Soulstice – Review

Houve um tempo em que eu torceria o nariz para Soulstice, com o desdém de quem olha para algo e o reduz a um clone de outra coisa. Felizmente, as coisas mudam, nós amadurecemos e o mercado passa por transformações e ciclos interessantes que nos permitem novos olhares. Não que o contexto torne algo melhor ou pior em si, mas ajuda a moldar nossas emoções, e arte é, sobretudo, um diálogo com aquilo que há de passional em nós. Como em Dante’s Inferno, por exemplo, esse jogo é um daqueles casos em que as comparações são inevitáveis e o fato de corresponder ou não às bases de inspiração pode ser uma qualidade dependendo do que o jogador procura.

Soulstice nada mais é do que um hack ‘n slash em essência, com claras inspirações nos maiores e mais óbvios clássicos do gênero. Se a comparação mais imediata nos remete ao mais recente Devil May Cry 5, minhas primeiras memórias trouxeram a trilogia original de God of War à pauta. A jornada de uma personagem de moral questionável enfrentando monstros e criaturas demoníacas por uma terra desolada; o uso de armas cada vez mais devastadoras em combos insanos contra hordas enormes; uma história de redescobrimento da própria condição em um sistema de progressão por níveis bastante lineares que mesclam alguns puzzles com bastante ação, são só alguns dos aspectos que mexem com nossas afetividades. A boa notícia é que o jogo tem características que lhe conferem algo para além de suas inspirações e lhe garantem uma certa identidade.

Nesta aventura, somos colocados no controle de Briar e Lute, duas irmãs em uma condição bastante peculiar que, ao longo da narrativa, vão encontrando fragmentos de suas próprias vidas que permite que elas entendam quem são e quais são os laços que as uniram desta forma tão singular. Esta relação, que transborda do lore para o sistema de jogabilidade compartilhada da qual falarei mais adiante, é aquilo que mais se destaca dentro da história de Soulstice, já que a grande trama não é das mais envolventes ou originais. Certamente a missão de fechar uma fenda dimensional que está destruindo o tecido da realidade de cá enquanto se compreende o papel de pertencer a uma ordem secular de cavaleiros mais experientes e de personalidade dúbia, mesmo com suas reviravoltas esperadas, não trará nada de novo para a maioria das pessoas, por mais que o jogo se esforce em nos contar tudo isso com calma e uma certa paciência.

Ao longo da campanha, me vi dividido entre o interesse em saber mais sobre a relação realmente intrincada entre essas duas irmãs tão distintas e ao mesmo tempo tão próximas, e um sentimento de que o jogo estava se esticando para além do necessário para chegar onde pretendia. No final, parecia que ambas as narrativas, a mais íntima e a mais urgente, se tornaram uma única linha um tanto quanto arrastada pela fragmentação improdutiva de novidades espalhadas aqui e ali e presentes sobretudo ora em diálogos pouco inspirados, ora em inserts imateriais entre as fases principais. Ainda que não seja um quesito particularmente significativo para o gênero, essa história não passa do lugar comum e mesmo que por vezes seja intrigante e ganhe ares novelescos, ela se garante só como um artifício para justificar o sistema de jogo multifacetado.

Isso porque o modelo de jogabilidade nos coloca no controle desta quimera com duas personalidades agindo juntas em busca de uma consonância. Estamos no controle, considerando os arquétipos do gênero, de uma típica guerreira, agressiva e forte com armas de mão, como espadas, machado, arco, manopla e chicote (de novo, você já viu isso em outro lugar); e de uma típica personagem de suporte, com movimentos de defesa, controle de danos e ataques complementares. Se de início pode parecer algo impensável de se administrar, a prática é muito mais simples, como reza a cartilha de um bom hack ‘n slash, e a sincronia entre uma e outra demanda muito mais precisão do que atenção múltipla. É um modelo que funciona surpreendentemente bem e de forma fluída, serve e é servida pelo background das protagonistas, mesmo com os complicadores que vão sendo colocados pelo caminho.

O mais significativo deles, sem dúvidas, são os campos especiais de dano. A princípio, nossos inimigos são tangíveis e comuns, e a função de Lute é basicamente aparar ataques, facilitar contra-ataques e esquivas ou completar combos. Logo surgem tipos etéreos de adversários que só se tornam tangíveis dentro de um campo de energia azul, uma espécie de aura projetada pelo nosso encosto. Mais adiante, há um outro tipo de proteção adversária, uma armadura elemental, por assim dizer, que também demanda um outro véu projetado, vermelho, para ser superado por nossas armas. Na prática, portanto, há três grandes categorias de adversários: os comuns, projeções astrais azuladas e com armaduras cristalizadas vermelhas e, para provocar dano dos dois últimos, é necessário estar dentro de um campo de energia dedicado.

