Ainda no primeiro ano do PS4, os fãs das franquias da FromSoftware estavam no aguardo de um título para a nova geração. Lords of the Fallen, desenvolvido pela alemã Deck13, surgiu nesse meio tempo para preencher esse vácuo. No entanto, devido a muitos problemas técnicos que demoraram a serem resolvidos e ofuscado por ser considerado clone de Demon’s Souls, o jogo teve uma recepção morna. Dois anos e meio depois, a desenvolvedora tenta corrigir sua reputação com The Surge, seu novo RPG de ação. Será que esse tempo foi o suficiente para a empresa fazer seu dever de casa e formar uma identidade própria para seu jogo?
Um subtítulo para The Surge poderia ser "O Pior Primeiro Dia de Trabalho". Explico: imagine que você está desempregado e o mundo ruma para seu fim. Tentado pelas promessas de um futuro mais estável (e de vários benefícios), você aceita uma vaga de emprego em uma empresa de alta tecnologia, empenhada em salvar o planeta. Para aumentar a eficiência de seu trabalho, será acoplado em seu corpo um exoesqueleto industrial, isto é, pernas e braços mecânicos. No entanto, durante a instalação algo dá errado e o exoesqueleto é implantado à força. E sem anestesia. Não conseguindo suportar a dor, você desmaia. Ao ser acordado – por um robô tentando arrancar sua perna –, você percebe que algo catastrófico aconteceu nas instalações da empresa. Máquinas e humanos tornaram-se hostis e tudo parece querer te matar. É nesse clima amistoso que começa sua jornada.
A história do jogo é um amálgama de temas já abordados em livros e filmes de ficção científica (a referência mais recente para mim seria Elysium). Estamos em um futuro distópico, porém, não tão longe de ser uma possível realidade. Anos de exploração dos recursos naturais em prol do desenvolvimento e da obtenção de lucros levaram o planeta ao famigerado aquecimento global. Somado a isso há também guerras, doenças e fome. Em contraposição, houve um grande avanço da tecnologia, a qual em parte é a culpada pela a atual situação, como também pode ser considerada a solução dos problemas.
Liderando a frente tecnológica, encontra-se a CREO, uma megacorporação que enriqueceu com a pesquisa e desenvolvimento de aparatos cibernéticos e inteligência artificial avançada. Seus vastos recursos financeiros e tecnológicos frente a um planeta desgastado resultam na criação do Projeto Resolução, um plano em fase de implementação que promete renovar a atmosfera terrestre e "curar" o planeta.
Warren, o protagonista, é recrutado a trabalhar para a CREO, recebendo as boas-vindas calorosas mencionadas anteriormente. O jogador, assim como Warren, não faz ideia do que aconteceu pós-desmaio, e desse modo vocês vão desvendando juntos os mistérios no avançar do jogo. Assim como em Lords of the Fallen, porém de uma maneira um pouco mais elaborada e expositiva, a história é contada por meio de diálogos com NPCs e arquivos de áudio encontrados pelas instalações da CREO.
Outros recursos narrativos são usados de maneira criativa para criar a ambientação desse mundo tecnológico, como mensagens trocadas por e-mail entre funcionários e telões com entrevistas e transmissões de motivação e valor típicos do departamento de marketing de grandes empresas. O ambiente em si também dá pistas macabras de que algo deu errado, seja por pichações, seja por rastros de sangue e corpos encontrados.
A história é boa, mesmo não sendo muito profunda e tendo enredos muitas vezes previsíveis. O jogo, no entanto, por diversas vezes falha em manter o jogador envolvido, trazendo uma distribuição desbalanceada de narrativa pela jornada, deixando para a parte final uma trama mais bem elaborada. Diversas foram as vezes em que fiquei andando pelos ambientes sem me lembrar qual era meu objetivo. A ausência de um histórico ou log de missões foi um fator que também contribuiu para essa confusão.
O protagonista, assim como os NPCs, são algo que a desenvolvedora ainda não conseguiu atingir um patamar satisfatório. Warren é um personagem bem genérico e, a não ser por algo óbvio apresentado logo no início do jogo, nada se sabe de seu passado. NPCs servem como porta de entrada para missões secundárias, porém também são bem rasos, com uma ou duas exceções. A dublagem e os diálogos, por outro lado, são competentes (e o jogo está com legendas e menus localizados para o português brasileiro).
