Há jogos que nos marcam de tal maneira que nos fazem acreditar que dificilmente serão superados. Foi exatamente assim que me senti em relação a It Takes Two. Lembro-me de tê-lo terminado com um amigo redator do site, e a impressão foi a de que estávamos diante da melhor experiência cooperativa já criada. Mais do que isso, ambos concordamos que o feito alcançado pela Hazelight tinha estabelecido um parâmetro bastante alto não apenas para o gênero de jogos cooperativos, mas também para os próximos projetos do estúdio.
Porém, quando o assunto em questão gira em torno do talentoso time liderado pelo excêntrico Josef Fares, parece não haver limites para a criatividade. Cada detalhe, por mais simples que seja, tem o poder de se transformar em uma grande surpresa em questão de segundos. E foi exatamente assim que Split Fiction rapidamente me conquistou, não apenas evoluindo a fórmula consagrada de seu antecessor em quase todos os aspectos, mas também elevando a Hazelight ao patamar dos melhores estúdios da atualidade.
Tudo começa por uma história que carrega uma grande carga emocional, se desenvolvendo gradativamente para manter os jogadores presos durante toda a campanha. No papel de Mio e Zoe, duas escritoras amadoras que sonham em ver suas obras publicadas por uma renomada editora, você e um amigo embarcam em uma jornada por simulações de mundos de fantasia e ficção científica, inspirados pela imaginação das autoras, para superar uma série de desafios.
Cada uma das protagonistas apresenta características únicas que moldam suas personalidades, sendo profundamente influenciadas pelos traumas de seus passados. Essas experiências dolorosas se revelam não apenas por meio de suas atitudes, mas também no design e na estrutura dos capítulos, que são baseados nas histórias que escreveram ao longo de suas vidas.
O ritmo do jogo é predominantemente frenético, com sequências de tirar o fôlego que se sucedem uma após a outra. Embora ainda haja pausas para admirar os visuais, se divertir com interações de cenário e acompanhar a evolução narrativa, é a ação que surge como a grande novidade na jogabilidade, causando aquela sensação de não querer largar o controle por nenhum instante.
Após a conclusão de um capítulo, novas informações sobre o passado e as motivações das personagens são reveladas. Não quero entrar em muitos detalhes sobre a história para não estragar a experiência de quem for jogar, mas posso afirmar que ela não decepciona ao tratar de temas importantes como a amizade e a superação de adversidades, além de contar com um cápitulo final dos mais insanos e geniais que já presenciei nos games.
Esse conceito de fortalecimento dos laços de amizade é extremamente relevante, especialmente considerando que a experiência mais uma vez deve ser compartilhada em sua integridade com outro jogador, com opções tanto para o modo online quanto local. Embora possa parecer redundante destacar isso após o sucesso alcançado por It Takes Two, ainda é digno de elogio o fato da Hazelight permanecer comprometida em oferecer uma campanha exclusivamente cooperativa, diante de um cenário em que muitas empresas têm se rendido ao modelo de monetização por meio de conteúdos adicionais pagos e passes de temporada.
Uma boa notícia que confirma isso é que, além de trazer novamente a opção de convidar alguém que não possua o jogo para compartilhar a experiência online com você por meio do Passe do Amigo, essa funcionalidade agora também está disponível via crossplay.
A proposta da jogabilidade segue a mesma linha de explorar diversos gêneros de jogos, prestando homenagem tanto aos clássicos quanto aos títulos mais modernos. Com transições de perspectiva e de câmeras, mecânicas de plataforma e um design de cenários digno de uma das melhores direções de arte recentes, Split Fiction surpreende a cada momento.
Algo que impressiona é como a Hazelight Studios soube extrair as melhores vantagens do motor gráfico Unreal 5 para apresentar visuais com cores vibrantes e excelentes efeitos de iluminação e sombras. Para completar, o jogo entrega uma performance sólida a 60 quadros por segundo no PS5, com uma parte técnica praticamente impecável, sem que haja oscilações, erros ou bugs que possam prejudicar a experiência, mesmo nas sequências mais intensas.
Essa evolução gráfica também é facilmente percebida nas animações das personagens, principalmente ao realizarem as ações de pulo, de esquiva e de combate. Tudo está mais fluido e os comandos respondem de acordo com a velocidade exigida. A captura de movimentos, por sua vez, resulta em uma excelente sincronia labial e expressões faciais detalhadas e realistas, especialmente nos casos de Mio e Zoe.
Toda essa qualidade na ambientação é reforçada por uma trilha e por efeitos sonoros eletrizantes, que sabem dosar bem não somente entre as sequências mais intensas e os momentos de tranquilidade, mas também se adaptar perfeitamente aos diferentes gêneros que o jogo explora. As composições orquestradas remetem aos clássicos presentes nas melhores produções de fantasia, enquanto os cenários futuristas são acompanhados por temas que abusam dos efeitos sintetizados e psicodélicos.