A coisa começa a complicar quando, como era de se esperar, as hordas comecem a mesclar todos esses tipos de uma só vez em uma mesma arena de batalha. Considerando ainda que a energia que Lute despende para projetar tais campos é finita e, portanto, o uso por tempo estendido vai esgotá-la e nos deixar inertes até que ela se recupere, há um elemento estratégico importante a se considerar principalmente no terço final da aventura onde os monstros inimigos já estão todos introduzidos na trama e começam a pipocar por todos os lados, incluindo tipos que antes haviam sido chefes de fase. A diversidade de inimigos, aliás, é uma das boas qualidades do game, que ao apresentar um novo tipo não esquece de resgatar os anteriores. Há certas batalhas com até cinco ou seis categorias diferentes, nos demandando uma amplitude de táticas e de uso das diferentes armas disponíveis como poucos.

Se, por um lado, Soulstice acaba burocratizando certas passagens de combate ao nos exigir a aplicação de campos de energia diferentes, por outro ele alivia na dinâmica de uso de diferentes habilidades e na intercalação de todos os equipamentos que nos disponibiliza. Não é necessário equipar um ou dois tipos previamente, nem fazer isso via um menu de mediação. Todas as armas estão a disposição via um toque do direcional d-pad do controle, possibilitando que, por exemplo, usemos todas elas combinadas em uma mesma cena de ação. Você pode iniciar um combo com sua espada padrão, descer a porrada com o machado em um inimigo de armadura pesada, atirar flechas em harpias distantes enquanto o primeiro está caído e finalizar todos eles ao mesmo tempo dando ataque em área com o chicote. Tudo isso intercalando também o tipo de campo de energia e ainda cuidando para aplicar o combo mais contínuo para um melhor ranking de pontuação.

Esta sincronia ideal, contudo, é mais fácil de falar do que de fazer. Dentro da dificuldade padrão do jogo, lidar com uma série de inimigos tão diferentes e todo o arsenal das nossas heroínas demanda prática e um certo grau de resiliência na aprendizagem. Na terceira e inicialmente mais alta, qualquer falha na ligação de comandos ou na esquiva pode ser fatal. Talvez por isso, o jogo conte com aquelas clássicas áreas de desafio espalhadas (e as vezes bem escondidas) pelo cenário onde há um certo requisito a ser cumprido, como por exemplo vencer todos os inimigos intangíveis antes dos demais e cumprir o tempo; ou acabar com todos os adversários sem cair das plataformas móveis; ou simplesmente derrotar tudo aquilo que se mover antes do cronômetro zerar. Tudo para favorecer o treino e automatizar, em nossa memória muscular, ações e reações que aprendemos conforme avançamos na trama.

Há, então, uma complexidade muito saudável no sistema de combate de Soulstice que permite com que o jogo fuja do já evitável esmagar de botões descerebrado de outras propostas semelhantes. Há um elemento de estratégia, de gestão de tempo e de prioridades, além da necessidade de se estar sempre atento ao que acontece ao redor. Uma pena que, todavia, as multidões aproveitem desta força muito mais do que os grandes chefes de fase, que na maioria das vezes acabam se mostrando um tanto quanto unilaterais e previsíveis, resumindo sua dificuldade na longa barra de vida, na altíssima resistência e no dano pesado de seus ataques encaixados. Há exceções, felizmente, com um ou outro combate mais intenso e cheio de possibilidades de abordagem, mas na maioria do tempo, suas habilidades serão testadas mesmo contra múltiplos inimigos comuns, não contra grandes figuras.

Soma-se a tudo isso uma complicada árvore de habilidades para Lute, que pode ser melhorada conforme se coleta fragmentos provenientes de cristais destruídos daquela dimensão imaterial acessível pela aura azul, que favorece ataques especiais em conjunto, possibilidades de defesa passiva, ataques especiais e outras capacidades específicas; e melhorias em ataques e combos de Briar que devem ser liberados por meio de fragmentos comuns ou colhidos de cristais vermelhos, o que abre chance de melhorarmos na habilidade com a cada uma das armas, bem como liberar novos ataques e combos com elas. Na lojinha do jogo, disponível entre fases ou ao encontrar um importante guia em algum ponto dentro dos níveis, também se pode aumentar barra de vida ou conseguir itens de cura ou de renascimento. Novamente, nada de novo aqui também.