A ambientação em The Surge é bem elaborada e insere o jogador de maneira crível em um cenário que mistura alta tecnologia, indústria e destruição. Somado a isso, há um design de som competente, envolvendo o ambiente com sons sintéticos e metalizados, barulho de máquinas, etc. Um detalhe bobo, mas que eu gostei, foi poder ouvir o barulho discreto das engrenagens do seu exoesqueleto ao caminhar por ambientes mais silenciosos.
O jogo inteiro se passa nas diversas instalações da CREO, que é um complexo gigante. O mapa, no entanto, não é aberto, sendo composto de regiões menores, conectadas por meio de estações de transporte. Os ambientes a serem explorados são grandes, tanto vertical quanto horizontalmente, e possuem diversas passagens, caminhos secretos, atalhos e conexões, formando verdadeiros labirintos. Há quem goste de um level design desse tipo; no entanto, eu achei que ficou um pouco exagerado e difícil de se familiarizar, com muitos corredores parecidos e pouca sinalização. Seria muito bem-vinda a inclusão de um mapa para facilitar a navegação.
Apesar de ambientes grandes, uma sensação claustrofóbica irá perseguir o jogador, pois muitas passagens são formadas por salas e corredores apertados – e isso parece ter sido feito de maneira proposital para o bom posicionamento de inimigos, sempre prontos para um ataque surpresa. Uma adição que eu achei bem sacada foi a inclusão de elevadores de mão ao invés de escadas. Nada de ficar subindo ou descendo degrau por degrau: com o apertar de um botão, você vai agilmente para outra plataforma.
Os gráficos, assim como em Lords of the Fallen, são de alta qualidade, embora um pouco menos detalhados, adequados a uma temática industrial. Em Lords, o que mais se destacava eram os efeitos de partículas (uma modinha na época). Em The Surge, o destaque vai para a iluminação. Seu exoesqueleto possui lanternas e existem muitos ambientes pouco iluminados. Os efeitos de luz são bem implementados, com feixes de luz respondendo à movimentação da armadura, iluminando somente pedaços específicos do cenário, o que adiciona um ótimo clima de tensão durante o combate.
Já que mencionei o combate, vamos a ele. Confesso que no começo, quando foram divulgadas as primeiras informações a respeito do jogo, fiquei ressabiado de que as lutas seriam de movimentação pesada e rígida. Felizmente, isso não é totalmente verdade. Há uma boa variedade de classes de armas, desde as parrudas e que causam grande dano, até mais leves (e, logicamente, de menor dano). Esquivar de ataques é feito de maneira rápida e não consome tanto vigor, algo justificável, já que seu personagem usa uma armadura cibernética. Em suma, o combate é bem feito e prazeroso de experimentar com diversas abordagens.
Jogadores da franquia SoulsBorne e de Nioh se sentirão em casa com as mecânicas já consolidadas das lutas. Atacar, esquivar e defender consome vigor, o qual quando zerado deixa seu personagem vulnerável por alguns instantes. Além de esquivar para trás e para os lados, também é possível pular ou agachar, dando novas opções de defesa e contra-ataque (na prática, entretanto, são difíceis de executar e logo você se esquece). A temática futurista acaba não se encaixando para o uso de magias, porém, existe uma barra de energia que é utilizada para uma nova mecânica, a ser explicada mais à frente.
Cada arma (e são várias) se encaixa em uma classe, as quais possuem um conjunto variado de movimentos e combos. Diferente dos outros jogos, não há um botão para ataque forte e outro para fraco, mas sim um botão para ataque horizontal e outro para vertical. Isso é feito para possibilitar uma mecânica prazerosa que o jogo insere: a possibilidade de arrancar membros do inimigo.
Ao focar em um adversário, o jogador escolhe qual parte do corpo quer atingir (braços, pernas, cabeça ou tronco). Isso influencia na movimentação do personagem e justifica a divisão entre ataques horizontais ou verticais, baseado em qual será mais efetivo. Atacar constantemente uma parte específica do corpo protegida por armadura dá a chance de o jogador decepá-la, possibilitando arrancar a arma ou obter peças daquele pedaço de armadura, que posteriormente pode ser construído ou aprimorado para seu próprio uso.
Essa mecânica de desmembramento dá uma sensação constante de recompensa, mas tem seu custo: partes do corpo protegidas por armadura recebem muito menos dano de sua arma e dão mais estabilidade ao inimigo, prolongando o combate e gastando mais vigor, abrindo espaço para o jogador ser contra-atacado. Isso adiciona um elemento tático às lutas que gostei bastante. Você quer arriscar e tentar extrair peças de armadura, ou prefere ser mais cauteloso e terminar logo a luta, preservando sua vida para os próximos inimigos? Não importa sua estratégia, pode se preparar para combates difíceis e muitas mortes.
