O gênero de “fazendinha” tem sido prolífico nos últimos anos, contando com variações que envolvem dinossauros (Paleo Pines), outros planetas (One Lonely Outpost) e até cemitérios (Graveyard Keeper). Agora é a vez de Roots of Pacha, desenvolvido por nossos hermanos argentinos do estúdio Soda Den, trazer suas ideias.
Olhando de relance, o jogo pode até parecer seguir os moldes do adorado Stardew Valley, mas ele faz seu próprio jogo e dá uma contribuição única para os farm sims com a premissa de simular um clã nômade de uma Idade da Pedra fantasiosa. “Clã” e “Idade da Pedra”: é exatamente nesses dois pontos que moram a identidade do game e a fonte para suas mecânicas coerentes com os temas.
Primeiro, vejamos a parte de Idade da Pedra. Como a introdução do game faz questão de frisar, não há aqui uma tentativa de emulação histórica de um período ou de um povo específico. Roots of Pacha trabalha em cima de uma grande quantidade de elementos do imaginário moderno que cercam a pré-história e tornam a referência imediatamente reconhecível.
Para começar, sua ferramenta inicial é uma pedra lascada. Você vai usá-la para arar o solo, cortar mato, partir madeira, quebrar pedras e até pescar. Isso sugere uma agricultura pouco desenvolvida, como esperado ao período representado, mas, por outro lado, também é esperado que as plantações existam em um simulador de fazenda. Logo, a pedra lascada será desenvolvida para novas ferramentas que marcam o avanço tecnológico do clã à medida que encontra e estuda novas pedras e, eventualmente, até metais.
As pessoas se vestem de peles e domesticam lobos, felinos e até mamutes. As moradias são rústicas, feitas de madeira, peles, ossos e palha. A visão de mundo é anímica, dotando a natureza de espíritos que se manifestam como totens. Aqui entra a própria Pacha, uma deusa-mãe que guia seu povo nômade até as gigantescas árvores que marcam a bênção da divindade. É assim que o clã chega até as raízes da árvore de Pacha, o que dá nome ao game.
O clã se estabelece em uma terra rica entre dois rios, cercada pela praia, a savana, a floresta e a montanha. Os pachans conhecem alguns membros dos povos vizinhos e passam a atuar como um ponto em comum dotado de boa vontade e senso de coletividade para superar as fronteiras culturais e trazer a paz entre gente inimiga.
A segunda pedra fundamental de Roots of Pacha está, portanto, na noção de clã. É muito interessante como o grupo é costurado à campanha. Sabe aquele clichê de farm sim em que o protagonista é alguém cansado da vida na cidade que vai ao campo revitalizar uma fazenda decadente de um avô falecido? Aqui não tem isso.
O protagonista é uma pessoa que foi acolhida pelo clã há algum tempo e, assim, já conhece todo mundo e faz parte da comunidade. O jogo começa quando ele passa pelo rito de maior idade e pode construir sua própria cabana. Havendo sido escolhido pela deusa para ser abençoado pelo totem da própria Pacha, o clã sabe que há algo de especial nesse jovem.
Cada pessoa tem seu papel no vilarejo. Há quem entenda de sementes, ferramentas, construção, pesca, caça, exploração, pintura, música, costura e por aí vai. É nas interações com essas pessoas que o protagonista vai contribuir para o avanço do grupo, provendo os recursos para que suas ideias possam render frutos.
Alguém te chama para conversar e diz algo como “tenho pensado em uma maneira de fazer os alimentos durarem mais tempo. Vou falar com Fulano, que entende disso. Tivemos uma ideia e, se você conseguir esses recursos, poderemos experimentá-la”. Esse exemplo resultado na descoberta de um processo de fermentação para fazer bebidas alcoolicas, coalhada, queijo e até vinagre. A impressão é que o vilarejo está sempre crescendo com as ideias e trabalhos dos moradores, mudando de forma agradável e consistente.
As missões vão surgindo aos poucos, dando ritmo à campanha em um passo a passo que mantém a sensação de estar sempre progredindo harmoniosamente, sem se perder na infinidade de mecânicas típicas do gênero.
