Hellpoint – Review

Vez ou outra surgem games tão marcantes e especiais que apresentam novos paradigmas na indústria e até no comportamento do jogador. E como tal, estabelecem parâmetros pelos quais as produções buscam se inspirar nessas obras a tal ponto que se tornam, em si, um novo gênero, ou sub-gênero. Metroidvania e rogue-like são só alguns dos termos mais comuns utilizados para descrever jogos que se espelham nos aspectos que foram sedimentados por alguns marcos e, na última década, a referência dos games da From Software se tornou uma baliza para experiências com combate cadenciado, exploração cuidadosa, dificuldade elevada e narrativa sofisticada.

Hellpoint surge dessa clara inspiração do que se convencionou chamar de “souls-like” ou “soulsborne”, mas consegue trazer novidades suficientes para se mostrar autêntico e até original. Situado em uma estação espacial misteriosa que orbita um buraco negro, o game traz toda uma ambientação sombria que consegue misturar tons de Dead Space com a exploração e o peso de uma construção narrativa mais aberta, sistema consagrado na franquia Dark Souls. Assim sendo, fica o aviso logo de cara: se você é fã do gênero e da dificuldade um pouco mais elevada que o padrão atual da indústria, Hellpoint pode ser sim uma possibilidade interessante para você. Se você tem interesse, mas falta-lhe coragem, ou mesmo tempo para adentrar esse formato, o game pode ser uma porta de entrada, mas se não for a sua praia, bem… provavelmente não será  esse o jogo que o fará mudar de ideia.

Compreendendo melhor a proposta, logo que o jogo inicia incorporamos um sujeito cru, um escravo sem alma produzido sinteticamente pelo enigmático Autor, uma criatura sem identidade que ainda precisa encontrar seu lugar nesse universo infinito enquanto busca descobrir o que aconteceu com Irid Novo, outrora símbolo da evolução e da capacidade humana de explorar a tecnologia, colaborar com outras raças e superar seus limites. Não vai demorar para que encontremos uma fenda dimensional – que vai funcionar com ponto de convergência, de save e de melhoria do seu personagem, similar às bonfires dos jogos da série souls – e descobrirmos que aquele lugar é ainda mais perigoso do que parecia e está tomado por horrendos inimigos.

A narrativa é tão lenta quanto se poderia esperar de um game do gênero, contada por uma série de pistas espalhadas por todo o caminho do protagonista. Seja um documento aqui, um computador ali ou um dos pouquíssimos NPCs com quem se pode conversar antes dele querer te arrancar metade do corpo, tudo é muito sutil, sem didatismos ou qualquer explanação mais expositiva. A trama não chega a ser um grande mistério e nem conta com aquelas reviravoltas cinematográficas melodramáticas, mas é suficiente para manter interesse, e é oferecida na dose certa para que você queira mesmo ler o que encontrar, e não só pular como ocorre em vários RPGs que adoram espalhar cartas de 40 páginas pelo mundo. A cartilha do gênero, aqui, é seguida à risca.

Para conseguir sobreviver a esse ambiente caótico, o jogador vai adquirindo equipamentos dos mais consagrados, como escudos, espadas, armas de fogo, partes de armaduras e outros itens de combate e de suporte, fazendo com que o moderno encontre o clássico. Sim, você estará em uma estação espacial cercado por tecnologias de ponta e equipamentos de última geração, mas também irá manipular elementos classicamente da cultura medieval antiga e magia, muita magia, sempre com aquela pegada sci-fi interdimensional que torna tudo ainda mais distinto do que já vimos. Hellpoint sabe equilibrar o velho e o novo, se assim podemos dizer, de uma forma bastante criativa e que funciona organicamente, sem parecer forçado ou deslocado.

Já se tratando da jogabilidade em si, considerada o ponto central de qualquer soulslike que se preze, o game tem suas limitações. Como esperado, a cadência estratégica do combate é essencial e não adianta sair esmagando botões em meio a hordas, a não ser que se esteja procurando a forma mais rápida e ridícula de morrer. Se contra inimigos comuns 1×1 o jogo não oferece dificuldades maiores, bastam dois ou três deles ao mesmo tempo para oferecer um desafio bastante intenso. Combates contra inimigos mais fortes e poderosos devem ser evitados a não ser que se tenha muita segurança de estar preparado para embates ferrenhos, mas com recursos limitadíssimos, quanto menor o risco, maiores a chances de sucesso nos confrontos obrigatórios.

