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Wayward Strand – Review

Tenho uma passado sombrio: era daqueles que achava que games com foco narrativo, tal como as maiores produções da Quantic Dream e, principalmente, da Telltale Games (em sua era de ouro) eram algo menor e forçavam o limiar entre o que é jogo e o que não é.  Minha base para isso? Nenhuma. Até que joguei o primeiro. E depois outro. E mais um. Até que praticamente gabaritei quase todos os jogos possíveis do gênero nas gerações PS3 e PS4 a ponto de ser uma das viúvas da própria Telltale na época da quebra da desenvolvedora. Fato é que meu preconceito foi se dissolvendo ao longo dos últimos anos e hoje sou dos maiores defensores do formato, desde que a construção narrativa consiga me enganar como deveria.

Isso porque o maior desafio de jogos dessa natureza é nos enganar, é nos permitir a tal suspensão da descrença. Afinal, um dos maiores mandamentos de um bom game design é fazer o jogador acreditar que são dele as escolhas que queremos que sejam feitas, e quando essa sensação se quebra, como por exemplo o jogo oferecer escolhas onde só uma delas é a certa, ou pior, quando há escolhas que sempre forçam para o mesmo desfecho, todo o projeto falha em sua proposta. Wayward Strand, singelo (mas poderoso) projeto da Ghost Pattern, felizmente é um ótimo exemplo de como oferecer liberdade e um sentimento real se escolhas significativas que são capazes de construir uma história fluída, orgânica e relevante.

O jogo não é daqueles que nos coloca na pele de alguém capaz de destruir ou de salvar o mundo, não nos leva a cenas épicas e cheias de ação, sequer nos coloca no centro de eventos que mudam o universo. Muito pelo contrário, assumimos o papel de uma garotinha entrando na adolescência, Casey, em uma jornada de três dias acompanhando a mãe, uma enfermeira que trabalha em uma casa de repouso flutuante, no trabalho. Seu objetivo é nada mais do que fazer companhia aos pacientes da instituição, algo que parece, em um primeiro momento, simples, rotineiro e, para nossa protagonista, um tanto quanto tedioso. Quem já parou para ouvir as histórias de pessoas mais velhas, porém, sabe muito bem que há muitas surpresas escondidas embaixo de cabelos grisalhos e algumas marcas do tempo.

Wayward Strand é uma singela e sensível viagem por pequenas grandes trajetórias de vida e nos permite conhecer uma série de personagens fascinantes e muito bem construídas. Cada um a seu jeito, todos têm uma identidade muito bem arquitetada, com profundidade e humanidade. Sem querer parecer pedante, o jogo transforma sua aparente simplicidade em uma grande virtude, já que todo o peso do desenvolvimento está na intrincada estrutura narrativa ramificada que dá sentido a uma sequência de conversas aparentemente desconexas. Se inicialmente seus interlocutores parecem arredios em confiar em Casey, são as suas atitudes e reações ao que eles tem a dizer que moldam muito naturalmente cada uma dessas relações e o quão próxima (ou não) ela pode ficar desse grupo ao longo destes poucos dias.

Ainda que nunca seja explícito, as fundações do jogo são as ferramentas que melhor valorizam essa construção, já que não estabelece checkpoints narrativos e sim temporais. Isso significa, portanto, que cada dia não termina quando você realiza uma ação pré-programada, mas sim quando chega o final do expediente da mãe de Casey. Parece uma característica boba, mas faz diferença na medida em que valoriza a forma como a heroína decide passar o seu tempo, seja conversando por horas com uma mesma pessoa, seja descansando em um cantinho sossegado, ou até mesmo ficando ao lado de alguém em silêncio só contemplando uma bela vista. Wayward Strand valoriza muito o que você decide dizer, mas considera aquilo que não é dito tão importante quanto.

Contudo, para quem não é um adepto do formato, talvez não seja esse o jogo que fará com que isso mude. É um game cadenciado, com um ritmo bastante calmo, e a falta de picos de ação ou de maior intensidade pode não agradar a todos. Isso porque em termos de interação, ele segue uma linha bastante confortável onde dá a chance do jogador explorar essa pequena instituição para adentrar os aposentos abertos e conversar com as pessoas naquele formato de opções de ação e/ou de diálogo mapeados no controle cada qual com seu botão. Não há, por exemplo, quick time events ou decisões de cunho emergencial, nem artifícios do tipo. Algumas ações, como ouvir uma conversa atrás da porta ou pedir o almoço trazem alguma variedade, mas no final das contas, tudo se resume a encontrar pessoas e passar um tempo com elas. É só isso e tudo isso ao mesmo tempo.

Por mais que o jogo seja quase que na sua totalidade feito de diálogos relativamente longos, porém, tudo é muito agradável de se acompanhar graças a um belo trabalho de vozes originais, e todas as conversas são faladas, um feito notável para o escopo da produção e pela quantidade de conversas possíveis. Ainda que não seja um texto raso ou protocolar, são conversas dinâmicas, que evitam momentos de monólogos excessivamente didáticos. Certas informações, por exemplo, estão muito mais nas entrelinhas e na comunicação não verbal do que em falas explicativas, o que é ótimo para o ritmo e para o desenvolvimento de afetividades. Ainda que o segundo terço do jogo possa parecer um pouco mais alongado do que deveria, a duração da campanha – algo em torno de três horas ou um pouco menos – é excelente para a proposta, que não corre o risco de pecar pelo excesso.

