Quando a atual geração de consoles chegou ao mercado e trouxe consigo uma tendência que até então era bastante tímida – a de remasterizar e vender novamente jogos mais antigos – houve um grande questionamento sobre a necessidade disso, sobretudo quando o trabalho era feito com produções com um ou dois anos de vida, e a nova versão era obviamente uma forma de estender o lucro e, ao mesmo tempo, rechear um catálogo ainda carente de bons títulos. Todos nós acompanhamos esse movimento, as vezes com críticas, com elogios ou até fazendo piadas. Mas, sabemos: alguns títulos merecem receber uma versão aprimorada, merecem ser revividos para fãs antigos e, principalmente, merecem alcançar novos públicos. A questão é: Ni No Kuni: Wrath of the White Witch pode fazer parte desse seleto grupo?
Para quem não lembra (ou não acompanhou), Ni No Kuni é um jogo da Level-5 (o mesmo de Dragon Quest VIII) lançado em 2010 para Nintendo DS no Japão e, mais tarde, para o Playstation 3. Só em 2013 chegou ao ocidente, como quem não quer nada, e ganhou notoriedade graças ao visual incrível, ao sistema robusto de RPG com grande inspiração nos grandes clássicos dos anos 1990 e começo dos anos 2000, e à uma narrativa cheia de simbolismos, sensibilidade e fascínio. Sem muito alarde, logo se tornou um clássico daquela geração, e naturalmente ganhou uma continuação em 2018. Com a franquia alcançando o status de primeira grandeza, era questão de tempo até recebermos a versão atualizada do primeiro game. E ela chegou.
Ni no Kuni: Wrath of the White Witch Remastered nos apresenta a jornada de Oliver, um garoto comum, de uma cidade comum, que passa por uma grande perda e, ainda em luto, se vê em meio a uma grande aventura repleta de magia para salvar um mundo desconhecido e o seu próprio e, de quebra, buscar uma última chance de restaurar o que havia de mais importante em sua vida. Falar mais do que isso seria entregar spoilers, mesmo que o jogo original já tenha quase 10 anos. O importante é compreender que esse é um game que aposta todas as fichas na fantasia, com direito a dragões, fadas, poções e castelos, com um grande diferencial: é a visão muito particular e intimista de tudo isso, uma versão Ghibli de fantasias medievais.
Explico melhor: o jogo foi desenvolvido em parceria com esse grande estúdio japonês de animação, responsável por clássicos animes como A Viagem de Chihiro, O Castelo Animado e Princesa Mononoke, só para ficar em alguns dos mais conhecidos. Sob a batuta do mestre Hayao Miyazaki, os Estúdios Ghibli se tornaram uma referência mundial na arte de se contar histórias com profundidade e delicadeza, equilibrando muito bem questões estéticas e temas que, ao tratar do fantástico, sabem muito bem falar do humano, da nossa psiquê e das nossas relações sociais. Essa breve explanação sobre o histórico da produtora nos dará subsídios para entender melhor o que essa parceria trouxe para o game.
Já no PlayStation 3, o jogo ganhou notoriedade pela qualidade audiovisual, algo que bebia claramente das inspirações artísticas já citadas. Com passagens animadas em 2D tradicional e outras em 3D que se aproveitam dos recursos de cel-shading (aquele filtro que busca dar um aspecto de desenho animado para modelos tridimensionais), o game abusava de belos cenários que passeiam por desertos escaldantes, vilas pacatas, densas florestas, cavernas escuras e castelos suntuosos, bem como trazia belos designs tanto para personagens humanos quanto para os tais familiares, criaturas que irão acompanhar – ou atrapalhar – os jogadores ao longo desta incrível jornada.
A versão remasterizada de 2019, rodando a 1080p e 60 quadros por segundo, é um verdadeiro deleite para os olhos. Tudo o que já era incrível se torna ainda mais deslumbrante. Dos cenários mais tranquilos às batalhas épicas, tudo é mais polido e mais fluído. E ainda que não conte com o HDR, há a possibilidade de expandir a experiência para o 4K para aqueles que tem o equipamento adequado para isso. Porém, há algo importante a se considerar: mesmo que o jogo possa receber todos os adjetivos superlativos quanto a sua qualidade gráfica nesta versão remasterizada, a superação em relação à versão da geração anterior não chega a ser estrondosa. Na verdade, é algo para se reparar pelos detalhes. Ou seja, se considerar o copo meio vazio, o jogo muda pouco ou quase nada para quem já se aventurou por esse universo. Já pensando de forma otimista, é o ápice do que esse mundo maravilhoso pode oferecer.