Esse também é um dos aspectos mais instáveis da experiência. Em jogos deste estilo, já aprendemos (da forma mais resiliente possível, é bom dizer) que a fluidez e a precisão são os elementos fundamentais que separam o sucesso orgulhoso do fracasso monumental. Afinal, como dito, basta um movimento bobo e meia hora de combate vai pelo ralo sem qualquer piedade. E é uma pena que há vários deslizes nesse sentido em Hellpoint. Há muitos ataques que desferimos que, por vezes conseguem acertar sem merecimento, e outros milimetricamente calculados que ou não atingem o adversário, o que já sabemos que abrirá espaço para um contra-ataque fatal – ou não pegam do jeito que esperamos, e aí a posição segunda para a sequência da batalha fica comprometida.

Em combates contra múltiplos adversários, essa questão com o hitbox é ainda mais complicada. Vários movimentos podem nos levar à glória ao atingir mais de um inimigo ao mesmo tempo, e o mesmo movimento pode passar liso nos deixando entre dois monstros brutais. O mesmo vale para as ações da IA que muitas vezes falha não só em ataques óbvios, como também pode errar a distância dos ataques de forma primária. Claro, temos aqui algumas bestas quase inconscientes, o que justifica uma ou outra ação mais descuidada, mas há vários momentos onde a falha é evidente de um sistema de colisão estranho e não exatamente da burrice ou esperteza de quem quer que seja. Nada que não possa ser compreendido e até antecipado depois de algumas horas, felizmente.

Mesmo assim, a morte é inevitável. Basta um erro, uma esquiva mal executada, um ataque mais ganancioso, um inimigo escondido atrás de uma pilastra, e você volta para o último checkpoint. Como parte essencial da experiência, fracassar adiciona um elemento a mais para se preocupar, primeiro porque é necessário voltar ao local onde fracassou para buscar os áxions perdidos, que são a base para a evolução dos atributos. Segundo, e aqui uma função interessante, o espírito do seu personagem derrotado estará lá com exatamente a mesma build que estava sendo utilizada na hora da morte e se torna um adversário bastante inconveniente. De bônus, ele pode mostrar todo o potencial de batalha que tínhamos naquele momento e pode ensinar como se aproveitar disso (caso consigamos sobreviver a nós mesmos).

Uma vez que se recupere os áxions perdidos, é possível utilizá-los para melhorar o personagem e, deste modo, passar por aquele trecho novamente, um pouco melhor. Sim, todos os inimigos dão respawn a cada morte, e provavelmente você irá decorar onde cada um está pela necessidade de atravessar o mesmo trecho algumas vezes. Contudo, nem sempre tudo estará igual. Há eventos cíclicos – que também se justificam pela própria diegese do game, já que estão diretamente ligados aos ciclos de rotação da estação espacial – que abrem áreas, trazem novos inimigos para lugares onde eles não estavam, ou ainda podem disponibilizar itens raros e específicos. Se não é um elemento exatamente aleatório, traz um respiro para áreas já conhecidas que fortalecem a sensação de nunca se estar seguro de verdade.

Falando dos itens, há um sistema interessante de evolução de armas, armaduras e acessórios. É possível equipar melhorias nos apetrechos que carregamos, e se mais tarde tivermos a intenção de mudar de arma, seja porque encontrou uma mais poderosa, seja porque prefere uma que se adeque melhor a forma como preferimos combater – com armas mais pesadas ou mais rápidas, com equipamentos mais leves ou mais parrudos, etc. – podemos transferir esse pacote onde investimos nossos parcos recursos para o equipamento novo, facilitando e valorizando os esforços anteriores. Portanto, nada de ficar horas investindo em melhorar algo para logo em seguida abandoná-lo por encontrar um item simples, mas com maior nível.