O que marca a cadência é um medidor chamado “Prosperidade do Clã”, que aumenta automaticamente a cada dia ao considerar as contribuições de todos. Isso quer dizer que a aldeia progride independente das suas contribuições, mas também que você pode acelerar as coisas com suas ofertas diárias.
Por outro lado, seria bom ajustar alguns requisitos, uma vez que pode demorar muito para alcançar certas melhorias importantes que foram programadas para mais tarde — ei, jogos de fazendinha são longos, mas Roots of Pacha deveria aproveitar para se destacar nisso se seu sistema de progresso coletivo fosse mais flexível.
Um ponto muito positivo nessa estrutura de missões é que todas são relevantes para o contexto comunitário e surgem espontaneamente, sem depender de aceitá-las em um quadro de avisos ou algo do tipo. Ressalto também a ausência de prazos, o que retira o fator estressante que costuma acompanhar jogos de gerenciamento. Para ajudar ainda mais, todos os NPCs são marcados no mapa e sabemos exatamente onde eles estão, evitando perder tempo dando voltas até encontrá-los.
A ênfase no aspecto social do clã para o progresso da campanha dá uma identidade muito distinta a Roots of Pacha e, devo dizer, também muito agradável. Não há combate nem barra de vida; a luta é apenas a do cotidiano de trabalho, que é duro, mas promissor. É um jogo otimista e relaxante que faz com que o jogador mergulhe aos poucos, em seu próprio ritmo, mas sempre mais fundo e com mais familiaridade com o clã — como esperado, existem personagens romanceáveis para conhecer, namorar e casar.
No entanto, a virtude do fluxo compassado não dura para sempre. Há um elemento que desestabiliza parte da proposta diferenciada Roots of Pacha: a economia. Mesmo ao representar uma época pré-monetária, o jogo não encontrou uma solução que o afastasse da ideia de quantificação do trabalho.
Não há dinheiro propriamente dito, mas existe a “Contribuição”: além de aumentar a Prosperidade do Clã, tudo o que você oferece ao grupo vira também um número cumulativo pessoal que pode ser trocado por produtos e serviços diversos, como sementes, construções e até troca de visual de personagem. Na prática, é o mesmo que o money de sempre, sem tirar nem pôr.
Não aponto isto como um problema apenas por não combinar com os temas do jogo; a questão é que, eventualmente, esse “dinheiro” mal disfarçado afeta aquele ritmo que elogiei acima. Você não precisa muito dele no começo, mas logo percebe que em algum momento terá que acumular grandes Contribuições.
Se as coisas importantes, como melhorias de construções e equipamentos, consomem quase tudo o que tenho em caixa, não faço nem ideia de quando começarei a gastar com supérfluos como decorações e roupas. Estas últimas estão disponíveis desde o começo, mas a um preço muito maior do que um curral para os animais ou de um machado de obsidiana, por exemplo.
Ou seja: em algum momento o jogador será impelido a abandonar a proveitosa proveitosa de conhecimento e o papo de “no seu próprio ritmo” para acelerar o passo de olho nas ambições do horizonte. Não é obrigatório, mas, se não entrar no clima de buscar meios para maximizar os lucros, a jornada rumo aos objetivos do clã será muito mais demorada e em seus ciclos rotineiros que tomam ares de linha de produção.
Com isso, o jogador é induzido a trocar a descoberta gradual de opções, que define a primeira dezena de horas do jogo, pelo foco em ações repetitivas que, na frieza dos números, permitem mais acesso às recompensas. Os dias de interações ao sabor de sua curiosidade se transformam em agendas lotadas e movidas por ações calculadas para juntar mais “contribuições”.
Roots of Pacha também não consegue se livrar de uma mecânica tediosa dos farm sims: regar plantações. Talvez a relação banal entre o fluxo financeiro e o trabalho repetitivo melhorasse se a tecnologia de irrigação ficasse disponível mais cedo no jogo. Enquanto não a aprendemos, a agricultura fica limitada por nossa capacidade reduzida de jogar água nas plantas, o que é feito diariamente e consome muito da energia que poderia ser usada para outras atividades mais diversas e interessantes.