Tudo isso traz ao game uma potencialidade latente para lhe dar sustentação, mas são sistemas que acabam prejudicados por um level design bastante aquém do que se espera nos dias atuais. Cada fase é basicamente composta por corredores em linha reta que, vez ou outra, ganha alguns bolsões mais labirínticos, mas que jamais conseguem brilhar como espaços de exploração, nem como componentes de puzzles mais sofisticados. Há sim um ou outro ponto, do meio para o fim, que demanda o acionamento de interruptores, idas e voltas, uma procura mais detalhista, além de rotas alternativas que levam a itens extras ou passagens para a já citada dimensão de treinamento e de desafios, mas nada que vá além do que já se fazia nas gerações PS2/PS3. Em grande parte do tempo, a sensação é de estarmos andando por ruas estreitas e escombros até uma próxima área aberta onde haverá uma outra horda a ser enfrentada.

Não ajuda nesta falta de imersão um modelo de plataforma um tanto quanto prejudicado pelo posicionamento e pela movimentação de câmeras, bem como pela noção de profundidade e perspectiva questionáveis de muitos ângulos. Não será raro, por exemplo, errar um salto decisivo só por esbarrar em uma corrente pendurada ou um pedaço de madeira sobressalente simplesmente porque é difícil calcular a direção desses itens sem a liberdade de câmera com a qual estamos acostumados atualmente. Curioso é que essa não é uma limitação de hardware ou mesmo da composição do jogo, e sim um bloqueio imposto pelo próprio game, que libera o livre movimento de ângulo de visão durante batalhas e literalmente trava o enquadramento quando o último inimigo cai.

Esta escolha de design é obviamente uma forma de valorizar o que foi escondido em cantos e beiradas ocultas para fazer com que exploremos os caminhos da forma como fora planejado, mas ao ferir o princípio de liberdade não por limitações técnicas mas sim para forçar que se aborde a exploração do jeito específico como idealizado acaba se mostrando uma camisa de força para o seu jogador. Se isso ainda fosse pensado para valorizar uma direção de cena com intencionalidades, como bem fazia, de novo, os já citados God of War e Dante’s Inferno, haveria uma sensação de justiça, mas tirando um ou outro vislumbre desta fortaleza enorme, nada justifica essa escolha do uso de câmeras, que incomoda e, por vezes, atrapalha.

Também não ajuda o fato que nenhuma destas escolhas de posição de câmera tenha tanto potencial de encantar o jogador, já que o cenário por onde o jogo transita fica longe da variedade que uma aventura de até duas dezenas de horas precisa. A sensação é que na reta final do jogo estamos passando pelos mesmos corredores, os mesmos vilarejos periféricos, os mesmos esgotos lá da primeira hora. As vezes com placas de gelo, as vezes com construções em chamas, tudo é sempre muito parecido, com uma ou outra alma perdida andando a esmo, as mesmas tralhas a serem quebradas, e uma correria que parece nunca se aproximar do destino final. A construção de mundo é coesa, e a decisão de que tudo se passa basicamente neste mesmo complexo medieval não é uma decisão ruim por si, mas quando os mesmos padrões se repetem por horas, falta um incentivo para o que vem a seguir, para o que está adiante, falta aquele sentimento de se estar deveras progredindo.

A própria estética do jogo abusa dos tons mais sóbrios de uma fantasia medieval sombria e pessimista, onde a luz do sol parece nunca chegar de verdade. Ainda que não seja necessariamente escuro, é um jogo cinzento quando em ambientes externos, marrom sujo em passagens internas, com ambientes e texturas pouco convidativos. A cenografia é escassa e a falta de detalhes tornam a maioria das passagens mortas, sem grandes atrativos ou quaisquer destaques. É como se a história estivesse lá, potencial, mas escondida pela falta de uma narrativa emergente. Tudo isso torna o jogo mais expositivo do que contemplativo, mais textual do que visual quando se considera o aspecto da ambientação. Bonitos os cenários não deixam de ser, não é a qualidade técnica que nos distancia da obra, mas sim a falta de uma sensação de que aquilo um dia já foi habitado, já passou por outras coisas e que não é só um papel de parede para um corredor por onde temos que passar entre um bolsão e outro.