Essas transformações de estilo ao longo da jornada serão uma constante até que encontremos nosso jeito ideal. Você pode equipar uma arma de longo alcance em uma mão e uma adaga rápida na outra. Ou pode levar uma espada gigante na mão direita e escudo pesado na esquerda para aquele duelo mais tradicional. Tal como visto na franquia Bayonetta (guardadas as devidas proporções, obviamente), é possível criar um pacote customizado que favoreça o seu estilo, e que valorize os atributos onde você escolheu investir. Esse amadurecimento de personagem e de jogador funciona bem, mesmo que exija que se sofra em alguns momentos para entender como montar esse quebra-cabeças entre habilidades e equipamentos. É parte da graça, por assim dizer, das diversas iterações pelas quais inexoravelmente temos que passam.

O que está longe das referências é a questão audiovisual. Sim, há uma atmosfera muito bem construída e, vale dizer, poucas vezes o infinito do espaço visto da janela em um jogo foi tão opressor. Pode-se dizer que a construção sonora minimalista dos ambientes calmos e quase insípidos é angustiante, e que a sonorização de efeitos é bastante competente, sem qualquer destaque mais impressionante. Demônios gemem (e jogar de headset é uma boa para antecipar várias localizações de quem está escondido na espreita de um canto escuro) armas fazem o som de armas, e, bem, tudo está encaixadinho no seu lugar. Mas considerando o visual, há uma série de probleminhas bem inadequados para esse momento da geração, sobretudo quando consideramos um time de veteranos que estão compondo a desenvolvedora do game.

Os modelos são bastante simplórios, com um destaque negativo para as criaturas mais comuns, ainda mais genéricos do que os bonecos padrão de Doom, por exemplo. Suas variações – com espada, com escudo, com armas de fogo, etc. – também não são nada marcantes. E exceção são alguns inimigos mais poderosos, que conseguem compor referências que vão do clássico terror sci-fi à temas religiosos e místicos, e alguns chefes são especialmente bonitos. O maior problema, contudo, é a construção de mundo, com texturas bem simplórias, espaços enormes vazios, com alguns amontoados de coisas disformes e com baixa resolução. Não ajuda ter um level design bastante confuso e cheio de portas que dão para lugar nenhum, corredores escondidos que só levam aos mesmos salões e lugares “escondidos” tão tediosos e vazios que seria melhor não encontrá-los.

Em obras audiovisuais, a composição do ambiente é parte da contação de histórias e aqui, funciona pouco e mal. Mesmo considerando que seja uma produção independente que consegue um resultado bem sólido em termos do sistema de RPG empregado, a questão visual está muito abaixo do que poderíamos esperar, não só pelo pouco polimento, mas também pela fraquíssima direção artística. Assim, espere por longos corredores repetitivos, salões sem qualquer identidade, paredes que parecem se repetir em looping, cenografia sem qualquer inspiração e iluminação sem qualquer tipo de criatividade. Ambientes genéricos, luz difusa e alguns pontos luminosos dispersos são alguns dos atributos que mais incomodam na obra.

Perceba: ser sombrio não significa a falta de fontes luminosas ou aspectos de contraste mais interessantes que consigam guiar a atenção, dar volume a cada um dos lugares visitados e até contar um pouco mais da história presente ali. Não estamos tratando aqui de glitches bizarros e outros problemas de colisão de objetos que entram um no outro, modelo se revirando na hora da morte ou outros bugs visuais mais evidentes – poucos atrapalham de fato na experiência – já que estes, por obrigação, acabam sendo consertados via patches e atualizações. O problema de concepção estética do projeto é que preocupa mais.

Outra questão que persiste em vários projetos assim é o posicionamento da câmera, principalmente em ambientes apertados. É impressionante como ela escolhe os piores pontos para se posicionar em momentos de combate em espaços menores, como salas, corredores ou lugares onde há, sei lá, uma mesa no centro. Não só por se colocar em um lugar péssimo para compreensão a adaptação da perspectiva, mas também pelas vezes que fica maluca sem se fixar, fazendo com que alguns segundos preciosos se percam.