Por exemplo: para facilitar um pouco a vida com o regador de cobre, que visa poupar tempo e energia ao regar seis plantas de uma vez, é necessário avançar muito na rede de cavernas da montanha, o que fazemos um pouco de cada vez e requer justamente tempo e energia. Ou seja: um trabalho centraliza recursos práticos que poderiam ser dedicados ao outro, colocando-os em contraponto dentro de um gerenciamento apertado que se torna frustrante em sua lentidão.
Considerando tudo isso, penso que o ideal seria se o jogo tivesse uma economia de gameplay inteiramente baseada no tema de comunidade (apenas um dos personagens faz negócios por escambo), mas acho que reduzir os preços e o requisito de Prosperidade para o sistema de irrigação já seriam melhorias muito significativas para diminuir o risco do jogo se arrastar em tarefas cotidianas cada vez mais repetitivas que visam objetivos financeiros cada vez mais distantes. Da forma que está, parece um prolongamento artificial que atrapalha o ótimo ritmo estabelecido no começo.
Continuando no tema do clã, a comunidade é o tronco que sustenta Roots of Pacha também fora da ficção: é um jogo declaradamente feito com o multijogador cooperativo em mente, uma decisão muito coerente e enriquecedora. No entanto, aqui está também uma mancada: a intenção se concretiza apenas online, sem opção de multi local com tela dividida, mesmo que os gráficos de visão aérea em 2D sejam ideais para isso.
O resultado foi que meu filho de oito anos e eu, que adoramos jogar dezenas de horas de Stardew Valley juntos com minha esposa e nosso filho mais novo, não pudemos integrar uma mesma comunidade e compartilhar de nosso tempo no jogo, tendo que alternar nossas jogatinas solitariamente. Ele chegou a pedir que eu jogasse no PC para podermos curtir juntos (o crossplay faz parte da atualização 1.1 no lançamento). No fim das contas, em um jogo sobre a importância do clã, eu não pude jogar com meu próprio clã.
Para finalizar, quero mencionar como a música é importante no jogo. Tem até um ocasional minigame de ritmo, mas não é exatamente disso que falo. O principal é que a trilha musical contribui com a atmosfera do imaginário pré-histórico ao compor-se principalmente de percussão e flautas. São peças melodiosas muito bonitas e agradáveis que manifestam o afeto good vibes com o qual o jogo foi criado.
Há uma exceção: a música da aldeia no verão seria ótima se não tivesse um loop de 50 segundos. Ou seja: considerando que a estação dura 28 dias e um dia tem 15 minutos, você vai ouvi-la dar voltas em si mesma algumas centenas de vezes. Eu não aguentei e tirei o volume para conseguir perseverar até a chegada do outono que, como comparação, tem uma faixa com loop de 3 minutos e não enjoa.
Eu gostei muito de meu tempo com Roots of Pacha e pretendo continuar no jogo por mais tempo, talvez até voltar a ele no futuro, quando receber ainda mais conteúdo (cruzando os dedos para opção de tela dividida!). Mesmo ficando preso a algumas mecânicas de fazendinha que atrapalham a identidade e o ritmo da campanha, impedindo-o de subir ao pódio do gênero, esse jogo deseja que você se sinta bem e se envolva em uma história sobre ser parte de algo maior.
Como simulador de fazenda, Roots of Pacha é profundo, divertido e agradável; como visão de sociedade, é uma ficção importante sobre o papel do indivíduo nas vidas que o cercam.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Soda Den.
Veredito
Mesmo que ainda esteja limitado por tendências do gênero, Roots of Pacha constrói um simulador de fazenda com personalidade própria ao centralizar o tema de comunidade em sua campanha otimista e relaxante. Infelizmente, isso não se estendeu ao multiplayer, que é apenas online e não permite dividir a tela localmente com as pessoas queridas que estão ao seu lado.
Roots of Pacha
Fabricante: Soda Den
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: Simulador
Distribuidora: Soda Den
Lançamento: 28/11/2023
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Even though it is still limited by genre trends, Roots of Pacha builds a farming simulator with its own personality by centralizing the theme of community in its optimistic and relaxing campaign. Unfortunately, this didn’t extend to multiplayer, which is online only and doesn’t allow you to share the screen locally with your loved ones.