Stray – Review

Identificação. Obras culturais, sejam elas ficcionais ou não, têm uma longa tradição em contar histórias que buscam envolver o seu público utilizando de vários artifícios narrativos, e um dos mais convencionais objetiva criar uma relação de empatia entre aquela figura que personifica o olhar do espectador e o guia através da trama. Busca-se, assim, estabelecer uma relação, um vínculo afetivo para que, desta forma, nos importemos com os eventos contados nas linhas escritas de um romance, nas imagens em movimento do cinema, nos quadros de uma HQ e, claro, nas escolhas de um jogo.

Tal relação tem diversas roupagens, e ela pode ser construída visualmente, com o personagem incorporando características físicas parecidas com as nossas (ou que ao menos gostaríamos de ter ou poderíamos ter em outro contexto); mas na maioria dos casos, essa construção está muito mais relacionada a questões éticas, morais e emocionais. Torcemos para um herói porque nos identificamos com a causa dele, porque entendemos que a jornada que ele precisa atravessar é justa, porque compartilhamos algumas de suas maiores crenças. Ou, de outro lado, entendemos as motivações dele e nos colocamos em seu lugar para justificar suas escolhas. Podemos não concordar com as atitudes de Kratos, em God of War, ou Bruto, em The Boys, mas se o roteiro nos faz crer que as atitudes deles são um traço coerente com o que lhes é apresentado, compramos a causa, ao menos para os momentos em que estamos imersos nessas obras.

Não à toa, grande parte dos protagonistas são humanos, normalmente parecidos com o público ao qual se destina. Podem ser alienígenas, mas sempre com aquela visão de seres com as mesmas características que as nossas, com os mesmos valores que grande parte de nós compartilha. Podem ser bestas ou criaturas mitológicas, mas a antropomorfização, desde o princípio dos tempos, nos é mais palatável para que se estabeleça ela, a bendita identificação. Pode até ser um animal, mas ele tem expressões humanas. Pode não ter expressões, mas faz escolhas que julgamos justas. Porém, aquilo que é corriqueiro não necessariamente é regra, e vez ou outra estamos diante uma produção que nos coloca na pele (e nos pelos) de algo totalmente alheio a nós, que até temos familiaridade, mas que poucas vezes nos vemos naquele lugar.

Toda essa introdução – talvez um devaneio desvairado – fez parte dos meus pensamentos enquanto jogava Stray, primeiro jogo produzido pelo BlueTwelve Studio e distribuída pela já conhecida Annapurna Interactive, e do porquê o jogo ter me envolvido de tal forma que mesmo quando eu desligava o videogame ainda ficava em minha mente por muito tempo. Eu precisava entender quais eram os motivos que tanto me seduziam nesta proposta tão singela, que para um olhar mais objetivo parece corriqueiro, possivelmente até fugaz. A resposta, ou o mais próximo possível disso, é que os desenvolvedores encontraram ótimas soluções para que a caminhada deste improvável herói fosse tão envolvente.

Antes de me aprofundar nisso, contudo, uma rápida contextualização da trama, na qual não vou me demorar demais para não estragar a experiência de quem for experimentar o jogo nos próximos dias, seja adquirindo da forma tradicional seja pelo serviço PSPlus Extra ou Deluxe: sem qualquer esclarecimento sobre o universo onde o game se passa, assumimos o papel de um gatinho de rua que, junto à seu grupo felino, explora as ruas vazias e mal cuidadas de uma grande cidade qualquer. Sem aviso, ele acaba se separando dos demais ao cair em um lugar estranho e um tanto quanto apavorante. Sozinho, machucado e certamente amedrontado, resta-lhe descobrir uma forma de voltar à superfície, o que será algo um pouco mais complicado do que poderia parecer.

Stray jamais tenta parecer didático e pouco nos fala sobre seja lá o que compõe a sua mitologia. Nosso herói sequer tem um nome, obviamente não fala e de forma diametralmente oposta aos atalhos cartunescos vistos em tantas outras produções, mal traduz seus sentimentos por expressões faciais ou algo que o valha. Há quem diga que gatos parecem frios até pela comparação óbvia com outros animais domésticos, sobretudo os cães, e aqui não há a tentativa de romantizá-los de modo forçado e, até por isso, o game consegue ser tocante sem apelar para passagens piegas ou melodramáticas demais. Isso não significa que ele não vá nos arrancar uma lágrima aqui e outra acolá, mas se o fizer, o faz de uma forma bastante legítima e sem ambições megalomaníacas.

