Esta não é a primeira vez (e provavelmente nem a última) que vamos falar sobre uma adaptação para o mundo dos games da chamada Jornada ao Oeste, de Wu Chengen. Pouco mais de dois anos atrás, publicamos a análise de Monkey King: Hero is Back, jogo da produtora chinesa Hexa Drive que trazia o já famoso protagonista Sun Wokung em uma jornada de crescimento, amadurecimento e descobertas sobre sua essência. 2021 está quase terminando e eis que recebemos um novo game inspirado pela lenda, desta vez de um estúdio catalão fomentado pelo programa Playstation Talents da SIE España, A Tale of Games, que uma vez mais traz o herói símio em uma aventura cheia de perigos em uma China ancestral e mística.
Dito isso, Wukong é um jogo de plataforma 3D organizado em oito fases lineares cujo objetivo de cada uma delas é, além de chegar ao final, coletar três pergaminhos perdidos e três ídolos dragões, itens que serão parte dos requisitos para abrir algumas fases-chave. Para tanto, será necessário enfrentar alguns inimigos comuns, como abelhas gigantes e um bando de baixinhos invocados, além de superar alguns obstáculos, armadilhas mortais e uma série de pequenos puzzles que quase sempre se aproveitam da ferramenta que carregamos do começo ao fim da jornada, um bastão bastante versátil que se mostra o centro de todas as mecânicas do jogo.
Não demora mais que dois segundos para identificarmos uma semelhança intensa com a franquia Crash Bandicoot tanto na construção visual e no posicionamento de câmera do jogo quanto principalmente nas possibilidades de ação. O óbvio rodopio como ataque próximo é mais escancarado, mas todo o resto é tão parecido quanto. Desde a necessidade de quebrar vasos para coletar as moedas até o próprio feeling do salto sobre troncos de árvores e pontes móveis, tudo lembra a já clássica franquia da Activision. Não fosse o uso contínuo do bastão e o sempre providencial dash (que faz as vezes do salto duplo no que se refere a alcançar plataformas distantes), poderia se dizer que esta é só uma skin simplificada daquele marsupial maluco.
Contudo, Wukong parece estar muito mais interessado em um público mais jovem, algo que pode se verificar pelo estilo artístico, mas que transborda para um modelo de gameplay que tem seus pontos relativamente desafiadores, mas que na grande maioria do tempo é bastante fácil e raso. Em momento algum o jogo apresenta um aprofundamento real das mecânicas que ele mesmo estabelece e tudo parece auto-centrado naqueles cinco minutos de cada fase. Os oito níveis disponíveis parecem muito mais uma coleção de retalhos do que um todo coeso, o que vai de encontro a um dos conceitos mais importantes do level design, que é o de ensinar possibilidades para, mais adiante, explorá-las de forma criativa e mais exigente. Aqui você aprende, usa, e nunca mais a verá novamente.
Um exemplo disso é a possibilidade de, em alguns pontos de interesse, usar o bastão em uma forma magicamente ampliada, como uma plataforma móvel. Uma ideia muito boa, que funciona em dois ou três passagens de forma repetida e não muito criativa, e depois nunca mais volta. Nas fases seguintes, as plataformas móveis são acionadas ora jogando o bastão para qualquer lado, ora acertando um botão na plataforma. Ainda que tenha ali algumas funções parecidas, cada trecho parece nem fazer parte do mesmo jogo que o anterior. Sim, é necessário sempre trazer algo de novo na medida em que se avança, mas há que se pensar na escalada, no acréscimo de camadas, não no descarte do que veio antes.
Por sua vez, a diversidade de inimigos cumpre bem essa premissa não pela quantidade – você conta nos dedos de uma mão os tipos de inimigos diferentes presentes no jogo todo – mas ao menos eles vão se tornando um conjunto, um pequeno exército. Mesmo assim, o mesmo erro do descarte também acontece, e dois tipos de adversário aparecem em uma fase (um no começo e outro no terço final) e depois nunca mais dão as caras. Essa inconstância também atinge a estrutura macro do jogo, e se nas primeiras três ou quatro fases sempre temos uma sala especial, uma área alternativa, isso também desaparece na metade final da história. É como se muitas ideias fossem implementadas no começo do desenvolvimento e abandonadas no final ou por falta de tempo, ou por falta de ideias.
Wukong, enquanto produto, parece estar inacabado. As mecânicas básicas estão implementadas, o conceito principal está lá, mas parece que o resultado final foi acelerado, que a maturação foi abreviada antes de haver um produto completo. O jogo é curtíssimo – não é necessário mais que uma hora, uma hora e meia para quem gosta de coletar todos os colecionáveis possíveis, o que nem é tanta coisa assim – e acaba abruptamente sem qualquer aviso ou abordagem climática. Você joga uma fase, avança para a próxima, e depois a outra, e quando acha que o jogo está engrenando, há uma tela parabenizando por terminar o jogo. Simples assim. Não há sequer uma mensagem de texto dizendo algo como “e ele foi feliz para sempre” ou qualquer coisa que dê um ponto final à narrativa. Nada, zero, nadica. Ou seja, eu nem conseguiria entregar spoiler, porque não há nada o que entregar.