Não bastasse isso, a ideia de intercalar entre as realidades mantém o jogo sempre renovado, enquanto introduz mecânicas das mais improváveis para solucionar os puzzles trabalhando em equipe. Ao longo da campanha, você irá pilotar veículos, voar com uma wingsuit, disparar pistolas high-tech, lutar com espadas e chicotes, assumir a forma de curiosos seres mágicos e de objetos, e até montar nas costas de dragões. Basicamente, é como se as histórias que sonhávamos em viver na juventude se materializassem perante nossos olhos por meio de uma das melhores experiências interativas já produzidas.
Além de toda essa variedade, há também uma evolução maior das habilidades durante cada capítulo, o que resulta não apenas em uma boa curva de aprendizado, mas também confirma o vasto potencial criativo da Hazelight. Cada nível oferece mecânicas únicas, e elas jamais se repetem. Essas perspectivas totalmente diferentes de abordagem da jogabilidade também garantem um alto valor de replay. Acredite, após assistir aos créditos finais pela primeira vez, você sentirá uma vontade enorme de começar uma nova campanha para explorar o outro lado da aventura.
A jogabilidade segue abusando de diversos elementos de plataforma em sessões que variam entre planos 2D e 3D, até mesmo colocando as protagonistas em perspectivas alternadas simultaneamente. Muitas dessas sequências são acompanhadas por um tom maior de urgência, frequentemente exigindo que comandos sejam executados em sincronia em meio a intensas cenas de ação.
Essa demanda por respostas imediatas e as constantes mudanças na jogabilidade são uma boa maneira para testar o reflexo dos jogadores e desafiá-los a pôr em prática toda a experiência acumulada ao longo da jornada, além dos conhecimentos adquiridos com os outros jogos da desenvolvedora.
Mas isso também não significa que o nível de dificuldade esteja consideravelmente mais alto. Embora haja uma evolução natural das mecânicas, Split Fiction ainda é acessível até mesmo para aqueles que não são jogadores frequentes, tornando-se uma excelente opção para uma reunião entre amigos ou familiares.
Para reforçar essa proposta, o título oferece diversas opções de acessibilidade, permitindo ajustar o dano causado pelos inimigos, personalizar a ação dos botões para facilitar a resolução dos QTEs e a rotação do analógico, e até avançar para o próximo checkpoint. Além disso, em caso de morte, os pontos de controle são generosos, evitando a necessidade de refazer grandes trechos, e reposicionando o jogador perto de seu parceiro, mesmo que ele já tenha avançado pelo cenário.
A ausência mais sentida nesse ponto fica por conta da dublagem em Português Brasileiro. Ainda que ofereça legendas muito bem localizadas, inclusive adaptando falas das personagens para termos que usamos diariamente em conversas informais, a impressão é que o jogo funcionaria melhor se fosse totalmente dublado, principalmente para proporcionar uma melhor compreensão dos comentários feitos durante as sequências de ação.
Outro ponto de grande evolução em Split Fiction são as batalhas contra os chefes, que não só ocorrem com maior frequência, mas também se destacam pela originalidade na apresentação dos inimigos e nas mecânicas necessárias para derrotá-los. Em muitos casos, as lutas acontecem em trechos que exigem diferentes abordagens, explorando as mecânicas aprendidas ao longo daquele capítulo e evidenciando mais ainda a criatividade da equipe na idealização dos puzzles.
As atividades extras continuam presentes, mas os tradicionais minigames são mais sutis, dando espaço, em sua maioria, para as missões secundárias. Essas missões funcionam como pequenas histórias paralelas de menor duração, intercalando as temáticas de cada mundo para continuar apresentando novidades ao longo de toda a campanha.
Embora algumas dessas atividades sirvam como alívio cômico, muitas delas também apelam para a ação para estimular a competitividade entre os jogadores, sem comprometer em momento algum o rumo da história. Essas missões, sem dúvidas, guardam as melhores surpresas do jogo, portanto não devem ser ignoradas. Felizmente, a maioria está posicionada no caminho natural dos cenários, fazendo com que sejam encontradas facilmente.
Split Fiction é mais uma obra-prima para o repertório da Hazelight, comprovando que o estúdio soube preservar sua identidade, mas também evoluiu onde era necessário para entregar mais uma experiência cooperativa que é divertida e emocionante. Isso confirma que, muitas vezes, explorar a essência dos videogames ainda é a melhor maneira para cativar seu público, sem que seja necessário apelar para práticas predatórias ou tendências do mercado.
A combinação de mecânicas de jogo com soluções criativas, a narrativa cativante e a evolução técnica mostram o amadurecimento da Hazelight como desenvolvedora. Split Fiction é a melhor opção para quem busca uma experiência cooperativa, mas também uma das produções mais marcantes da atualidade. Em um cenário em que jogos assim são cada vez mais raros, nada mais justo que exaltá-los sempre que possível, ao mesmo tempo que nos perguntamos até onde Josef Fares e a excelente equipe dirigida por ele ainda podem chegar.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Electronic Arts.