De modo a fatiar com sucesso pedaços do adversário, é necessário atingir certo nível em uma barra azul de energia. Essa barra é preenchida ao efetuar ataques bem-sucedidos. Quando atinge o nível necessário e a vida do inimigo está baixa, apertar Quadrado inicia uma animação do personagem arrancando de maneira sangrenta e bem violenta (e em câmera lenta) a parte do corpo escolhida. As animações de execução são bem variadas, mas para aqueles que não gostam, é possível configurar para diminuir a quantidade de vezes em que acontecem.
A barra de energia não é perene e vai decaindo se o jogador fica muito tempo sem atacar. Isso acaba dando um senso de urgência e um incentivo para o foco num combate mais ofensivo, uma tática próxima do que era visto em Bloodborne, guardadas as devidas proporções. A energia também pode ser gasta para outras coisas como aumentar o poder de ataque, por exemplo, ao se equipar itens específicos, chamados de implantes.
O personagem possui um pequeno aliado nas lutas: um drone. Em um primeiro momento, ele parece possuir funções inúteis ou pouco efetivas, pois causa pouco dano ao inimigo e ainda consome sua barra de energia. No entanto, quando bem utilizado, pode ser sua salvação em momentos de aperto, ficando a cargo do jogador experimentar quando e como ele deve ser acionado.
Essas novas mecânicas no combate, além de outras relativas à exploração do ambiente, permitem que The Surge tenha sua própria identidade, se distanciando dos jogos nos quais a desenvolvedora se inspirou e fugindo das críticas de ser "apenas um clone" da franquia da FromSoftware. Há também outras inspirações no título, como elementos metroidvania e até uma temática à la Resident Evil em certas porções da narrativa, mas tudo inserido com o objetivo de variar a jogabilidade e a diversão, e não com o propósito de se explorar em cima do que outros criaram.
Algumas mecânicas que tiveram sua estreia em Lords of the Fallen retornam em The Surge. Ao morrer, sua experiência, que no jogo é apropriadamente denominada de "sucata", é deixada no local da morte, só que você tem apenas dois minutos e meio para recuperá-la, ou ela é perdida para sempre (matar inimigos dá um pequeno aumento neste tempo). É possível também armazenar a sucata para não perdê-la ao morrer, no entanto, aqueles que se arriscam a carregá-la em grandes quantidades recebem alguns benefícios. Fora isso, ficar um bom tempo sem utilizar as estações de cura ou morrer mantém um multiplicador que vai gradativamente aumentando a quantidade de sucatas recebidas de inimigos derrotados.
Uma das críticas ao combate é a pouca variedade de inimigos. Basicamente, existem inimigos humanos e máquinas. Os humanos possuem dois ou três modelos diferentes, sendo reutilizados exaustivamente com diferentes pedaços de armaduras e armas, alterando o estilo de luta. As máquinas são um pouco mais diversificadas, porém, ainda em um número limitado de variações. Em compensação, cada máquina possui um padrão de ataque e pontos fracos fora do comum, o que requer abordagens mais calculadas e experimentação com diferentes armas.
Há também uma quantidade bem pequena de chefes e quase nenhum subchefe, o que é de certo modo desapontador. A batalha contra cada um, entretanto, possui um design criativo e bem pensado, com algumas acontecendo em estágios, dependendo do nível de vida do adversário. Assim como em Lords of the Fallen, há requisitos ocultos opcionais para se vencer cada chefe, oferecendo melhores recompensas para aqueles que os descobrem. Em todo caso, ao vencer, uma arma única é obtida.
The Surge é um RPG de ação. No entanto, ele é mais focado na parte da ação do que na parte de RPG, o que contribui para distingui-lo de outros títulos. Não se preocupe, ainda existe uma camada de RPG no jogo, mas ela é mais simplificada quando comparada a jogos do mesmo gênero. Apesar disso, ela ainda é complexa o suficiente para oferecer ao jogador uma experiência personalizada, só que de uma maneira fora do convencional.
