É um tanto curioso, enquanto fã de longa data, olhar para o (muito merecido) crescimento em popularidade da Atlus. Antes uma pequena desenvolvedora cujos jogos mal se sabia quando chegariam ao Ocidente (e se chegariam, de fato), a sua transformação em uma das empresas mais queridas e aclamadas foi um processo movido muito pela força de uma subsérie específica, com o mundo tendo seu coração progressivamente tomado por ela.
Por mais merecido e justo que seja a aclamação ao redor de Persona (que é praticamente impossível se associar como um spin-off hoje em dia), lá atrás, nos idos do PlayStation 2, quando Shin Megami Tensei ainda era o nome mais conhecido, um outro ponto costumava ser um dos grandes chamarizes da Atlus. Sua criatividade e desejo por arriscar com cada novo lançamento, cada novo spin-off.
Devil Summoner: Raidou Kuzunoha vs. the Soulless Army, um RPG de Ação lançado em 2005 no Japão (2006 no Ocidente), foi um dos mais interessantes frutos dessa experimentação. Casando m plot mais voltado para a investigação de um mistério com um interessante combate de ação, o título trazia algumas inovações que mais do que mereciam ser revisitadas com as sensibilidades (e talentos) modernos da desenvolvedora. Algo que agora começa a se desenhar com seu relançamento na forma de RAIDOU Remastered: The Mystery of the Soulless Army. E, após mergulharmos profundamente em toda a jornada de Raidou, podemos dizer sem hesitação: este remaster é uma obra excepcional que brilha intensamente, entregando uma experiência que cativa do início ao fim.
RAIDOU Remastered gira em torno da complexa vida de Raidou Kuzunoha XIV, um estudante e detetive aprendiz que exerce a especial profissão de Devil Summoner, encarregado de proteger a Capital de ameaças sobrenaturais. A maestria com que o jogo tece essa dualidade é evidente desde os primeiros momentos, apresentando-nos não apenas o lado investigativo e mundano da vida em 1920 (com coletar informações, entrevistar figuras peculiares da época e explorar becos e edifícios charmosos), mas também a imersão no clima tenso de explorar locais perigosos e enfrentar demônios que espreitam nas sombras do Reino das Trevas.
Essa dicotomia entre o “comum” e o “misterioso”, quase uma assinatura da Atlus em suas obras (apesar daqui sair da contumaz variação entre mundo das sombras e escola), é casada aqui de forma brilhante, mantendo a narrativa fluida e o ritmo da aventura sempre envolvente, com uma transição suave entre a perspicácia de um detetive e a estratégia de combate de um invocador. Conforme a história avança para além dos capítulos iniciais, a trama se aprofunda de maneiras surpreendentes. O que começa como um caso isolado se desenrola em uma complexa conspiração que ameaça não apenas a Capital, mas o Japão inteiro.
Como já é de se esperar em jogos do estúdio, um dos seus grandes destaques são seus personagens secundários que o jogador conhece logo no início da jornada, como a jornalista Tae Asakura e o gato-demônio Gouto, e que vão ganhando cada vez mais profundidade e exercem papéis cruciais no desenrolar da trama, com suas motivações se entrelaçando cada vez mais com a de Raidou. Isso vem muito na força de reviravoltas bem construídas que mantêm o jogador constantemente envolto, e a narrativa, embora tenha seus momentos sombrios com a presença constante de demônios e o tema da “máquina da guerra”, se mostra menos focada no terror explícito e mais no mistério e na ação.
Uma das maiores distinções de RAIDOU Remastered em relação a outros títulos da Atlus é a sua abordagem ao combate. Esqueça o conforto estratégico do combate por turnos que é basicamente um padrão dos jogos da Atlus e de Shin Megami Tensei como um todo. Aqui, a tensão é amplificada pelo fato de que ele é um RPG de Ação, te colocando ativamente no meio da batalha. O sistema de combate é dinâmico e recompensa a experimentação.
O protagonista pode atacar diretamente com sua katana e arma de fogo e invocar demônios para lutarem ao seu lado. Muitos deles são rostos familiares para os fãs de Shin Megami Tensei e Persona, e podem ser convencidos (ou coagidos, graças ao icônico sistema de negociação, que não estava presente na versão original, tal qual a habilidade de invocar mais de um demônio ao mesmo tempo) a se juntar à sua causa. Outros elementos novos que essa remasterização traz é a possibilidade de usar habilidades de demônios em NPCs para auxiliar na investigação, algo que havia sido adicionado em King Abaddon e agora pode ser feito de forma automática aqui se você tiver o demônio correto.
