Correr de cara para o vento em uma das máquinas mais avançadas do mundo, desafiando a física e os limites aceitáveis do risco e da recompensa, é a essência do esporte a motor. O nosso fascínio por velocidade é uma tradição que atravessa décadas, e nada mais simbólico do que as competições em monopostos de fórmula, cuja representação no universo digital se confunde com a própria história dos videogames.
Enquanto a tradição da franquia F1 da EA busca a cada nova edição anual se aproximar dos princípios do realismo e da fidelidade tanto nos quesitos gráficos quanto na mimetização do mundo real, com pilotos, pistas e carros transpostos em detalhes impressionantes, Formula Legends, desenvolvido pelo estúdio italiano (tinha que ser!) 3DClouds, se apoia no resgate afetivo das corridas da categoria.
O jogo, sem os devidos – e caríssimos, imagino – licenciamentos oficiais, traz uma infinidade de carros das diferentes eras da Formula 1 em uma verdadeira ode que se inicia nos anos 1960 e que chega à atualidade com transformações significativas, mas se apoiando na mesma essência: ir mais rápido. São mais de 110 veículos diferentes divididos nas 16 gerações, cada qual representando equipes históricas em nomenclaturas livremente inspiradas nas reais, mesmo que vários da mesma geração guardem estatísticas idênticas uns aos outros, com diferenças somente estéticas entre eles.
Junto com eles, tem-se à disposição 14 circuitos, dos mais clássicos traçados europeus aos mais futuristas desenhos ao redor do mundo, tal como os mais de 200 pilotos que fizeram seus nomes ao longo do tempo. Claro que por motivos óbvios, nomenclaturas são diferentes daquelas que conhecemos (Interlagos se tornou o Circuito do Carnaval, por exemplo), mas as referências são diretas e fica fácil para qualquer fã reconhecer suas inspirações reais.
Não demora para que notemos a mais escancarada diferença entre este projeto com outros do gênero, que pode ser percebida no estilo fofo, quase que em um aspecto de brinquedo, assumido pela produção. São literalmente carrinhos que reproduzem com bastante fidelidade os diferentes designs que marcaram décadas, mas em versões com uma textura macia, formas delicadamente exageradas e um aspecto amigável.
Estes visuais cartunescos e ultra coloridos refletem um estilo menos compromissado com qualquer sensação de recriação supra realista do universo das pistas de corrida, traduzindo-se no tom muito mais arcade quando comparado com sua contraparte rica. Portanto, aqueles que procuram algum tipo de especialização, com gestão de equipes, acerto de carro, ajustes em freios, balanceamento e coisas assim não encontrarão aqui a mesma profundidade da franquia F1.
Com uma jogabilidade direta ao ponto, portanto, Formula Legends se foca em nos fazer manter o carro no asfalto. Isso não significa, porém, que a preocupação aqui seja só fazer a volta mais rápida com o dedo afundado no acelerador, porque afinal de contas, questões estratégicas são parte da experiência da categoria. A diferença, nesta inevitável comparação, está nos elementos com os quais o jogador precisa se atentar, mesmo quando escolhe formas mais leves e casuais de experienciar a obra.
Há barras bastante instintivas de se identificar que cuidam do desgaste de elementos centrais do nosso possante: integridade (ou o famoso HP); combustível e pneus. Mesmo nas corridas mais curtas, nenhum destes elementos é infinito o suficiente para um grande prêmio completo, o que significa que pit stops são obrigatórios em todas as situações. Esquecer de se preocupar com qualquer destes elementos é abandono garantido.
A boa notícia é que nada precisa ser custoso ou complicado demais, e o sistema de paradas é um simples, porém divertido QTE onde temos que acertar uma combinação sequencial dos quatro botões de rosto do controle que simbolizam os pneus do carro. Além disso, tanto as barras de combustível quanto de vida são enchidas com os gatilhos L2 e R2, o que torna o momento algo tenso, mas interessante. Quanto mais rápido se fazer tudo isso, mais vantagem no retorno à pista.
Assim, ter que fazer paradas não é um problema, mas um tempero especial para o game. Mais do que isso, saber quando entrar para os boxes pode mudar os rumos de uma corrida. Parece corriqueiro, mas decidir quando arriscar mais uma volta, sabendo que o desgaste afeta o desempenho, ou quando entrar mais cedo, mesmo com o risco de uma mudança climática, é um verdadeiro quebra cabeças.
Aliás, o clima dinâmico é um quesito importante e muito bem implementado em Formula Legends. Corridas inteiras sob o sol escaldante ou sob uma tempestade torrencial são diferentes entre si, mas tudo fica mais interessante quando uma coisa muda para a outra no meio da disputa. Correr no sol com pneus molhados significa que a borracha se esfarela em uma, duas voltas no máximo. O contrário transforma cada volta em uma corrida sobre sabão.
