“Todo monstro já foi um homem primeiro”. É com essa frase que Wasteland 3 abre e ela não poderia ser um prelúdio maior do que estaria por vir. Usar uma das citações mais conhecidas do dramaturgo americano Edward Albee, ganhador de três Pulitzers e dois Tony Awards famoso pelos seus comentários sobre a condição do humano moderno, é uma das melhores maneiras de começar a estabelecer o que se esperar do que veremos aqui.
Apesar ser difícil imaginar que o autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf trabalhando em um CRPG ambientado em um mundo pós-apocalíptico, a frase ainda se encaixa. Afinal, a franquia Wasteland (assim como as séries que vieram dela) sempre foi sobre tons de cinza e, conhecendo o quanto o trabalho do Albee era sobre o impacto da sociedade nas pessoas, o encaixe é perfeito.
É interessante também ver como a própria série Wasteland foi revivida. O título original foi lançado em 1988 para Apple II (com ports posteriores para MS-DOS e Commodore 64), sendo desenvolvido pela Interplay e publicado pela Eletronic Arts. Ele foi um dos primeiros CRPGs a ganhar popularidade, ainda que não seja a mais conhecida das criações do estúdio.
O título teve uma influência gigantesca em obras futuras da desenvolvedora (sendo base para uma pequena franquia chamada Fallout), mas demorou 26 anos para receber uma sequência (a qual foi financiada via Kickstarter) quando Brian Fargo, fundador da Interplay, readquiriu os direitos da IP e a trouxe de volta através do seu novo estúdio, a inXile Entertainment.
O sucesso por trás do revival da franquia foi o suficiente para catapultar a inXile para o sucesso, levando, inclusive, à aquisição do estúdio pela Microsoft, com Wasteland 3 marcando o seu provável último lançamento para um console PlayStation. E enquanto isso deixa um leve dissabor na boca, é inegável que a despedida é fantástica.
Wasteland 3 se passa em um futuro alternativo em que, no ano de 1998, não só aconteceu uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, mas ela coincidiu com a queda de vários meteoros na Terra. Com a maior parte da população do mundo sendo destruída, cabem aos poucos sobreviventes fazerem todo o possível para se manter vivos nessa nova sociedade que surgiu após essas tragédias.
O jogador assume então o controle de dois membros, que podem ser criados do zero ou escolhidos entre os pre-sets do jogo, sobreviventes do Team November, um esquadrão dos Desert Rangers do Arizona (grupo do qual todos os protagonistas da série fazem parte). Você assumirá o controle de ambos após uma missão no inferno congelado que se tornou o Colorado ter dado errado, precisando encontrar uma forma de voltar para casa.
Os Rangers então encontram com uma figura misteriosa que se autodenomina o Patriarca e que, essencialmente, é o governador da região. O Patriarca se oferece para ajudá-los, desde que eles o auxiliem a lidar com uma grave ameaça existente no território sob o seu controle: seus três filhos lutando pelo direito de sucedê-lo. Em seu caminho, os Rangers acabam se envolvendo em um violento conflito contra a família Dorsey, precisando encontrar alguma forma de sobreviver e deixar o inverno permanente no quão estão presos.
Os Rangers recebem então uma velha base área que passa a funcionar como sua base de operações na região, sendo necessário recrutar novos membros para a sua equipe. Esse processo se dá de várias formas, seja salvando pessoas em combate ou as convencendo por meio de escolhas de diálogo. Quanto maior o sucesso do seu grupo, mais pessoas vão querer se juntar a ele e mais opções você terá em combate.
Apesar de usar o mesmo grupo como base para contar sua história, Wasteland 3 faz um trabalho fantástico em apresentar o seu mundo, sem depender em nada do conhecimento prévio dos dois jogos anteriores. Cada personagem, facção, grupo ou linha da história é devidamente apresentada e fundamentada, entregando uma experiência bem concisa e independente.
E é aí que está um dos grandes méritos de W3. Ele realmente apresenta os personagens, suas motivações e razões para agirem como eles agem. Ainda que existam algumas premissas fáceis de se imaginar para o jogador (em um mundo pós-apocalíptico, as pessoas vão fazer o que for necessário para sobreviver), todos os personagens e grupos mais importantes recebem uma motivação por trás das suas ações.
Isso fica especialmente evidente na linha principal da história, com cada um dos três filhos do Patriarca tendo uma motivação por trás das suas ações, uma razão pela qual eles se alinharam com uma das facções existentes naquele lugar. E, por mais que o Patriarca se pinte como um ditador benevolente mantendo a segurança das pessoas, será que isso é realmente possível?
Muitos desses questionamentos só tem o impacto desejado graças ao roteiro fantástico do jogo. Wasteland 3 é um jogo que faz todo o possível para que o jogador se questione de tudo. Houve um claro cuidado em cada detalhe do roteiro, com os diálogos e o ritmo da história fluindo de forma magnífica. E é bem interessante perceber também que, por mais pesadas e difíceis que algumas situações que o jogo apresenta sejam, ele consegue temperar isso com leves pitadas de humor que funcionam excepcionalmente bem.
Com uma escrita surpreendentemente pé-no-chão, brutal, cheia de nuance e capaz de gerar um forte impacto em várias situações, em especial ao te mostrar as terríveis formas como as pessoas se adaptaram aquele mundo e o quão monstruosas elas se tornaram. Mas, até mesmo com os inimigos mais sedentos por sangue, o jogo sempre te lembra de que, antes de tudo, você está enfrentando pessoas.