Por exemplo, subir de nível está diretamente relacionado ao seu exoesqueleto, ao invés de ser representado por pontos a serem distribuídos em diferentes atributos do personagem. A cada novo nível, a potência do núcleo do seu traje aumenta em um ponto. Cada peça de armadura possui um custo de potência ao ser equipada, geralmente oferecendo níveis de proteção e bônus melhores a um custo maior. Isso faz com que o jogador gerencie constantemente o que equipar no personagem, baseado na quantidade de potência de núcleo que tem disponível.
Vida, vigor, dentre outros atributos não são alterados por nível. Para melhorá-los é necessário equipar implantes, que são itens de efeitos variados que podem trazer benefícios permanentes ou consumíveis que gastam energia. Cada um também tem um custo de potência do seu núcleo e há um espaço limitado de quantos podem ser equipados, espaço este que aumenta conforme o personagem atinge potências de núcleo pré-determinadas.
Além das melhorias do personagem, é possível também aplicar upgrades em armas e armaduras. Isso é feito por meio da coleta de partes de equipamentos desmembradas de inimigos em um processo de grinding que pode se tornar tedioso caso você queira experimentar diferentes conjuntos. Outro aspecto interessante é que equipar-se com um conjunto completo de armadura garante algum tipo de bônus, como melhorias de vida ou possibilidade de não sofrer certo tipo de dano.
Nas minhas 35 horas de jogo, finalizei a campanha principal e fiz algumas sidequests. Deixei para trás muitos arquivos de áudio e provavelmente algumas dezenas de salas secretas, ou seja, há bastante conteúdo a ser aproveitado. Se isso não é o suficiente para você, há ainda a opção de New Game Plus, em que se inicia um novo jogo mantendo seus itens e nível atuais, com inimigos mais fortes e mais alguns adicionais pelos cenários. Cada novo jogo também habilita novos níveis de aprimoramento para as armas e armaduras, que vão melhorando até o NG+++.
Para finalizar, gostaria de fazer um comentário mais nerd a respeito da magia negra que a Deck13 fez no quesito otimização. O jogo tem menos de 6 gigabytes de tamanho, sendo espantoso ver o grau de compressão que a desenvolvedora conseguiu atingir e ainda manter os gráficos em um nível tão alto. Vale também ressaltar que o tempo de carregamento é muito rápido e foram raros os bugs que encontrei, mostrando a boa capacidade técnica que o time conseguiu.
Se você tinha suas ressalvas a respeito do jogo por causa do passado não tão bonito de Lords of the Fallen, pode ficar despreocupado: The Surge é um ótimo título em todos os aspectos.
Veredito
A Deck13 fez a lição de casa com The Surge, trazendo um jogo melhorado, mais robusto e de alta qualidade técnica quando comparado a Lords of the Fallen, seu título anterior. Ainda existem elementos inspirados nos jogos das franquias SoulsBorne, porém, é bom ver que a desenvolvedora encontrou sua própria identidade, adicionando mecânicas que dão um novo respiro ao modelo criado pela FromSoftware. O combate é tático, baseado não só em derrotar o inimigo, mas também em escolher em qual membro do corpo atingi-lo, com a possibilidade de remover partes de sua armadura que posteriormente podem ser criadas e adicionadas a seu próprio arsenal. É um RPG de Ação mais focado na parte da ação, com mecânicas mais simplificadas de RPG, porém, ainda detalhadas e profundas o suficiente para oferecer ao jogador uma experiência personalizada com seu personagem. Apesar de ainda trazer um protagonista genérico e NPCs sem muita simpatia, além de mapas um tanto confusos para memorizar, The Surge é um ótimo jogo de alta dificuldade, devendo estar no radar de quem gosta de desafios e de uma temática de ficção científica.
Jogo analisado com código fornecido pela Focus Home Interactive.
Veredito
Veredict
Deck13 did their homework with The Surge. When compared to Lords of the Fallen, the developer’s previous title, this new action-RPG has greater technical quality and is more polished. The game still has some inspiration on games from the SoulsBorne franchise, but it’s good to see that the developer has found its own identity, bringing new mechanics that refresh the model created by FromSoftware. Combat is tactical, based not only on beating an enemy, but also on choosing which body part should be hit, being possible to remove pieces of armor that later can be added to your own arsenal. This is an action-RPG with a focus on the action part. The RPG aspects are a little bit simplified, but still detailed and deep enough to offer a personalized experience to the players and their character. Despite still having a generic protagonist and NPCs that you don’t really care about, as well as places that can be a real maze to memorize, The Surge is a great game with high difficulty that should be on the radar for players who like real challenges and a sci-fi theme.