Aos poucos, somos apresentados a um mundo onde aparentemente a raça humana já não existe mais, ou ao menos não está presente nesse local. Algumas dicas nos são dadas sobre o que poderia ter acontecido ao longo das aproximadamente sete horas de campanha, principalmente em rápidos diálogos com cidadãos locais ou por meio de documentos e memórias colecionáveis e opcionais que encontramos ao explorar vielas, vilarejos, esgotos e outros cenários que compõem um mundo subterrâneo complexo e dotado de uma comunidade diversa. Mas se já não há mais pessoas aqui, do que é composta essa nova civilização? Máquinas sencientes e estranhamente familiares.

Ao encontrar os primeiros habitantes, nosso destemido herói começa a entender melhor o que precisará fazer para voltar pra casa. O jogador, porém, não fica totalmente às cegas e logo nos primeiros instantes da aventura encontra sua âncora narrativa, um simpático drone, chamado de B-12, que estará conosco como um fiel parceiro durante boa parte do tempo em que estaremos nesse lugar. Será ele quem irá traduzir – por vezes, literalmente – as informações do mundo para o nosso gato e, consequentemente, para nós, e é também quem nos ajudará por meio de algumas habilidades especiais, todas elas contextualizadas, a passar por alguns obstáculos e outros apuros. Seu papel é o arquétipo do escudeiro, do aliado inesperado com quem o protagonista (junto conosco) estabelece uma relação de cumplicidade e confiança.

Como um gato de respeito, nossas melhores habilidades são a de caminhar elegantemente, correr rapidamente e saltar com elasticidade e desenvoltura. Porém, mesmo diante um mundo aparentemente pós-apocalíptico e uma sensação de estar perdido, sobra tempo para que arranhemos um bom canto de sofá ou um belo tapete que esteja de bobeira para afiar as unhas, além de poder derrubar alguns baldes de tinta mal guardados na beira de muretas e aprontar outras malcriações quando sobra uma oportunidade só pelo prazer do caos. Parece um tanto quanto bobo, mas o cuidado do design de personagem que nos permite enfiar a cabeça em um saco de papel e perder a orientação ou usar uma caixa de papelão vazia com elemento de furtividade é realmente um toque brilhante para que nos importemos com o que acontece com ele. No final das contas, não importa quem sejamos ou de onde viemos, todos nós já vimos esse gato antes.

Nosso leal companheiro também nos dará algumas vantagens pontuais em várias passagens, sobretudo quando é necessário lidar com dispositivos tecnologicamente mais avançados. É uma parceria muito bem equilibrada onde ambos, de fato, funcionam juntos em uma relação de benefício mútuo. O jogo acerta, também, em dar atenção ao estabelecer identidades muito peculiares aos vários NPCs que encontraremos pelo caminho. Se não há um modelo de vilania clássica que estabelece um antagonista claro para o nosso herói, os desafios impostos oferecem oportunidades interessantes para que, mesmo com pouco tempo de tela, conheçamos outros habitantes marcantes e cheios de personalidade. São robôs, sim, mas talvez sejam tão ou mais moralmente e emocionalmente complexos quanto a maioria dos humanos que já vimos em outras histórias.

Organizado em capítulos muito vinculados a algumas localizações do mapa, Stray nos guia de modo tranquilo e quase orgânico pelos diferentes cenários daquele mundo e mesmo se definindo como uma aventura bastante linear traz várias áreas abertas para exploração em solo e também de forma vertical. O meu ambiente preferido é a favela que ocupa grande parte do primeiro ato do game, que mesmo cheia de passagens, ruas e cruzamentos, é tão bem arquitetada que não demora para que não nos sintamos perdidos na maioria do tempo. O trabalho de level design é exemplar, garantindo, por sinais visuais e outros artifícios, que possamos encontrar nosso caminho, ou ainda escolher dar uma volta antes de partir para os objetivos centrais.

Não há mapas ou pontos de interesse na tela, e os objetivos nunca são óbvios para que saibamos o caminho sem pensar muito. Ao mesmo tempo, Stray jamais nos larga andando a esmo sem saber o que é necessário fazer. O nosso objetivo, em linhas muito gerais, pode ser consultado a qualquer momento, já que nosso drone pode nos lembrar dele ao toque de um botão. A forma como iremos chegar lá é que depende de outros recursos, como conversar com habitantes comuns, olharmos para detalhes pintados em paredes ou em faixadas dos prédios, ou ainda fuçando em lugares pouco óbvios. Poder se esgueirar por aí e passar por lugares que ninguém mais conseguiria, afinal, é uma skill que todo gato que se preza precisa dominar.

