Não tenho nenhum receio em dizer que Shadows of Doubt é um dos jogos mais ousados e ambiciosos que já joguei em muito tempo. Sobretudo diante uma geração onde ouvimos sobre um novo remaster a cada minuto, encontrar uma joia rara – bruta, mas ainda assim rara – é um verdadeiro alento, um respiro de criatividade em um oceano de apostas seguras, medíocres e requentadas. Ainda que eu goste bastante do gênero de investigação, coleta de provas e análise lógica de informações, nada que eu conheça consegue ser tão bem estruturado quanto o caso mais banal que enfrentei aqui.
Nada disso me pareceu óbvio diante meus próprios receios antes de adentrar esse universo pós-noir. Uma das minhas preocupações estava na proposta de geração de casos e situações de forma procedural, com alguns elementos pontuais roteirizados, algo que normalmente acaba resultando em coisas genéricas e sem tanta identidade. Felizmente, o “normalmente” será muitas vezes subvertido por este jogo, que consegue lidar muito bem com uma série de variáveis para oferecer casos interessantes e soluções bastante sofisticadas.
O ponto de partida é um lugar absolutamente comum. Como um investigador particular, nos encontramos em uma situação típica que flutua entre o fracasso profissional e a falta de dinheiro até para manter seu apartamento miserável. A solução é assumir casos obscuros, daqueles que a polícia não conseguiria cuidar nem que quisesse, e encontrar formas de se manter diante os perigos e as atrações do submundo da cidade grande. Nada nesta premissa parece ser particularmente interessante ou minimamente provocativo para que nos engajemos com esse anti-herói clichê. É o que vem depois que ganha vida.
Os crimes que nos são apresentados podem inicialmente ser os mais comuns de qualquer filme esquecível do gênero: alguém foi encontrado morto em seu apartamento, você chega, parece um caso passional, investiga a cena do crime, encontra uma faca, alguns vestígios aqui e ali… mas é nos detalhes que há um brilho genuíno para matar de inveja qualquer produção mais pomposa baseada em obras literárias consagradas. Uma simples ligação para um contato despretensioso registrado no telefone, um cartão de visitas jogado num canto qualquer do quarto, um nome rabiscado na agenda… cada detalhe importa em quebra-cabeças pouco óbvios.
O maior problema do jogo não está em sua organização intrincada de provas e informações, mas na interface pouco amistosa ao console. Isso porque o seu painel de relações (aquele que emula qualquer filme onde há um quadro com fotos, documentos e linhas ligando fatos a pessoas) que nos ajuda a criar conclusões lógicas é um pouco desajeitado para se usar com o controle, e pior ainda para retomar coisas já adicionadas anteriormente. Relembrar pistas coletadas, consultar os tópicos de cada uma delas, tudo é essencialmente manual e muito pouco prático.
Eu gastei muito mais tempo do que deveria aprendendo a me organizar nesse espaço, e mesmo com um tempo de aprendizado bem gentil, não é das tarefas mais fáceis de se compreender. O mesmo princípio vale para outros elementos de interação, como o uso de instrumentos, armas e outros apetrechos, e principalmente a localização via mapa. Se localizar é um verdadeiro martírio, e pouca coisa pode ser automatizada, o que valoriza a sensação de liberdade de escolha e de ação, visto que simplesmente localizar um suspeito é uma vitória em si, mas gasta-se muito tempo em trânsito. A síntese de tudo isso é ter plena consciência de que um caso bem resolvido é fruto legítimo das ações do jogador.
Grandes poderes trazem grandes responsabilidades, porém, e essa complexidade em organizar o que se tem em mãos resulta da caixa de areia que o jogo consegue oferecer a partir de poucos recursos para o deleite do investigador em cada um de nós. Para entrar em um simples apartamento, por exemplo, há uma infinidade de possibilidades igualmente promissoras e perigosas. Ver um circuito fechado de câmeras significa algo para muito além de um objeto cênico, mas cuidar disso depende da ousadia, da experiência e da experimentação do jogador. Invadir ou não invadir, pegar ou não pegar, enfrentar ou não enfrentar, pagar o hospital ou escapar dando o calote… micro escolhas constantes fazem de cada ação parte de um todo inesperado.
Esta navegação pelos espaços diegéticos em primeira pessoa é muito competente em nos transportar para a ambientação pesada e pouco amistosa do game, algo reforçado por uma construção sonora opressiva e, ao mesmo tempo, encantadora. Aquela sensação de que todo mundo está nos observando é comum, mesmo quando nos acostumamos com algumas pessoas serem realmente só transeuntes ocupando o mundo, dando mais vida e veracidade a um espaço realmente habitado. A construção da mise-en-scène é incrivelmente verossímil, orgânica, nos colocando no centro de investigações onde realmente nossas escolhas são determinantes.
Curiosamente, esta potência em descrever lugares tão bem estabelecidos se dá mesmo diante escolhas estéticas que poderiam afastar qualquer percepção de realismo imersivo. A composição de cenários, construções e seres humanos por voxels aparentes é propositalmente utilizada para denunciar um tom retrô, e funciona também como um reforço para a ideia de um mundo moldável e mutável, como se perfeitamente customizado utilizando blocos de montar. Há todo um charme visual cheio de significados que, intencionais ou não, pouco importa, porque no fim funcionam quase que de forma inconsciente ao nos transportar para este mundo opressor e claustrofóbico.
