos dos inimigos como também nos ambientes e cenários. Há vários objetos repetidos à exaustão em todos os lugares, bem como texturas das mais genéricas por todos os lados. Paredes invisíveis são comuns para simplificar cenários e a interação é das mais rasas possíveis. O sistema de colisão, especificamente, chega a ser bobo, e tudo o que não é inimigo basicamente, é como se fosse um bloco de nada, sejam pessoas, sejam corrimãos ou sejam portas de vidro. Se há algo que evoluiu muito nos últimos 20 anos é a forma jogos de maior expressão conseguem resolver essa interação entre personagem e outros elementos no cenário, e definitivamente, isso não é uma qualidade deste game. É como se essa característica tivesse melhorado tanto quanto a visão de mundo do próprio Johnny Lawrence.
Os protagonistas, por sua vez, até se parecem muito, a distância, com suas contrapartes da vida real, e o trabalho de vozes, que trouxe os atores originais para reinterpretarem seus papéis aqui é louvável, dando substância e densidade ao projeto como uma verdadeira expansão do que já vimos, mas bastam cenas de interação ou cut-scenes mais próximas para ver que esses modelos não são tão bons assim. A pegada mais caricatural, claro, favorece uma leitura mais simplificada de expressões faciais, mas ainda assim, você facilmente verá modelos mais detalhados em jogos da geração Playstation 2.
A escolha por uma estética noventista somada a um orçamento evidentemente mais contido do que produções semelhantes fica aqui mais evidente como limitação do que como efeito proposital de nostalgia, e nesse caso, talvez a decisão por modelos 3D não tenha tido o efeito esperado. Ver os personagens descendo um escada ou passando por qualquer terreno irregular é de uma tristeza sem tamanho. Possivelmente, trabalhar com sprites como fizeram os recentes Streets of Rage 4 ou Battletoads poderia ser mais eficiente nesse aspecto. As animações das cut-scenes no formato de HQs em movimento, por outro lado, cumprem bem as passagens, e tentam atender o buraco de uma narrativa que, mesmo baseada na série, é desinteressante e protocolar.
Se a utilização das vozes originais cumpre bem seu papel – infelizmente, só no idioma original, sem dublagem brasileira – os efeitos são regulares e a trilha musical é instigante, mesmo perdendo muito por não contar com as músicas dos filmes ou da série. Para um produto que se apoia tanto na memória afetiva, Glory of Love seria uma obrigação, ou ao menos algumas das batidas pop tradicionais já vistas em produtos assim. Todavia, a trilha do jogo não é ruim, só insuficiente. Vale lembrar ainda que além de não ter a localização nacional para as vozes, o game também não conta com legendas para o nosso idioma, algo que não chega a fazer falta para o formato, mas também não ajuda a se envolver com aquilo que está sendo contado.
Certamente você deve estar imaginando que, a partir da avaliação que estamos fazendo até aqui, tenhamos passado por perrengues para conseguir jogar Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues e trazer essa análise para o site, certo? Por mais contraditório que possa parecer, ciente de todos os problemas apresentados pelo game, ele ainda é muito divertido. Os defeitos e limitações são evidentes, e assistir o gameplay que acompanha esta análise pode evidencia-los, mas o fato é que ao assumir o comando, eles se tornam menores do que parecem em um jogo que se alimenta da nostalgia nos pontos certos, assume a precariedade da produção e ainda assim entrega um resultado que entretém, sobretudo quando se tem aquela companhia para tardes descompromissadas de jogatina.
Com uma dificuldade equilibrada, um sistema de progressão incomum para o gênero, elementos visuais e narrativos que remetem ao que já vimos nos cinemas e na TV e uma jogabilidade facilmente reconhecível, esse jogo consegue se sustentar como um bom complemento para os fãs da marca ou do gênero. Certamente, quem não assistiu a série terá dificuldades enormes em se conectar com esse mundo e irá percebê-lo da forma mais genérica possível, enquanto os entusiastas de um bom e velho beat ‘em up encontrarão no mercado opções mais sofisticadas e interessantes. Agora, se você é fã de ambos – de Cobra Kai e dos jogos de porradaria de rua noventistas – então poderá encontrar aqui uma boa diversão.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela GameMill Entertainment.
Veredito
Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues traz boas doses de diversão nostálgica, mas apresenta alguns problemas técnicos e audiovisuais que não podem ser ignorados. Há qualidades, como um sistema de progressão parrudo, bom humor e uma variedade grande de personagens e movimentos especiais, mas aqueles que não são fãs do gênero ou da franquia encontrarão aqui poucos atrativos na comparação com jogos similares no mercado.
Veredict
Cobra Kai The Karate Kid Saga Continues brings good doses of nostalgic fun, but presents some technical and audiovisual problems that cannot be ignored. There are qualities, such as a big progression system, good humor and a wide variety of characters and special movements, but those who are not fans of the genre or the franchise will find few attractions here compared to similar games on the market.