O suporte ao jogador conta ainda com um inventário dos mais objetivos, que lista tudo o que coletamos pelo caminho, a grande maioria itens que cumprem algumas missões secundárias que recebemos de algum NPC qualquer, como coletar documentos ou objetos para trocar por outros mais úteis para nós. Missões primárias também se utilizam desse sistema, e visualmente ele poderia ser mais atraente e organizado, mas como não há uma quantidade grande de coisas a se pegar, isso nunca faz muita diferença. O outro colecionável importante a se encontrar são lembranças, pedaços de memória que vão aumentando nossas informações sobre o que aconteceu com esse lugar e com quem nele vive. São cinco pontos principais e que são coletadas conforme avançamos e outras opcionais que não influenciam na história, mas a explica um pouquinho mais quando encontradas.

Nada disso teria impacto, porém, sem o excelente trabalho gráfico da produção. Os primeiros instantes – que você pode ver no vídeo que abre esta análise – já impressionam ao mostrar animais críveis, com movimentos sutis e trejeitos facilmente reconhecíveis para quem tem (ou já teve) um gatinho em casa. O apego a minúscias é indefectível e traduz um trabalho impressionante. Dias atrás vimos o relato dos desenvolvedores sobre o processo de passar incontáveis horas observando animais de verdade para emular pequenos detalhes com exatidão, e o trabalho se traduz em algo de qualidade ímpar. Seja correndo de inimigos mortais, seja deitando na barriga de um robô-mendigo, nosso protagonista é coerente do início ao fim.

Por sua vez, a cenografia do jogo transborda cuidados, com detalhes por todos os cantos. Alguns cenários abusam do neon como se fossem versões estilizadas de grandes metrópoles da ficção ciberpunk e mesmo dentro de recortes relativamente limitados, brilham pela quantidade e pela qualidade de informações em cada canto. Há uma sujeira proposital, uma poluição visual que amplia a sensação de que somos alheios àquele lugar, que somos algo completamente estranho àquele universo. Contudo, há algumas passagens um pouco menos inspiradas, certas texturas se mostram repetitivas e, quando ilustram trechos inacessíveis, se mostram mais generalistas, principalmente nos poucos pontos onde há paisagens com elementos naturais, como plantas e afins.

A qualidade de iluminação não decepciona, alternando entre ambientes mal iluminados (que mesmo quando nosso protagonista utiliza-se de uma providencial lanterna, continuam sendo opressivos), com outros com múltiplas fontes de luz com cores vibrantes e intensas. Mesmo nesses, porém, o jogo nos acostuma com ambientes sombrios, que amplos ou apertados, parecem limitantes e claustrofóbicos. O uso imersivo do som amplifica sensações, abusando de uma sonoplastia contida, mas bem encaixada no ritmo do jogo. Ecos, ruídos e outras mumunhas estabelecem um clima ora hostil, ora de certo conformismo, e preparam terreno para algumas passagens de maior ação e intensidade.

Falando de ritmo, Stray é bastante consistente e consegue se manter constantemente em renovação para que a sua campanha jamais pareça arrastada. Há um ou outro momento que acaba se mostrando mais curto ou apressado do que poderia ser pelo potencial latente, principalmente na segunda metade onde a trama acaba ficando mais acelerada. Além disso, a divisão entre os perigos e as formas de exploração é por vezes esquemática demais, o que significa que há momentos onde tudo o que se aprendeu anteriormente poderia gerar muito mais situações divertidas, mas que acaba se restringindo ao aprendizado de momento, à ferramenta pontual. Em outras palavras, no terço final da aventura, senti falta de poder fazer mais do que tinha feito na introdução, e mesmo entendendo que o projeto parece buscar a renovação constante, senti que poderia ter mais do que havia de melhor.

