Fonte inesgotável de inspiração para narrativas épicas, das cruelmente realistas às mais fantásticas, a Grécia Antiga é palco de algumas das sagas mais universais da cultura pop, e nem preciso citar que o berço do nosso consagrado Kratos inspirou grandes – e outras nem tanto – produções para os cinemas, a TV, os teatros, os quadrinhos, a literatura… e claro, os games. E mesmo que as divindades sejam facilmente lembradas mesmo por quem tenta ignorar esse universo, provavelmente a história mais reconhecível seja a que discorre sobre a Guerra de Troia, passando pelas muralhas instransponíveis da cidade que ainda gera polêmica sobre sua existência ou não, e claro, pela forma pouco ortodoxa que os gregos encontraram para invadir a cidade, utilizando uma mistura de arte e malandragem.
Tudo isso, obviamente, está permeado por personagens clássicos. Helena, a rainha que ousou deixar seu violento marido para seguir o verdadeiro amor; Menelau, o traído, que usou desta desculpa pessoal para empreender uma campanha gigantesca objetivando subjugar seus inimigos; Heitor, o incorruptível herdeiro do trono que não mediu esforços para defender sua pátria e sua família; Páris, o príncipe arqueiro apaixonado e sua inconsequência jovem; Ulisses (ou Odisseu), que seguiu para a guerra sem saber que sua verdadeira odisseia viria na volta pra casa; e o mais conhecido de todos, um tal de Aquiles (ou Achilles, para manter a forma oficial do jogo), o maior dos guerreiros gregos que acaba sofrendo com um ponto fraco improvável. Se cada uma destas figuras merecia uma ode para si, o herói do calcanhar ferido é certamente quem mais desperta o interesse do mundo, mesmo antes de Brad Pitt tê-lo vivido nas telas grandes lá em 2004.
Mas esta não é a história das glórias em Tróia, pois afinal, é a lenda que não foi contada, como bem antevê seu título. Tal como fez o diretor brasileiro Júlio Bressane no filme “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1969), o game não faz qualquer cerimônia em entregar nos primeiros minutos aquilo que as pessoas acreditariam ser o grande ápice da trama. Você quer ver a lendária batalha entre Aquiles e Heitor? Experencie-na em cinco minutos e decida se o seu adversário vive ou morre. Prefere ver Páris acertar uma flecha certeira no calcanhar deste pobre coitado na tomada de Tróia? Então vivencie o drama na finalização do tutorial do jogo. Esse não é o fim, é só o começo desta jornada, daquilo que importa aqui. Para quem está curioso para estas passagens, estão logo ali, no vídeo que abre esta análise.
Achilles: Legends Untold começa de verdade quando o corajoso guerreiro desperta 10 anos depois de sua queda em Micenas, sem saber direito o que aconteceu e o que está fazendo lá. Se o ancião que cruza o seu caminho não tem muito o que dizer, e um bando de caveiras surge do nada para atacá-lo sem piedade, resta-lhe lutar e seguir em frente, buscar por respostas, entender porque não estava morto e o que havia lhe sido reservado mesmo após o fim. Enfrentar os seus demônios internos, descobrir o que ele tinha deixado em aberto e encontrar uma forma de salvar sua pátria já totalmente desfigurada daquilo que ele havia deixado para trás são só algumas das descobertas que virão com muito sangue e aço. Falar mais do que isso seria estragar a trama, mas já adianto que, como nas melhores histórias, onde se chega não é tão importante quanto o caminho até lá.
Porém, por mais grandiosa que possa ser, a campanha demora mais do que deveria para engrenar, e isso se deve muito mais a uma estrutura narrativa que se arrasta para introduzir os principais sistemas do jogo do que propriamente pelo roteiro. Paciência é a marca da primeira dezena de horas do jogo até que finalmente tenhamos o ferreiro bem instalado em seu estabelecimento, para que aí sim estejamos com a sensação de que tudo está realmente seguindo em frente. É então que aprendemos a lidar com criaturas de outro plano que parecem teimar em corromper o nosso mundo, enquanto líderes totalitários dominam as terras arrasadas e comandam o lugar com mão de ferro. Humanos ou criaturas profanas, tanto faz, porque Aquiles precisa seguir adiante.