Esse problema não é exclusivo de Hellpoint, claro, e talvez seja o maior calcanhar de Aquiles de games do gênero, mas aqui, particularmente, me senti mais incomodado que em outras experiências, seja por mortes bobas decorrentes de ter problemas em me localizar no cenário, seja porque nem era um canto tão complicado assim para se posicionar o ponto-de-vista. O maior pecado resultante disso é que nem sempre o jogo é desafiador de forma construtiva, como rege o maior mandamento do gênero. As vezes, um inimigo aleatório, ou um grupo deles, parece ser difícil pelo difícil, se é que você me entende. Não é do tipo “morra porque você não é bom o suficiente”, mas sim “morra porque queremos que você morra” ou “morra porque você não conseguiu se virar com imprevistos técnicos”. Não é o tempo todo, mas acontece, e é chato, bem chato.

Se por um lado a concepção pobre dos ambientes e da cenografia ajuda o console a rodar o bem-vindo e raro coop local, essa questão da câmera com tela dividida também precisa de muita paciência para se adaptar e driblar. Afinal, com menos área para se localizar, maiores as chances de se arrumar um péssimo ângulo de visão nos momentos-chave. Espero que este, mais do que os glitches, seja um problema a ser logo resolvido pelo time de desenvolvimento do jogo. Infelizmente, não consegui testar o coop online para poder opinar sobre o funcionamento desta função, mas como um todo, poder jogar com alguém pode ser uma forma bem convidativa de enfrentar esse mundo bastante cruel, principalmente para aventureiros de primeira viagem nesse sub-gênero tão em alta nos dias atuais.

Mesmo assim, Hellpoint é mais convidativo para os novatos se comparado a games como Dark Souls, Bloodborne, Sekiro ou mesmo outros semelhantes, como Nioh e Lords of Fallen. Não porque seja menor ou mais simples – são muitas mecânicas com as quais precisamos nos acostumar, incluindo a de salto, e que demandam muita tentativa e erro – mas porque realmente exige um pouco menos do jogador. Primeiro porque permite que se jogue com mais alguém (e não senti diferença na dificuldade quando jogando de forma compartilhada) e depois porque para quem não se importa de ir e voltar várias e várias vezes, dá pra se aprimorar bastante e se preparar bem para os combates mais encardidos. Ah, e depois de se superar um trecho, é possível aumentar ou diminuir a sua dificuldade para eventuais retornos, o que pode ajudar quem passou sofrido ou desafiar quem quer dar um passo adiante.

Ainda que o visual esteja bem abaixo da média, a sonorização seja somente ok na maioria do tempo e a jogabilidade tenha ali seus deslizes em termos de precisão de alcance, Hellpoint é competente, consegue trazer bons respiros para o gênero, bebe desavergonhadamente de suas inspirações e ainda consegue encontrar alguns lampejos de originalidade e identidade. A se considerar o investimento, para aqueles que tem rejeição por isso tudo, é melhor passar bem longe porque afinal, se o estilo não agrada, não há outro atrativo aqui que compense. Para fãs, é sim uma possibilidade tangível que pode divertir aqueles que já platinaram os games da From Software. E para os demais que ainda não se encantaram pelo formato, talvez valha a pena sofrer um pouco mais nos clássicos antes de se aventurar por este. Hellpoint é um bom soulslike, mas ainda precisa de muito mais para se equiparar aos que vieram antes dele.

Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela tinyBuild.

Veredito

Hellpoint é um bom, não ótimo, RPG de ação inspirado no sub-gênero soulslike com ambientação sci-fi competente, mas pobre. Se visualmente parece datado e sem inspiração, tem no seu sistema de combate – mesmo com alguns defeitos – seu atrativo. Traz aspectos inovadores, mas deve agradar somente os fãs do gênero que estiverem com expectativas controladas.

60

Hellpoint

Fabricante: Cradle Games

Plataforma: PS4

Gênero: RPG / Ação

Distribuidora: tinyBuild

Lançamento: 30/07/2020

Dublado: Não

Legendado: Sim

Troféus: Sim (inclusive Platina)

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Veredict

Hellpoint is a good, but not great, action RPG inspired by the soulslike sub-genre with competent but poor sci-fi ambience. If it looks dated and uninspired visually, it has in its combat system – even with some downsides – its appeal. It brings innovative aspects, but it should please only fans of the genre who have their expectations in check.


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