Essas mecânicas, aliás, por vezes não são tão orgânicas como se espera de um animal tão ágil. Para saltar de um ponto a outro, por exemplo, é necessário que o botão de ação indique onde é possível chegar, uma burocracia que até faz sentido considerando evitar quedas despropositadas e erros bobos no cálculo de alcance ou coisas assim. Entretanto, é um modelo um tanto quanto engessado, que valoriza a precisão, mas sacrifica uma maior liberdade de escolha e até do risco do erro. Nosso gato não cai de beiradas por descuido, não erra um salto como nos vídeos engraçados da internet e não passa por perigos em trechos de escalada, o que por um lado é bom e seguro, mas por outro, nos tira um pouquinho do valor imersivo da coisa toda.

O modelo de colisão também parece um tanto quanto rígido demais, o que significa que as vezes vamos trombar em um objeto de cena sem interferir nele, e outras vamos interagir como se eles fossem feitos de papel. Derrubar vasos de planta, latinhas vazias de cerveja ou pesadas latas cheias de tinta parecem não oferecer grandes diferenciais em termos de peso ou influencia do mundo externo, a não ser por alguns momentos roteirizados onde é necessário acionar um botão para que nosso felino, sorrateiramente, derrube algo quando a ação é importante para a trama. Esta interação com o ambiente é um pouco inconstante e poderia oferecer um espaço mais amplo até para que fiquemos de bobeira de forma mais variada, se assim desejarmos.

Um exemplo disso é que há espaços para deitar e dormir, que basicamente nos dão a chance de um respiro na aventura e também para termos um vislumbre mais completo do cenário. Todo mundo que tem um gato em casa, porém, sabe que esses bichos podem deitar e dormir nos lugares mais inóspitos, e seria muito bem-vindo um comando onde ele pudesse subir, sei lá, no sofá de uma casa vazia, numa pilha de livros ou no saco de lixo de um beco sem saída para tirar aquele cochilo. O mesmo vale para a função de arranhar só para dar aquela esticada nos ossos, que poderia estar aberto para ser feito em qualquer superfície sólida, e não só em alguns tapetes, pernas de sofá e portas.

Tudo isso pode parecer uma coleção de meros e insignificantes detalhes, e provavelmente são mesmo. Dentro do escopo do game, que funciona de forma muito satisfatória, são notas de rodapé, mas que, por outro lado, contribuiriam para aquela coisinha com a qual eu comecei o texto, a identificação. Porque no final das contas, nós passamos toda a campanha de Stray olhando um mundo – bizarro e meio perturbador, mas ainda assustadoramente realista – pelos olhos de um animal, e todas as melhores formas de nos colocarmos nesse ponto-de-vista estão nos pequenos-grandes detalhes que nos convencem, diegeticamente, desse estado.

Felizmente, o game jamais tenta subverter isso, e se mantém fiel a uma jornada muito introspectiva do começo ao fim, fugindo das fáceis estratégias de megalomania ou de qualquer intenção de um clímax explosivo ou de revelações bombásticas sensacionalistas. Há alguns pontos de virada, esperados ou surpreendentes, mas não é disso que o jogo se trata e não é nisso que ele se baseia para seduzir seu jogador. Ao ser modesto, Stray é ousado. Ao ser contido e minimalista, ele impacta. Ao tratar da construção da amizade entre um animal e uma máquina, ele consegue abordar, de forma madura, sentimentos e inquietações inexoravelmente humanas. Ao não tentar te emocionar, ele emociona. E eu não poderia esperar mais do que isso quando me vi intensamente cooptado pelo que se convencionou chamar de “jogo do gato”. Porque ao não tentar ser mais do que isso, Stray o é.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Annapurna Interactive.

Veredito

Stray subverte nossas expectativas ao nos colocar sob o improvável ponto de vista de um gatinho sem poderes ou habilidades fantásticas em uma emocionante jornada de retorno. Com mecânicas simples e visuais impressionantes, o grande trunfo do jogo está na sutileza de uma narrativa cativante não por humanizar o protagonista, mas por nos propor, por algumas horas, a realmente olharmos aquele mundo pelos olhos dele.

85

Stray

Fabricante: BlueTwelve Studio

Plataforma: PS4 / PS5

Gênero: Aventura

Distribuidora: Annapurna Interactive

Lançamento: 19/07/2022

Dublado: Não

Legendado: Sim

Troféus: Sim (inclusive Platina)

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Veredict

Stray subverts our expectations by putting us through the unlikely point of view of a kitten with no fantastic powers or abilities on an exciting journey back to its home. With simple mechanics and impressive visuals, the game’s great strength lies in the subtlety of a captivating narrative not because it humanizes the protagonist, but because it proposes us, for a few hours, to really look at that world through the kitten’s eyes.