Agora, imagine estar em uma disputa apertadíssima, abrir 10 segundos do vice-líder, fazer sua parada obrigatória perfeita e, logo em seguida, aparece o aviso de chuva iminente, dando tempo do adversário escolher o composto certo, mas nos abrigando a parar de novo na volta seguinte. É raro, mas parece que acontece com muita frequência neste jogo.
A tração, não só pela dicotomia entre piso molhado ou seco, é o ponto chave no controle de cada situação. Usar da máxima simplória de acelerar e frear com toda potência pode não ser o suficiente, dado que travar o freio é o caminho mais curto para perder o carro e sair da curva diretamente para o muro, se tornando passageiro de si próprio como diria um certo narrador. Tentar retomar a aceleração de súbito, por sua vez, é o jeito mais fácil de se irritar com o carro arisco se jogando para fora do traçado.
Esta prática leva um certo tempo, mesmo para quem já tem costume com outros games de corrida. O meu ridículo abandono na prova de Mônaco que compõe a minha experiência da primeira hora (que pode ser conferida no vídeo que abre esta análise) é um sinal de que o domínio da sensibilidade dos controles precisa de prática e de um certo feeling. A sugestão aqui é fazer, além do obrigatório tutorial, algumas boas corridas individuais até se estar pronto para a campanha.
Enquanto esta dirigibilidade confere um aprofundamento vertical muito sólido na experiência, o mesmo não ocorre plenamente com a física das colisões, que parece afetar a nossa máquina de modos diferentes dos adversários, deixando uma impressão esquisita de injustiça e desequilíbrio tal qual era na era Top Gear, onde qualquer encontro é prejudicial, quase sempre, somente ao jogador.
Há, por exemplo, um tipo de atração magnética em colisões traseiras, que cria um efeito inesperado de que ao atingirmos um adversário, ficamos um tempo grudados a ele. Toques laterais também nos desestabilizam de formas quase sempre irreversíveis, sobretudo porque tanto a marcha a ré quanto a recolocação na pista são bem demorados e punitivos. Disputas em terreno molhado aumentam tais efeitos exponencialmente.
Ainda que esportes a motor de fórmula sejam essencialmente avessos ao contato, mesmo que mínimo, o sentimento de que somos afetados de formas diferentes na comparação com a CPU é um fator de desequilíbrio notável. Espalhar em uma curva para cima de outro carro funciona em jogos de turismo, e aqui deveriam ter mesmo um grande prejuízo, mas sempre para ambos os envolvidos igualmente.
De qualquer forma, a recomendação mandatária é, definitivamente, manter distância de qualquer confusão, algo que pode ser ainda mais complicado de se fazer porque a inteligência artificial aqui é especialmente deficitária. Todos os demais carros do grid parecem muito competentes em performar como um verdadeiro balé sincronizado, mas reagem mal à nossa presença, na maioria das vezes a ignorando.
Nas dificuldades mais elevadas há uma certa disputa em pista, mas muito pouco reativa ao que fazemos. Nas mais leves, eles cometem erros tão grosseiros quanto os nossos, porém nada disso parece levar em conta um comportamento mais sofisticado na relação para com o outro. Mesmo quando vemos uma disputa a distância entre dois competidores controlados pelo computador, tudo é insípido e não há qualquer variável a ser notada.
Esta pouca capacidade de emular uma personalidade competitiva ou que reage ao ambiente está evidente até quando algum deles se torna retardatário e há um aviso explícito de bandeira azul (aquela que determina que o carro que leva volta precisa abrir para que possamos passar sem resistência) que não muda em nada o traçado ideal que estão fazendo. Ou seja, nem quando o comando é para saírem da frente, eles o fazem.
Detalhes, porém, quando considerados em seu contexto. Formula Legends, sem toda aquela pompa decorrente do caráter espetaculoso do esporte, é um jogo de corrida muito competente ao se aprofundar nos quesitos certos, sem se levar a sério demais. Visuais e jogabilidade podem parecer simples, e de fato o são em uma certa dimensão, mas nem por isso deixam de ser especialmente bem cuidados.
Os efeitos climáticos, em especial, são muito competentes pela mudança brusca dos visuais e da visibilidade, algo ainda mais potencializado pelo bom trabalho de desenho de som. A variação da HUD de geração em geração é um charme a mais que demonstra um cuidado raro, digno de quem se importa com o que está fazendo.
Há uma evidente paixão pela densa e fascinante história do automobilismo que, ao não poder (mesmo que quisesse) se apropriar de marcas e nomes célebres, dedica-se à essência mais nuclear da Formula 1. A campanha atravessa décadas de muitas alegrias, algumas das quais nós brasileiros partilhamos graças aos pilotos nascidos cá que marcaram seus nomes, mas ainda assim, o que está sendo festejado aqui não é o particular, mas sim o que verdadeiramente move o fã, aquele que cultua não o personagem, mas sinestesicamente o zunido ardido de um belo motor V6 e o cheiro da borracha queimada.
Formula Legends está disponível para PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series, Switch e PC com legendas em português do Brasil. Esta análise é da versão PS5 e foi realizada com um código fornecido pela 3DClouds.