O verdadeiro herói não conta com muito mais do que suas armas em um sistema de batalha que busca o equilíbrio entre um combate fluido e contínuo, e a cadência tática, fruto de uma grande mistura de boas inspirações da produção. Em um primeiro momento, o jogo remete diretamente ao clássico modelo de Diablo, com uma visão isométrica revelando um mapa gigantesco e cheio de inimigos sedentos pelo nosso sangue espalhados por aí. A dinâmica logo se apresenta diferente, e o combate pede cautela, golpes certeiros e medidas de contra ataque mais precisos. A energia não é infinita e cansar no momento errado é a forma mais estúpida de morrer. Sim, um formato parecido com o que se popularizou no estilo souls-like ganha protagonismo e toma o lugar do esmagar de botões.
Isso não significa, porém, que o jogo se pretenda punitivo ao extremo ou demasiadamente desafiador, e isso está evidente ao oferecer duas opções de dificuldade, sendo a primeira o que se entende como médio, ou padrão, e a segunda, esta sim, mais complicada. Os fãs dos games da FromSoftware poderão partir diretamente para a forma mais difícil e certamente se darão bem no momento em que entenderem os padrões de ataque inimigos, tomando cuidado real mesmo só quando estiver sendo confrontado por grupos maiores. Um dos mais alardeados recursos de Achilles: Legends Untold atende pelo nome de GAIA (uma sigla para a versão original do termo Ação de Inteligência Artificial em Grupo) e prevê um melhor trabalho de colaboração entre nossos adversários.
O que se vê, na prática, é que há bandos imbecis de esqueletos e outras criaturas menos dotadas, mas outros tipos, sobretudo soldados humanos e chefões, são sim muito mais inteligentes em utilizar dos números e do ambiente para potencializar sua ofensiva. Ogros, mesmo não sendo conhecidos pela sua mente brilhante, podem se utilizar de um aliado de bobeira para arremessá-lo em nós. Duplas de soldados dificilmente irão atacar de peito aberto para tomarem o mesmo ataque juntos e trabalharão para quebrar combos, e chefes vão frequentemente se posicionar atrás das linhas de seus peões para não tomarem o dano direto. Se ainda não é tão sofisticado como o Nemesis (de jogos como Sombras de Mordor), certamente é uma forma bem interessante de criar complicações que exigem uma abordagem menos óbvia.
Outra coisa que me surpreendeu bastante durante a jornada é que para os gananciosos, o jogo é bastante econômico no aspecto do loot. Isso significa que quem espera toneladas de itens dropados a cada 10 segundos se decepcionará bastante, porque isso está longe de ser a proposta aqui. Sim, seu set de combate é personalizável e pode ser composto por itens que se encontra em baús e outros cantos escondidos que podem ser descobertos ou conquistados com a exploração de masmorras, mas são coisas bastante raras e pontuais. Na prática, significa que cada espada encontrada é realmente importante, tem seu valor e vale ser guardada. Fiquei com alguns bons itens por horas, alguns me acompanharam por metade da campanha, mas ainda assim guardei outros para usar em momentos pontuais. Se eu já sou um acumulador em jogos comuns, aqui a coisa ficou ainda mais intensa.
Isso porque o jogo garante que você possa se apegar ao seu equipamento favorito em um sistema de muitos níveis de melhoria e evolução. O ferreiro tem normalmente pouca coisa para te vender, mas pode continuar melhorando suas coisas em uma progressão constante e suficiente para os desafios que surgirem pela frente. Gosto bastante de um modelo onde suas coisas preferidas lá do início, principalmente as de raridade lendária, podem ser atualizadas sem ficarem defasadas em minutos. Isso vale para espadas, machados e lanças de uma mão, espadas longas de duas e escudos, porque o game se distancia da complexidade e do aprofundamento de itens mágicos, como anéis, colares, pulseiras, amuletos e coisas do tipo.
Alguns itens até podem vir com pedras incrustradas que dão vantagens elementais, mas nada que vá tirar o foco dos atributos mais importantes, alguns modificadores e vantagens específicas. Tudo é bem mais simples e direto, favorecendo a ação. Mesmo os consumíveis presentes no jogo deixam de lado qualquer diversificação e são mais objetivos em sua função, como poções de cura e de fúria, óleos para banhar sua arma e ganhar vantagens temporárias, outros itens de cancelamento de estados como sangramento, envenenamento ou maldição, e mais duas ou três coisinhas do tipo. Os materiais de melhoria também estão lá mas raramente nos deparamos com receitas que mais parecem preparos do Masterchef. Desmontar uma arma gera Dracmas (a moeda do jogo), e as melhorias custam esse dinheiro e mais um, no máximo dois tipos de matéria prima.