A modelagem de personagens segue o mesmo tom, mas aqui a expressividade ganha um pouco mais de destaque. Mesmo com uma coleção de sujeitos caricatos e que estão lá unicamente para servir de escada para o próximo passo das nossas heroínas, há uma plasticidade típica de obras canastronas, com direito a muitas poses estilosas e uma infinidade de câmeras lentas que deixariam até o diretor Zack Snyder com inveja. O desenho de inimigos é uma gangorra que ora tende ao olhar criativo digno de um Benício Del Toro, ora cai na vala comum do soldado com armadura, e, para os fãs de Bayonetta, há uma ou outra inspiração aqui que remete a bizarrice daquele mundo. Talvez tenha faltado, porém, se permitir seguir pela linha do non sense por completo, porque ao manter um pezinho em um relativo realismo, Soulstice nunca chega a se destacar de verdade em termos visuais.

Todos esses senões podem fazer parecer que o jogo está realmente muito abaixo do esperado, e provavelmente esta seria uma afirmação verdadeira se a meta fosse realmente chegar ao nível dos maiores expoentes do gênero. Soulstice, de fato, nunca é imponente como fora GoW, ou profundo como DMC, ou despirocado como Bayonetta. Provavelmente, também não é esteticamente afetado como Metal Gear Solid Rising: Revengeance, nem traz uma mitologia tão rica quanto Darksiders, mas é exatamente disso que eu estava falando quando iniciei o texto dizendo que esse jogo poderia muito bem passar despercebido como um clone que nunca será como os originais. E se for esse o ângulo pelo qual você estiver procurando olhar, poderá se decepcionar seriamente com o jogo.

Entretanto, em sua essência, é um jogo extremamente bem executado naquilo em que mais de diferencia dos demais, que é a sua dinâmica bastante única de colaboração entre duas personagens tão intrinsecamente ligadas. Soulstice não se trata de um grande vilão que se mostra o oposto do herói cheio de virtudes, ou de grandes divindades se colocando diante um guerreiro raso. Em meio a uma carnificina desenfreada, descobrimos a história de duas irmãs que encontraram a si mesmas no pior dos momentos de suas vidas e, se tornando outra coisa, entenderam aquilo que deveriam ser uma para a outra. Se os vislumbres onde encontramos fragmentos de memórias de Lute nos lembram de fases mais contemplativas de outros títulos, o tratamento é bastante sutil, leve e propositalmente estabelece pontos de respiro no ritmo do jogo.

Se nunca chega a ser brilhante, Soulstice é autêntico, mas ao ser uma obra honesta que sabe bem quais são suas potencialidades, acaba exagerando em alguns pontos para valorizá-los. A campanha perde, por isso, parte do seu ritmo no segundo terço, com passagens repetitivas e um tanto quanto despropositadas. Se traz batalhas de chefe esquecíveis, compensa curiosamente nas trechos comuns onde o intrincado sistema de campos de energia distintos são exigidos ao limite. Peca, principalmente, ao se alongar demais sem um desenho de fases mais instigante, e quanto busca a verticalidade, seu modelo de câmera fixa o trai se tornando um estorvo, e mesmo que nunca se torne um desafio de plataforma propriamente dito, irrita pela imprecisão de perspectiva que aparece aqui e ali.

Dito isso, seria injusto afirmar que Soulstice é só mais um no meio da multidão. Primeiro porque o momento atual é de extrema escassez de bons games do gênero, mas principalmente porque ao se apoiar em alguns dos preceitos mais consagrados de uma boa pancadaria espetaculosa, ele pôde criar seus próprios mecanismos que aproveitam a característica mais original de suas protagonistas. Se é verdade que a história nunca foi o sustentáculo de um bom e velho hack ‘n slash, não é aqui que esse status quo será questionado. Contudo, essa nunca parece ter sido a meta do game, muito menos se estabelecer como um novo paradigma em sistemas de progressão. Para os fãs do gênero, é um jogo que não reinventa a roda, para o bem e para o mal, mas que ainda assim adiciona um ou outro detalhe que se não o torna melhor, ao menos o torna (um pouco) diferente.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Modus Games.

Veredito

Soulstice é um belo hack ‘n slash que deixa a desejar em quesitos como construção de mundo, ritmo, level design e direção de arte. No entanto, estabelece um sistema de combate e exploração compartilhado entre duas personagens em uma só que, por si só, já o torna surpreendente e desafiador.

75

Soulstice

Fabricante: Modus Games

Plataforma: PS5

Gênero: Ação

Distribuidora: Forge Reply Studios

Lançamento: 20/09/2022

Dublado: Não

Legendado: Sim

Troféus: Sim (inclusive Platina)

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Veredict

Soulstice is a beautiful hack ‘n slash that falls short in areas such as world building, pacing, level design, and art direction. However, it establishes a shared combat and exploration system between two characters in one that, by itself, makes it surprising and challenging.