Em outras palavras, as melhorias desta versão, quase que obrigatórias para algo que se pretende vender como uma verdadeira remasterização, e não só um port, não chegam a mudar o jogo em si, nem mesmo a percepção do conjunto da obra. É essencialmente o mesmo game, com visual melhorado. Ainda que seja uma afirmação um tanto quanto óbvia, ela tem seu motivo: para aqueles que já exploraram Ni No Kuni antes em sua plenitude, talvez ajustes visuais não sejam o suficiente para justificar uma nova investida – de tempo e de dinheiro – nessa nova versão. Para aqueles que não tiveram essa chance de se aprofundar no game ou mesmo que acabaram deixando-o passar batido, esse é certamente o momento perfeito para apreciá-lo no ápice.
Uma vez avaliada a forma como as melhorias gráficas foram implementadas, é importante dizer: para fãs de RPG, e mais especificamente de JRPG, o título é mais do que obrigatório. Primeiro, por essa concepção estética que abusa de um estilo artístico oriental refinado, cheio de inspirações não tão óbvias e de um encanto ímpar. Fazem parte do pacote uma construção sonora muito cuidadosa, com dublagens, tanto em inglês como em japonês, com muita qualidade e personalidade, algo que faz falta em passagens com diálogos longos só por texto. Isso sem contar toda uma composição musical magistralmente interpretada pela Orquestra Filarmônica de Tóquio. Efeitos e ruídos completam uma mixagem muito bem arranjada e, como resultado, o conjunto fica se repetindo na mente mesmo depois de se desligar o console.
Em um segundo momento, a construção da história e das motivações de cada personagem que encontramos ao longo destas mais de 50 horas de campanha traz consigo contornos muito mais sofisticados do que se poderia esperar em uma premissa baseada na beleza e na inocência juvenil. E, completando, um sistema de batalha e mecânicas de progressão que fazem jus ao legado do gênero, trazendo elementos de tantos outros jogos e tornando tudo algo muito especial, muito particular de Ni No Kuni. Não são os elementos em si, mas a composição entre todos eles que faz desse game algo realmente especial.
Aliás, já que entramos no assunto da jogabilidade em si, esta se mantem inalterada em relação a versão original. O sistema de combate remete a referências diversas. Da possibilidade de utilização de “monstrinhos” no melhor estilo Pokemon até uma estratégia mista de batalha em turnos e tempo real como visto em Final Fantasy XII, por exemplo, o jogo consegue equilibrar bem essas dinâmicas de batalha. Se de início tudo pode parecer meio repetitivo, seja pela falta de encantamentos já aprendidos, seja pela pouca variedade dos chamados familiares, logo a coisa vai ganhando contornos mais diversificados, seja no momento de compor o seu time, seja por estar ao lado de outras pessoas que se juntam a você. A organização desses confrontos é essencial (mesmo não oferecendo uma variedade de opções tão grande assim), sobretudo quando o campo de batalha está repleto de inimigos e aliados.
Ainda assim, o modelo de grind pode não agradar jogadores que não estão acostumados ou não tem paciência com o gênero, sobretudo quando é importante fazer algumas lutas entre as missões para melhorar níveis, aplicar alguns upgrades no personagem principal e nos seus companheiros de viagem e comprar novos equipamentos para preparar o time inteiro para o que vem pela frente. O jogo, mesmo com toda a beleza e o encanto nos diferentes aspectos, está longe de ser um passeio tranquilo em outro mundo. Se descuidar ou avançar rápido demais, mesmo em lutas comuns, pode trazer um prejuízo grande, inclusive porque tanto a energia quanto o mana não se recuperam automaticamente. É fundamental saber gerenciar os recursos para não ficar desprotegido nos momentos mais intensos.