Por outro lado, a árvore de habilidades de Aquiles é das mais generosas, em termos quantitativos, que eu já vi em jogos do gênero. Em uma escolha de design das mais felizes dada a temática do jogo, elas estão espalhadas em constelações, com cada estrela simbolizando uma característica a ser melhorada. Qualitativamente, porém, não há tanta diversidade assim, já que características passivas como vitalidade (que aumenta a barra de HP) e força (que aumenta o potencial do dano) se repetem exaustivamente pelos céus gregos, e algumas constelações inteiras podem ser compostas só por um tipo de atributo. Além disso, cada um desses tópicos tem níveis para serem liberados, o que significa que todas as estrelas podem ser ativadas três vezes. Parece complicado, mas é algo bastante natural de se cuidar. Em alguns pontos, há poderes ativos e novos movimentos desbloqueáveis, mas via de regra, o jogo sempre te convida a melhorar um pouquinho mais os principais aspectos.
Tudo isso para dar suporte a um sistema de exploração que expande o mundo para além de um ponto central de partida. Há certos bloqueios que se utilizam de um artifício raso para evitar que cheguemos a alguns limites antes da hora, mas não demora para que atravessemos o mapa a nosso bel prazer. Certos inimigos não nos deixarão andar soltos, alguns demandam uma maior maturidade de nosso Aquiles, mas felizmente a medida do quanto damos conta de seguir ou se é melhor recuar até estarmos melhor preparados é dada por nós mesmos. O mesmo vale para fendas dimensionais, as quais temos que fechar a partir de certo ponto da trama, que podem ser pesadas demais em um primeiro momento, mas que mais tarde se tornam mais palatáveis. Novamente, a paciência e a resiliência podem ser grandes aliados do jogador.
A escala das coisas pode parecer maior quando olhamos para o mapa diretamente, mas ela acaba mascarando um sistema de level design menos complexo do que parece, criado em uma espécie de conjunto de corredores e outros acessos bifurcados e com pouquíssimas áreas realmente abertas. Quando chegamos a uma nova localidade que mais parece uma grande cidade, basta um pouco de distanciamento para percebermos que aquilo é, na verdade, duas ou três ruas estreitas que circundam grandes construções que não são acessíveis e que são, portanto, só composição de cenário. Os caminhos são longos, algumas travessias podem demorar um pouco mais do que gostaríamos, mas nada é tão absurdo como pode parecer para olhares desconfiados que se acostumaram à grandiloquência de Diablo ou similares, como a franquia Torchlight. Soma-se a isso a pouca quantidade de missões secundárias e temos algumas travessias bem mais vazias do que de costume.
Para os mais apressados, o jogo se apropria, tal como suas referências, de pontos de salvamento, os santuários, que servem também como hub de viagens rápidas. Uma rede bastante eficiente e bem distribuída que fará com que derrotas, mesmo as mais doídas, não nos façam retornar para tão longe assim. Esse é também o local onde se pode descansar – o que restaura os inimigos mais comuns, como já vimos antes – e atualizar a árvore de habilidades com os pontos conquistas via experiência. No conjunto da obra, são pontos no mapa que servem exatamente para aquilo que esperamos e que reúnem funções que remetem diretamente e sem disfarces aos referenciais do jogo. Eu, pra ser sincero, evito ao máximo cortar caminho, mesmo quando o jogo exige um backtracking inconveniente, porque acabar com os inimigos pelo caminho é uma forma confortável de se acumular mais pontos de experiência, mas é difícil dizer se compensa tanto assim.
A grande desvantagem de lutar de novo e de novo com o mesmo grupo de inimigos é que o sistema de combate, por mais sofisticado que tente parecer, acaba cansando um pouco. Com a base de um ataque rápido no R1 e um ataque forte no R2 (que podem gerar pequenos combos quando combinados), somada a uma imprescindível esquiva que é rápida com um toque e aciona o rolamento com dois, basicamente se pode enfrentar qualquer inimigo, dos minions mais básicos aos grandes chefões de masmorra. A defesa, que depois evolui para aparar ataques diretos, é sempre bem-vinda, mas vale principalmente no um-contra-um e nos faz sofrer contra hordas. O arremesso de escudo (que me fez lembrar de God of War e de Godfall) é tão útil quanto alguns movimentos especiais tardios, mas ainda assim é um tempero extra para o básico bate, bate, esquiva.
