Há algo de muito confortável em Terra Memoria. Em meio a um gênero em que grande partes dos títulos são longas jornadas de dezenas de horas, uma experiência menor e ainda assim imensamente competente consegue ser uma mudança de ritmo muito bem-vinda para os fãs mais dedicados a experimentar o vasto cardápio de opções que os RPGs oferecem.
Desenvolvido por um pequeno estúdio independente francês chamado La Moutarde e publicado pela Dear Villagers, uma das publishers que sempre tem minha atenção justamente por apoiar intrépidos jogos independentes com algo a dizer sobre o mundo ou algo novo a trazer de diferente em seus jogos. Essa combinação parece ter entregado um dos primeiros competidores para surpresa do ano.
O que temos aqui é um título altamente inspirado por clássicos do gênero, bebendo de várias fontes que tornaram RPGs por Turnos um dos gêneros mais dominantes e influentes da história, mas trazendo uma mensagem em sua narrativa bastante atual e reflexiva sobre o momento atual que vivemos, sem em momento algum “pesar a mão” no que ele tenta dizer ao jogador.
Bom, mas sobre o que é Terra Memoria? O jogo apresenta um grupo de seis distintos e únicos protagonistas em uma jornada para descobrir o porquê os cristais, recurso essencial para a vida em Terra, está se esgotando e o que pode ser feito para restaurar a vida das pessoas ao que ela costumava ser. Ou, como o jogo bem diz, retornar às coisas à Constância.
Os personagens são um criativo misto de humanos e animais antropomórficos que tem suas próprias razões para partirem naquela jornada. Moshang é o “protagonista” do jogo e em torno de quem a narrativa gira principalmente. Nascido em uma raça de força descomunal, Moshang decide se tornar um Mago Constante, indo contra as expectativas das pessoas para ele. É então que ele recebe a missão da sua mentora para investigar o que está acontecendo com os cristais, dando início aos acontecimentos do jogo.
Ele logo encontra Syl, uma invocadora que é, basicamente, uma xamã raposa, que se junta a Moshang com o objetivo de descobrir onde os pais dela foram parar, já que sua antiga casa agora é habitada pela família de Moshang. Logo vão se juntando a eles o bardo Alto, o inventor Edson, a ferreira Opal e a mística criatura Meta.
Syl, pra mim, é o principal destaque do jogo e uma das narrativas mais bem construídas, com um excelente arco de crescimento e auto-descoberta que trazem um final muito legal para ela. Dito isso, todos os 06 personagens são muito bem escritos e têm suas narrativas muito bem-desenvolvidas, com a dinâmica entre eles e a forma como eles vão se tornando amigos e se apoiando ao longo do jogo um dos destaques. Há uma clara sensação de desenvolvimento de um laço entre eles que parece muito natural e satisfatório de se ver crescer.
Dito isso, a narrativa principal também se constrói de forma bem legal e satisfatória, ainda que o seu 3° ato pareça bem corrido. Há uma sensação de que havia mais a ser feito ali, mas que acaba tendo que ser acelerado, especialmente o plot twist final e o confronto com o grande vilão da história. Há uma sensação de que o jogo tinha um pouco mais a fazer ainda entre a grande revelação e o conflito, mas faltou tempo ou recurso para criar aquela parte. Ainda assim, é um final que faz sentido e narrativa como um todo vai caminhando muito bem até a sua conclusão.
Uma das razões pela qual a narrativa funciona é por ser um claro comentário sobre a sociedade atual vista por outra lente. O mundo de Terra Memoria é um no qual os livros são descartados e amontoados em um lugar chamado de Lixão, que na verdade é uma biblioteca, e aqueles que se interessam por livros são tratados como loucos. É um mundo no qual as pessoas vivem e dependem imensamente de um recurso só e não se movimentam para fazer algo quando postos em situações de desconforto, colocando tudo nas mãos da “Constância”. E é um mundo em que as pessoas não se questionam quando um novo e milagroso recurso surge, desde que ele consiga manter suas vidas confortáveis como eram com os cristais.
Apesar de não se aprofundar demais nessas discussões, o jogo claramente quer fazer o jogador refletir sobre o papel que o conhecimento de fato tem em nossa sociedade, como a fé cega em algo pode nos impedir de agir para melhorar nossa vida ou como nos deixamos nos iludir por soluções milagrosas surgem, quando na verdade a única solução é trabalhar em conjunto para construir um mundo melhor. São temas muito bem trabalhados no jogo e, ainda que fiquem às margens da narrativa principal, enriquecem demais o título e o tornam muito fácil de recomendar.