As texturas lembram uma mistura de jogos da geração PSOne com coisas no estilo Minecraft, o que poderia parece estranho não fossem estas composições formidáveis, principalmente nas tomadas mais abertas. Cenários cheios de cacos e detalhes criam um verdadeiro mosaico bem montado, sobretudo considerando que são espaços gerados com variáveis bem complexas. Há, claro, passagens muito menos inspiradas e algumas até preguiçosas, como aquela boa e velha caminhada em dutos de ventilação predial que não podem faltar em uma boa abordagem furtiva, mas no geral, é um jogo cheio de belas surpresas em seu aspecto artístico.
Da mesma forma, o design de níveis é bem otimizado ao aproveitar de construções facilmente reconhecíveis, mesmo para quem está um pouco mais distante da realidade ali emulada. A arquitetura de prédios com elevadores de grade ao centro e escadarias em torno são clássicos dos filmes de suspense, sobretudo os ambientados nos anos 1970 e 1980, enquanto o cenário que mescla o cinza urbano com a neve branca é essencialmente depressivo. Esta composição nos leva ao interior de infinitos apartamentos com suas similaridades e também suas excentricidades, e é melhor que saibamos bem onde estamos pisando.
Afinal, diferente de Pokémon ou qualquer outro jogo onde podemos entrar livremente na casa dos outros sem maiores consequências, aqui as pessoas serão muito menos compreensivas e amistosas ao ver um sujeito estranho andando pelo seu banheiro. A resposta imediata de NPCs às mais diversas situações é engenhosa ao apostar no simples, e as pessoas vão reagir se você estiver onde não deveria de uma forma bastante enfática. A abordagem stealth é a mais indicada tanto pela encenação de mundo quanto pela vulnerabilidade humana de nosso protagonista, então o enfrentamento, mesmo com uma arma de fogo em mãos, é o último recurso.
A maior qualidade de Shadows of Doubt, que é a de conseguir engendrar casos bastante complexos e cheios de nuances, pode também ser um dos maiores empecilhos para que o jogo alcance grande parte do público. Não só pela interface pouco amistosa, ou pela quase nula margem de erro no encontro com outras pessoas pouco simpáticas à sua causa, mas porque não há muitos artifícios facilitadores de condução dos casos, principalmente quando geramos o nosso próprio cenário sandbox. Para quem está acostumado com alguns atalhos entregues por jogos como Agatha Christie – Hercule Poirot: The London Case, haverá uma grande dificuldade de adaptação aqui.
Este jogo, portanto, é muito mais recomendado para ser apreciado com a cabeça vazia, quando se tem um bom tempo para focar e dedicar para pensar cada detalhe. É bastante difícil conseguir retomar uma investigação do meio, e muitas delas podem render horas de infiltração, investigação, entrevistas e articulação de pistas. Em certos momentos, levei mais tempo para retomar tudo o que já tinha descoberto do que para finalizar a acusação. Felizmente, com a localização em português bem resolvida, fica mais simples entender detalhes que passariam despercebidos no idioma estrangeiro, mas ainda assim, este não é, definitivamente, um jogo para quem quer ligar o videogame e relaxar por 15 minutinhos.
Os tempos de carregamento estranhamente grandes para os padrões atuais do Playstation 5 (principalmente para gerar cidades inteiras) e alguns enroscos de som são problemas que podem ser corrigidos com algumas atualizações, assim como certos menus e conteúdos que por vezes ficam sobrepostos uns aos outros de modo inexplicável. Por outro lado, alguns problemas de interação com certos itens de cenário e um modelo bem vago de marcação de pontos de interesse são mais profundos porque parecem ser parte da própria essência carregada de aleatoriedades do jogo. Somado ao sistema de navegação do quadro de pistas claramente pensado para o mouse, além de um ritmo lento, pouco amigável e, por vezes, cansativo, o jogo parece ser mais truncado e arisco do que poderia.
Ainda assim, retorno ao meu argumento inicial: poucas vezes, na história dos videogames, vi algo tão ousado e bem articulado para o gênero ao qual pertence, provando para os acomodados que é sim possível criar ramificações narrativas únicas, surpreendentes e que realmente provam ser resultado direto das escolhas do jogador, algo que os adventures modernos parecem ter medo, vergonha ou incapacidade de realizar. Mesmo com os tropeços técnicos, a crueza da interface e visuais que podem não ser uma unanimidade, Shadows of Doubt é um verdadeiro achado e merece ser analisado com carinho e descoberto por quem busca um jogo de investigação onde realmente se pode ser o protagonista, não um mero espectador de uma história já desvendada.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Fireshine Games.
Veredito
Shadows of Doubt tem alguns problemas de design de interface, precisa corrigir seus bugs e está longe de ser amistoso para seu público. Mas é tão brilhante na execução de sua proposta de liberdade narrativa na solução de enigmas que merece ser celebrado, sobretudo em tempos onde a mesmice segura parece guiar o mercado para a repetição e a superficialidade.
Veredict
Shadows of Doubt has some interface design issues, needs to fix its bugs and is far from being user-friendly. But it is so brilliant in executing its proposal of narrative freedom in solving puzzles that it deserves to be celebrated, especially in times when safe sameness seems to guide the market towards repetition and superficiality.