Em batalha, a importância de usar as habilidades elementais e fraquezas dos inimigos, os buffs e debuffs dos seus demônios, e curar nos momentos certos, torna cada confronto estratégico. A curva de dificuldade é bem balanceada, introduzindo novos tipos de inimigos e desafios que exigem adaptação e a montagem de uma equipe versátil. Muito disso se dá pela proximidade maior com King Abaddon aqui também, com Raidou tendo ataques fracos, usados para recuperar MAG, e fortes, além da possibilidade de disparar sequências de tiro para atordoar inimigos. MAG é especialmente importante já que é através desse recurso que seus demônios irão atacar. A inclusão de bloqueios, esquivas e ataques especiais ajuda a deixar tudo bem divertido e moderno.
Quanto à movimentação, esse talvez seja o ponto mais incômodo do combate. Como é de se esperar, há uma certa rigidez, mesmo com a relativa atualização dos controles, na movimentação do personagem pelo mapa, mas é algo que se torna menos incômodo com o passar do tempo, e se integra à experiência. O remaster conseguiu polir o suficiente para que não se torne um obstáculo intransponível, permitindo que a fluidez do combate e da exploração se sobressaia.
Um dos maiores charmes e diferenciais de RAIDOU Remastered é sua ambientação. A representação de Tóquio durante a vibrante e turbulenta era Taisho (início do século XX no Japão) é rica em detalhes visuais e sonoros, misturando elementos históricos – como arquitetura oridental, trajes tradicionais e a efervescência de uma cidade em transformação – com o sobrenatural de forma convincente e estilosa. Graças ao período em que é ambientado, ele consegue se diferenciar bastante da estética pós-apocalíptica ou moderna vista em outros jogos da desenvolvedora. Talvez o mais próximo que tenha se visto desde então seja a ambientação de Shin Megami Tensei IV e mesmo ela não tem esse mesmo tempero.
A adição de alguns importantes ajustes no script e da dublagem ajudam a incrementar ainda mais a experiência, muito graças à qualidade do elenco americano. Explorar as ruas movimentadas, interagir com os moradores que reagem à presença de Raidou e mergulhar nos locais assombrados e distorcidos do Reino das Trevas cria uma atmosfera única e profundamente envolvente. O remaster, através de um trabalho primoroso, atualizou os visuais para HD, tornando os ambientes ainda mais imersivos, os designs de personagens e demônios mais nítidos, e a performance mais fluida (algo muito bem vindo durante o combate), tudo isso sem perder o estilo artístico original que torna este período tão cativante e distinto dentro da série SMT.
RAIDOU Remastered: The Mystery of the Soulless Army se prova um retorno não apenas bem-vindo, mas essencial para os fãs de RPGs de ação e da série Shin Megami Tensei. O jogo conseguiu aprimorar a experiência original de forma eficaz, especialmente do ponto de vista gráfico, e a jogabilidade, apesar de algumas de suas peculiaridades da época, se mantém viciante e envolvente. Cabe dizer também que algumas importantes adições de qualidade de vida ajudam a elevá-lo, incluindo a retirada de encontros aleatórios (substituídos por uma nova mecânica que acelera o grind de experiência) e a adição de marcadores de objetivo (que infelizmente não podem ser desativadas para os que buscam uma experiência mais próxima do original).
Para quem tem um carinho especial pelo jogo original no PS2, ver este mundo fascinante e esses personagens carismáticos com visuais mais nítidos, modelos mais detalhados e uma performance mais fluida é uma experiência fantástica e cheia de nostalgia positiva. As melhorias de qualidade de vida, como tempos de carregamento reduzidos e os ajustes no sistema de batalha, contribuem significativamente para a fluidez da jornada.
No geral, RAIDOU Remastered é um título que, talvez subestimado em sua época, merece finalmente ser redescoberto por uma nova geração e revisitado pelos fãs. É um Action RPG com personalidade própria, uma atmosfera inigualável e um combate desafiador que recompensa a estratégia. Se você busca uma aventura cativante e sobrenatural com um toque de detetive, este é o seu jogo.
RAIDOU Remastered: The Mystery of the Soulless Army está disponível para PS4, PS5, Xbox Series, Switch, Switch 2 e PC. Não possui suporte ao português do Brasil. Esta análise é da versão PS5 e foi realizada com um código fornecido pela Atlus e SEGA.