Mas há o convite para revisitar os níveis anteriores e procurar o que tiver ficado para trás. Particularmente, sou daqueles que já faz isso naturalmente, e como esse jogo tem um nível de desafio bem tranquilo – não há escolha de dificuldade, é sempre a mesma – uma ou outra repetição de fase já satisfaziam esse desejo pelos tais seis itens escondidos. Quando terminei o jogo, bastou repetir a fase final uma vez mais para achar um bendito pergaminho escondido em uma parede falsa e pronto, estava terminada a minha jornada, restando apenas três troféus para a platina – algo como quebrar todos os vasos ou passar por uma das fases finais sem sofrer dano, coisas assim – mas para além disso, o jogo não oferece mais nenhum atrativo, a não ser continuar jogando com a minha filha de cinco anos, provavelmente o público-alvo maia adequado para a produção.
O questionamento da completude (ou da falta dela), contudo, independe de quem Wukong quer atingir. A falta de coesão entre o desenho das fases, a displicência completa com um mínimo fator narrativo e vários problemas técnicos – alguns graves o suficiente para prejudicar certos trechos do jogo e forçar com que reiniciemos o nível – reforçam a sensação de que o jogo foi finalizado às pressas. Afinal, se o game se propõe a ser uma livre adaptação de um conto tradicional, que ao menos use uma ou duas linhas de diálogo, uma caixa de texto que seja para dizer o que, para que, para quem. Ser uma produção independente, com investimento modesto não é desculpa para que se ignore completamente o contexto de uma aventura como essa. Se a pequena e singela cinemática inicial dava um tom leve e descompromissado, que ao menos se mantivesse essa proposta.
Essa leveza, aliás, é um dos maiores acertos do aspecto audiovisual da produção. Wukong é realmente bonito na grande maioria do tempo, com personagens cartunescos e com aquela abordagem mais infantilizada dos modelos 3D tão utilizada nas animações mais recentes dedicadas a esse público. O jogo me lembrou bastante algumas produções atuais disponíveis no streaming, como a ótima produção brasileira Tainá e os Guardiões da Amazônia ou a inglesa Oi Ninja (sim, como pai eu assisto muitas coisas dessa faixa etária) com belos visuais coloridos, paisagens abertas e texturas que flertam com um cel-shading contido. Eu realmente aprecio algumas simplificações mais estilizadas do formato, e aqui funcionam muito bem, mesmo que por vezes o mundo seja meio pobre, meio vazio.
O mesmo vale para a trilha sonora, que se apropria de algumas convenções (ou clichês) da cultura asiática, bem como efeitos sonoros que se não engrandecem o universo, cumprem seu papel a contento. Mantendo um tom sempre alegre, a mixagem consegue oferecer uma camada interessante de imersão. Sem qualquer resquício de história sendo contada, obviamente não há diálogos, nem personagens marcantes ou NPCs, sequer um chefe diferenciado, então não seria de se esperar um trabalho com vozes e também por isso fica outro destaque, o da falta de localização para mais idiomas para além do inglês, do espanhol e do catalão. Não que faça falta tanto para o entendimento do que está acontecendo quanto para a interface, mas por serem meia dúzia de palavras que dão nome aos lugares e aos itens, seria algo bastante tranquilo de se acrescentar compreendendo que estar no idioma primeiro aumenta muito o interesse das crianças.
Talvez a maior frustração com o jogo seja essa sensação, a qual creio estar presente em toda essa análise, de incompletude. As ideias são boas, os conceitos são sólidos e mesmo não sendo nem um pouco originais, poderiam ser uma sistematização bem divertida de uma das obras mais conhecidas e adaptadas no mundo. Não à toa, estamos cheios de expectativas para Black Myth: WuKong, essa uma visão mais adulta desse conto prometida para algum momento no futuro, mas até lá, Wukong falha, mesmo nas expectativas mais controladas, em apresentar sua versão mais leve da história desse guerreiro-macaco por parecer não dar espaço para que suas ideias amadureçam. é como um protótipo, onde as melhores coisas estão todas lá, potentes e latentes, mas praticamente nenhuma delas alcança o ponto onde deveriam chegar. Como um passatempo, é uma experiência até divertida, mas totalmente descartável. Como jogo, um desperdício.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela SIE España.
Veredito
Wukong é colorido e visualmente encantador, e certamente é uma versão atraente, sobretudo para crianças, do universo dessa lenda clássica chinesa. Com algumas boas ideias, pode ser divertido, mas infelizmente parece estar inacabado, apresenta uma série de instabilidades técnicas, falta de coesão de design e uma completa abstenção narrativa.
Veredict
Wukong is colorful and visually charming, and it’s certainly an appealing, especially child-friendly version of the universe of this classic Chinese legend. With some good ideas, it can be fun, but unfortunately it feels unfinished, presents a series of technical instabilities, lack of design cohesion and a complete narrative abstention.