Cabe dizer ainda que Terra Memoria é basicamente um jogo de mundo aberto e que te recompensa bastante por explorá-lo. Novas habilidades para seus personagens são aprendidas ao completar certos quebra-cabeças ou completar certas masmorras, fora várias missões secundárias que, se um pouco repetitivas em sua natureza, ajudam a trazer uma certa variedade à jornada. Por fim, o jogo não conta com combates aleatórios, com os inimigos aparecendo no mapa e sendo possível decidir quando lutar com eles (por mais que o respawn deles seja bem rápido).
Mudando agora para falar do combate, ele é muito bem executado. Trata-se de um simples combate por turnos, mas com alguns pequenos ajustes que o tornam bem estratégico. Meta, Syl e Moshang são os únicos membros ativos do combate, cada qual podendo usar diferentes magias elementais para atacar os inimigos. Essa parte é fundamental já que seus adversários possuem um escudo que o tornam mais resistentes a ataques.
Esse escudo vai sendo reduzido em um ponto a cada ataque, mas, caso o jogador explore um dos dois tipos de fraqueza elemental que o adversário tem, ele perderá dois pontos e se tornando muito mais vulnerável aos seus golpes, sendo necessário explorá-las para ter mais sucesso em combate, já que ao acabar com o escudo, seus inimigos vão para o final da linha de tempo de ação e sofrem muito mais dano.
O outro ponto é que cada ataque tem um certo custo em “turnos” para ser usado, te jogando para uma posição diferente na linha de tempo da ação que fica sempre à vista na parte de baixo da tela. Isso faz com que o jogador constantemente precise pensar se é mais interessante usar ataques mais fracos para poder atacar com mais frequência ou usar um golpe mais forte para tentar acabar logo com o combate, fora todas as considerações sobre como melhor explorar as fraquezas dos inimigos. É um jogo imensamente inspirado por Grandia, algo raro de se ver, mas que por sua própria inspiração traz uma ótima variedade aos sistemas de combate mais inspirados em Final Fantasy que estamos acostumados a ver.
Por fim, cada um dos outros três personagens, Opal, Alto e Edson funciona como um personagem assistente e tem efeitos distintos nas suas ações. Alto transforma magias de ataque em magias de cura e vice-versa; Opal muda o elemento dos seus ataques; Edson transforma ataques com um alvo em ataques contra todos os inimigos e vice-versa. As combinações são definidas aleatoriamente no começo das lutas e não é possível alterá-las, só desativar certas combinações no menu. Ele traz um certo elemento de aleatoriedade ao combate e é muito bem-vinda, já que o combate se torna bem fácil e repetitivo ao longo da narrativa, dada a baixa variedade de inimigos e de variedades de ataque, com só as batalhas com chefe realmente exigindo mais do jogador.
Por fim, sobre a progressão dos personagens, o jogo tem uma forma bem interessante de abordá-la. Ao concluir o combate, o jogador vai acumulando experiência e para efetivamente subir de nível, precisa dormir em um dos acampamentos ou estalagens ao redor do mundo. Além disso, os personagens utilizam broches que podem ser encontrados pelo mapa, comprados em lojas, ganhos como recompensa de missões ou fabricados nos acampamentos. Por fim, é possível ainda cozinhar (com direito a um pequeno minigame de ritmo), ganhando aumentos permanentes de HP.
Dito isso, Terra Memoria é um jogo relativamente curto, com a campanha durando pouco mais de 10 horas fazendo várias missões secundárias e sendo possível platiná-lo em algo em torno de 15 horas ou até menos. É um jogo curto e cujo preço reflete essa duração mais curta, algo muito bem-vindo em um gênero tão famoso por suas longas durações que exigem uma grande dedicação.
Assim, se você é um fã de RPGs mas possui pouco tempo para dedicar aos jogos, Terra Memoria é um jogo que merece sua atenção. Ele faz muito bem a sua missão de ser um RPG aconchegante, sendo bem colorido e bonito, com ótima trilha sonora e um gameplay que te manterão envolvido durante toda a duração do título.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Dear Villagers.
Veredito
Terra Memoria é um excelente e aconchegante RPG que entrega uma boa história, bom sistema de combate e uma experiência muito divertida enquanto trata sobre vários temas bem interessantes. Embora o combate se torne repetitivo rápido e o 3° ato seja um pouco curto, o jogo merece a atenção de todos os fãs do gênero.
Terra Memoria
Fabricante: La Moutarde
Plataforma: PS5
Gênero: RPG
Distribuidora: Dear Villagers
Lançamento: 27/03/2024
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Terra Memoria is an excellent and cozy RPG that delivers a good story, good combat system and a very fun experience overall while touching on some very interesting themes. Although the combat becomes repetitive quickly and the third act is a little short, the game deserves the attention of all fans of the genre.