Cansar talvez não seja a palavra correta, mas há uma sensação de esgotamento ao longo do último terço, como se tudo o que eu poderia evoluir já tivesse acontecido. O crescimento constante, mas aos poucos, nos faz evitar o relaxamento, mas no final, o maior recurso para sair do ciclo de mais do mesmo é alternar entre tipos de armas. Por isso mesmo, é importante sempre levar ao menos uma de cada consigo, sempre tomando cuidado para deixá-las no máximo de seu potencial. Se em termos de controle as coisas mudam pouco, o timing e a distância de cada ataque trazem um elemento de surpresa que o próprio gameplay, por si, não consegue. Por mais que certos inimigos apareçam vez ou outra para nos tirar da zona de conforto, quem aprende a lutar contra um, sabe cuidar dos demais.
Esta diversidade é, no final das contas, bastante adequada ao escopo do jogo, acompanhando a amplitude de cenários e biomas contidos no mapa. Passamos de pântanos obscuros para florestas devastadas em questão de passos, e uma corridinha a mais nos leva para a imensidão de campos verdejantes semeados com algum sangue. Vilarejos e construções são raras, ambientes internos ficam restritos a alguns porões mal frequentados, e os lugares mais diversos são mesmo as masmorras mais importantes, aquelas que guardam segredos e que fatalmente levam a história para o próximo ponto de interesse. Ainda assim, o nível de detalhes e o trabalho de cenografia é impressionante, rivalizando com produções mais abastadas. Gosto de texturas e da elaboração do espaço diegético que sintetiza, sem virtuosismos exibidos, um cenário que está sempre flutuando entre o mundo corriqueiro e o sobrenatural.
A modelagem de personagens e criaturas é nitidamente potente para o ponto de vista da câmera padrão, mas sofre quando o jogo ousa em cut-scenes um pouco mais elaboradas. Prefiro mil vezes alguns trechos desenhados como em rascunhos, algo que traz um efeito dramático mais eficiente. Achilles: Legends Untold tem suas amarras estéticas, mas é definitivamente muito bonito, com alguns trechos realmente surpreendentes que se permitem abrir o ponto de vista para nos lembrar que, sim, continuamos falando muito mais de Aquiles do que da Grécia, mas é impossível não se permitir brincar com o tom épico tão intrínseco à essa história. O jogo mostra o que pode, mas nos dá ferramentas para preenchermos as lacunas com nossas referências.
Em seu estado de acesso antecipado no PC, o jogo recebeu críticas mistas há mais de um ano atrás, e era senso comum que a base estava no lugar certo, mas que ele parecia incompleto, ainda tateando as coisas que poderia se tornar. A versão final parece ter aprendido com o feedback e oferece uma dinâmica de combate que, se não é perfeita e se não se renova constantemente, sabe exatamente como implementar suas maiores virtudes, alimentada por uma IA que pode ser bastante punitiva para os jogadores desavisados. Se isso não é um Souls propriamente dito, também não é Diablo, nem God of War das antigas. No meio de referências e inspirações consagradas, há uma boa identidade sendo construída.
Localizado para o nosso português brasileiro em legendas, textos e menus, visualmente muito sólido e com um mundo bem construído, o jogo aproveita muito bem suas pouco mais de 20 horas de campanha, ainda que pareça se arrastar para além da conta na preparação para o que realmente importa. O sistema de composição do arsenal de guerra de Aquiles é mais contido do que o habitual em RPGs de ação, mas talvez por isso mesmo seja mais robusto, permitindo que o jogador invista de verdade em um set que melhor se adapte ao seu estilo. Soma-se a isso um sistema de progressão em níveis generoso em pontos e em habilidades a serem desbloqueadas, e o resultado é satisfatório para além do que eu esperava. Aquiles é muito mais do um calcanhar sensível, e o jogo, que se propõe a contar aquilo que ainda não tinha sido contado, honra com muitos méritos o legado de um dos maiores heróis gregos da história.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Dark Point Games.
Veredito
Achilles: Legends Untold honra o legado tanto do personagem que estrela o game, quanto das boas referências nas quais a produção se inspira. Belo e agradável de se jogar, tem seus próprios calcanhares, mas, preciso e eficiente como o herói, surpreende como uma das melhores obras do gênero.
Achilles: Legends Untold
Fabricante: Dark Point Games
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: RPG / Ação
Distribuidora: Dark Point Games
Lançamento: 02/11/2023
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Achilles: Legends Untold honors the legacy of both the character who stars in the game and the good references from which the production draws inspiration. Beautiful and enjoyable to play, it has its own heels, but, precise and efficient as the hero, it surprises as one of the best works in the genre.