O grande fio condutor que consegue elevar a imersão, mesmo em um jogo relativamente longo, está nos detalhes, na aprendizagem contínua e na evolução sem pressa da narrativa. Ao lado de coadjuvantes que servem como guias e do importantíssimo Wizard’s Companion, livro que reúne tudo o que de mais importante tem para se saber sobre o universo do game e que merece muita mais atenção do que os enfadonhos glossários que vemos em tantos outros RPGs por aí. Além de oferecer uma riqueza de detalhes sobre lugares, criaturas e magias, há coisas que não são ditas em outros momentos ou que são somente citadas rapidamente, e uma leitura mais cuidadosa oferece muito mais substância e densidade. E, em momentos onde não se sabe bem o que fazer, é a melhor fonte de dicas ou respostas.
Uma das coisas que aprendemos com tranquilidade são as magias para reequilibrar os sentimentos no mundo. É sintomático ter a capacidade de guardar emoções como coragem e entusiasmo de quem tem bastante para ajudar aqueles que tem pouco, algo de uma singeleza rara, uma forma de combater um mal absoluto para muito além do confronto direto. É nesse tipo de detalhe que mora toda uma identidade única de Ni No Kuni e, felizmente, é algo que se mantém intacto nessa nova versão, o que pode ser um alívio para alguns, já que tudo o que tornou o game memorável não foi mexido, mas também pode ser uma certa decepção, já que não há nada de novidade, como familiares, evoluções, magias ou missões diferentes.
Esta análise, portanto, ainda que tenha só pincelado as principais características do jogo, já que elas não mudaram praticamente nada na versão remasterizada, traz uma visão geral sobre o conjunto da obra, algo refletido na nota que atribuímos. Contudo, a recomendação (ou não) do jogo é algo um pouco mais complexa, uma vez que depende do conhecimento e da vivência de cada jogador. Para quem ainda não experimentou esse mundo, ou mesmo começou pelo segundo jogo, lançado para esta geração, e é um adepto do gênero, é um título necessário. Para fãs de histórias comoventes dignas dos estúdios Ghibli, ou se sistemas de combate e de evolução de personagens tal como nos bons tempos de Dark Cloud, idem.
Ao mesmo tempo, para quem já desbravou dezenas de horas do jogo, seja na versão portátil, seja nos ports para outros consoles, fica o aviso de que o jogo é exatamente o mesmo, sem qualquer adição significativa para além das melhorias gráficas e de desempenho que só fazem diferença para os mais atentos. Pesa negativamente também a falta de localização para o nosso idioma, algo que agregaria muito valor à produção e a tornaria bem mais acessível ao público brasileiro já que, no final das contas, o entendimento de diálogos e textos é fundamental não só para se aproveitar uma história rica em detalhes, como até para conseguir extrair do game o máximo de suas potencialidades. Uma pena.
Dito isso, Ni no Kuni: Wrath of the White Witch Remastered é uma obra-prima e que merece todo o reconhecimento que tem recebido desde que foi lançado há quase 10 anos. Pode não ser tão popular para todos os gostos, mas consegue níveis de excelência em praticamente todos os seus aspectos, sejam eles técnicos, narrativos ou artísticos. Certamente, uma jornada tocante e memorável.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Bandai Namco.
Veredito
Ni no Kuni: Wrath of the White Witch Remastered é uma experiência espetacular. Com uma narrativa tocante, jogabilidade sólida, composição artística de sensibilidade única e uma profundidade simbólica arrebatadora, é um título dos mais importantes da história dos videogames, ainda que não necessariamente possa agradar todos os tipos de jogadores. Contudo, a versão remasterizada pode não ser suficiente para que jogadores que já o conhecem voltem a investir no título, já que não há qualquer adição de conteúdo novo, nem mesmo qualquer trabalho na localização para o nosso idioma. É, como não poderia deixar de ser, a versão mais bonita de um dos trabalhos mais incríveis já realizados em um game. Nem mais, nem menos.
Veredict
Ni no Kuni: Wrath of the White Witch Remastered is an spectacular experience. With a thrilling narrative, solid gameplay, uniquely sensitive artistic composition and sweeping symbolic depth, it is one of the most important titles in video games history, though it may not necessarily please all types of players. However, the remastered version might not be enough for players who already know it to re-invest in the title, as there is no new content, not even any localization work for Brazilian Portuguese. It is, of course, the most beautiful version of one of the most amazing works ever done in a game. No more, no less.