Outro ponto que contribui para essa sensação é, justamente, a existência de escolhas de diálogo. A forma como o jogo muda bastante a depender das suas decisões é incrível, com linhas de história tendo resoluções bem distintas a depender da maneira como você lidou com cada situação, com o ápice de cada linha de missão quase sempre sendo justamente a sua resolução.
Essas situações acabam sendo elevadas ainda mais pelo trabalho fantástico que o jogo faz com sua dublagem e a animação das cenas de diálogo. Os personagens tem vida, as falas tem peso e cada uma das cenas mais fortes é elevada por isso e pela trilha sonora fantástica que o jogo possui. De alguma forma, W3 consegue usar Country e Folk para enriquecer ainda mais a sua ambientação e tornar o muito mais vivo.
Muito do êxito dessas situações vem do quão customizáveis os seus personagens são. Há uma vasta quantidade de habilidades que podem ser aprendidas e que influenciam tanto a sua exploração, quanto o seu êxito nos diálogos e o funcionamento das sessões de combate do jogo. Isso inclui coisas como percepção e lockpicking, além de melhor manuseio de armas ou a possibilidade de melhorar seu charme e liderança para lidar com situações em que a conversa funciona melhor do que a sua pistola.
Como a sua equipe pode contar com até seis personagens distintos, todos totalmente customizáveis, é importante saber como balancear bem essa progressão, já que ele conta com um sistema de checks de habilidades em que é necessário ter um valor base de certa skill para conseguir realizar a ação. Não fazê-las, inclusive, podem te fazer seguir rumos completamente distintos na história, dando ainda mais “fator replay” ao jogo.
Isso te força a sempre considerar se é melhor se especializar totalmente em algo ou tentar ter personagens melhor balanceados, mas que correm o risco de não ter um determinado parâmetro alto o suficiente para conseguir realizar certas ações. Como é absolutamente impossível ter personagens capazes de lidar com todas as situações em sua equipe ao mesmo tempo, isso traz uma outra camada de estratégia e planejamento que enriquecem ainda mais a experiência, te forçando a decidir o que sacrificar em prol das vantagens de outra coisa.
O impacto dessas decisões envolvendo a progressão também é carregado para o combate do jogo. Wasteland 3 é um RPG de Estratégia/Tático, casando elementos típicos de jogos como XCOM (ou Divinity: Original Sin), com os jogadores movendo os seus personagens dentro de uma determinada área e podendo, então, realizar uma determinada ação, com o jogador ficando livre para escolher a ordem em que os personagens irão agir no seu turno.
Como em XCOM, cada personagem possui uma determinada quantidade de pontos de ação por turno, com o mapa indicando quanto você pode se mover e ainda assim atacar naquele mesmo turno. A diferença fica por conta do fato de que, mesmo se você se mover mais do que o limite para atacar, ainda é possível realizar outras ações, incluindo conservar AP para um próximo turno, já que nem sempre todos os pontos são recarregados de um turno pro outro.
Outros elementos daquela franquia também foram importados para cá, incluindo as porcentagens de acerto, o sistema de cobertura e a possibilidade de destruí-las e, principalmente, a quantidade limitada de HP, fazendo com que todo combate seja mortal e toda ação precisa ser planejada com cuidado.
Em relação ao combate, se você já jogou algo daquela franquia, estará em casa aqui, com a grande diferença ficando mesmo pelo maior foco que Wasteland 3 coloca em posicionamento, em especial no que envolve verticalidade. Além disso, W3 conta com fogo amigo, então é preciso sempre saber onde os seus aliados estão em relação ao tiro para não acabar matando eles ao invés do seu inimigo.
Se há algo que se pode reclamar em relação ao jogo, são as claras limitações impostas pela engine usada. O jogo é bonito para algo feito na Unity, mas não é nada de muito especial, ainda que a direção de arte consiga enriquecer bastante a ambientação. Algumas animações são um pouco travadas, o que acaba afetando a exploração dos mapas, em especial as sessões de stealth que o jogo coloca.
Como se trata de um jogo bem grande (a campanha tem cerca de 50h de duração e pode ser jogada várias vezes pelos motivos já citados), com um mundo bem expansivo a se explorar, também existem alguns pequenos problemas com texturas e a IA nem sempre sendo das melhores. Ainda assim, nada de muito grave, visto que ele claramente tira o máximo da engine, ou que afete demais a experiência.
Considerando tudo isso, é inegável que Wasteland 3 é um sucesso absurdo. A campanha é incrível, trabalhando muito bem seus personagens e apresentando ideias que realmente te forçam a pensar sobre ela e que ficam contigo ao longo do tempo. Pensando que isso ainda é casado com um combate e sistema de progressão que te exigem um bom planejamento a cada ação, e o resultado é um jogo que não só ocupa um ótimo espaço no catálogo de RPGs do PS4, mas se consolida facilmente dentre os melhores que o gênero tem a oferecer.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Deep Silver.
Veredito
De várias formas, Wasteland 3 é um jogo faz tudo o que se propõe de forma espetacular, entregando uma das melhores histórias do ano em conjunto com um gameplay fantástico e que deve ficar no radar de todos os jogadores.
Veredict
In many ways, Wasteland 3 is a game that does everything that is proposed in a spectacular way, delivering one of the best stories of the year together with fantastic gameplay that should be on the radar of all players.