Tão límpido quanto é o roteiro do jogo, o estilo artístico adotado tem traços muito característicos, com uma mistura entre a arte de livros infanto-juvenis e HQs mais maduras tipicamente europeias (mesmo o estúdio sendo australiano), e propositalmente ou não, o jogo me lembrou, em algumas passagens, enquadramentos e expressões da arte de Hergé, autor que ficou notabilizado mundialmente pelo trabalho nos quadrinhos de Timtim, por exemplo. O cel shading adotado, porém, tem suas limitações, com alguns serrilhados aqui e acolá, bem como alguns probleminhas de colisão, com personagens por vezes presos em alguns cantos, outras atravessando paredes e outros objetos cênicos. Animações e outros efeitos dinâmicos também sofrem, como movimentos de pegar coisas ou elipses de passagem de tempo, por exemplo, no uso do elevador.

Algo que me deixou um pouco desconfortável com o jogo foi uma limitação que nada tem de relação com o aspecto técnico, que é o modelo de checkpoints e de salvamento do game. Inexplicavelmente, Wayward Strand não permite o salvamento manual ou automático no meio do ciclo de um dia. Ou seja, só se pode salvar em dois momentos, que são nas passagens do primeiro para o segundo e do segundo para o terceiro dia, o que pode significar ficar quase uma hora sem ter a segurança de salvar o avanço ou de poder parar quando for necessário. Eu mesmo tive dois problemas, sendo que o primeiro é que eu imaginava que estava seguro, então parei quando precisei e descobri que tinha que refazer o dia todo de novo; e o segundo foi com uma bendita queda de energia no bairro que me tirou mais de meia-hora de avanço. Um detalhe bobo, eu sei, mas que precisa ser considerado pelo jogador quando for começar um novo dia.

Como um drama de época – o jogo se passa no período de férias escolares do ano de 1978 – sem maneirismos e artifícios melodramáticos, Wayward Strand evita os perigos e armadilhas de uma abordagem piegas e consegue lidar com temas como morte, identidade, saudades e as muitas peculiaridades que nos acompanham com a maturidade, tudo sob o olhar inocente e pouco ganancioso de uma jovem aspirante a jornalista. Ao nos dar a liberdade para construir nosso caminho, o game abre mão de um controle narrativo rígido em detrimento ao poder de decisão do jogador, que realmente se sente dono das próprias escolhas.

Não à toa, nem todos os aprofundamentos podem ser feitos em uma ou duas runs exatamente porque tantas vidas não cabem nas histórias contadas em só três dias. Este mundo tem vida própria, é denso em sua diversidade e não gira em torno das nossas ações. Funcionários conversam entre si, atendem pacientes e vivem suas próprias vidas mesmo que não estejamos lá para fazer as engrenagens girarem. De tão bem construída, a estrutura narrativa funciona por si e nos dá aquela sensação que aquelas pessoas estavam lá muito antes de chegarmos, e continuarão suas experiências para muito além de quando formos embora. Toda essa sofisticação significa que exatamente por nos oferecer um pequeno recorte da trama macro em uma campanha de curta duração, o jogo tem um alto valor de replay e de vida útil para quem se sentir motivado a mergulhar de cabeça naquele universo.

Não espere, entretanto, um jogo de proporções gigantescas ou cheio de pretensões megalomaníacas ou estereótipos arquetípicos, porque a grandeza de Wayward Strand não está nas suas aspirações globais, mas exatamente em fazer o contrário, olhando para dentro, falando sobre nós ao humanizar seus personagens, ao dar importância para as pequenas coisas, para as histórias íntimas de pessoas distantes que, ao mesmo tempo, poderiam ser qualquer um que conhecemos, que poderiam ser qualquer um de nós. E pouca coisa é maior do que isso.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Ghost Pattern.

Winz.io

Veredito

Wayward Strand é um dos jogos com foco narrativo mais sofisticados dos últimos tempos e, em sua simplicidade, consegue ser cativante e sensível sem apelar para qualquer sentimentalismo barato. Não deve agradar todo tipo de jogador, mas fãs do gênero encontrarão aqui uma autêntica experiência, personagens marcantes e escolhas realmente significativas.

85

Wayward Strand

Fabricante: Ghost Pattern

Plataforma: PS4 / PS5

Gênero: Adventure

Distribuidora: Ghost Pattern

Lançamento: 15/09/2022

Dublado: Não

Legendado: Não

Troféus: Sim (inclusive Platina)

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Veredict

Wayward Strand is one of the most sophisticated narrative-focused games of recent times and, in its simplicity, manages to be captivating and sensitive without appealing to any cheap sentimentality. It should not appeal to every type of player, but fans of the genre will find here an authentic experience, striking characters, and really meaningful choices.