Você acorda sozinho em um quarto escuro. Seria impossível contabilizar quantos jogos de ação e aventura começam exatamente assim, da mesma forma como seria leviano se deixar convencer que este é um jogo convencional por conta de uma entrada clichê. OneShot: World Machine Edition está muito distante de qualquer comparação com qualquer outro adventure point-and-click que eu já tenha experimentado, mesmo fazendo questão de lidar com muitos dos principais paradigmas deste e de tantos outros gêneros tão reconhecíveis. É como se o tempo todo estivéssemos diante de algo que já vimos e fizemos antes, mas pela primeira vez.
Admito que a cena descrita não é a primeira coisa de verdade que acontece no jogo, pelo menos não para esta edição. Esta versão para consoles de um jogo lançado lá em 2014 passou por algumas transformações para emular a sensação de se estar jogando no PC porque isso é importante para a trama. Portanto, ao iniciar o jogo estamos diante não de uma tela de abertura ou um menu convencional, mas de um sistema operacional de computadores pessoais. Sim, o game se estabelece primeiro a partir daquela área de trabalho tão comum com ícones, cursor de mouse, tema e até papel de parede customizável, ambiente que acaba funcionando como uma espécie de meta-menu principal. Nele, temos acesso ao jogo em si, bem como medalhas (as conquistas que refletem os troféus do game), colecionáveis, configurações e outras opções corriqueiras.
Dominada a interface, somos convidados a rodar o jogo dentro deste sistema e aí sim ver a dramatização do quarto escuro. Tão logo descubramos a saída, encontramos uma lâmpada no porão da casa e é aí que o jogo realmente começa. Estamos no controle de Niko, uma personagem que está tão perdida na história quanto nós, e que descobre, desvendando o mundo árido e opressivo que se abre a ela, ser o ponto central em uma grande profecia, que há muito tempo previu que seria ela a levar o sol ao seu lugar e trazer a luz de volta para esse mundo. Se é um plot que os RPGs noventistas cansaram de abordar, é a forma como a narrativa se constrói que faz de OneShot algo especial.
Não demora muito para que o jogador se perceba como parte da mise-en-scène deste universo. Sim, o jogo não só tem consciência da nossa presença como nos distingue, em termos de personalidade, da própria protagonista a quem estamos controlando. Aliás, esta por vezes se dirige a nós diretamente para debates sobre decisões importantes ou simplesmente para problematizar a própria natureza desta relação. Seríamos nós criadores deste mundo fantástico ou espectadores culpados do que se desenrola nesta aventura? O grande atrativo desta abordagem que abusa da quebra da quarta parede é o modo surpreendente de como interferimos na ação, convidados ou não por quem está na tela, e o quanto isso se mostra essencial para o desfecho da trama.
Falar mais do que isso desta história seria um desserviço horroroso e prometo não ultrapassar essa linha. OneShot não traz o gancho narrativo mais original de todos os tempos, porém sabe muito bem como estabelecer as amarras para tornar o caminho, e não necessariamente o destino, algo memorável. Ao longo das cerca de 6 a 7 horas de uma campanha relativamente curta (sobretudo em uma primeira run), encontramos personagens cativantes, situações inimagináveis e uma jornada de autodescoberta intensa e muito bem articulada em puzzles e situações-problema realmente significativos em um desenvolvimento quase nunca óbvio.
É inevitável estarmos, o tempo todo, surpresos com o quão diversa é a gameplay de um jogo cujas mecânicas são das mais simples e tradicionais, como explorar, coletar objetos, interagir com estranhos aleatórios, etc., e cabe ao jogador buscar na experimentação criativa a solução para os diferentes enigmas que se apresentam, sejam eles um código cifrado em uma folha de papel aleatória, seja a composição de uma máquina fotográfica gigante, ou mesmo na simples atividade de plantar uma semente de milho do jeito certo. E por mais estapafúrdio que seja, há sempre um bom motivo contextualizado para as demandas que se apresentam.
Isso se deve a um ótimo trabalho de level design que até nos momentos mais complicados, nos guia de modo que mesmo sem qualquer ponto de interesse marcado no mapa ou uma listagem de tarefas a se cumprir, saibamos (quase sempre) o que deve ser feito e o que vem a seguir. Confesso que a cada trecho novo do mapa que se abria, eu imaginava que aquilo seria longo demais para se explorar e encontrar os elementos com a minúcia que se espera de um jogo do tipo, mas bastam apenas alguns minutos mais atentos para que saibamos transitar com tranquilidade. Para potencializar isso, o jogo tem um sistema bem direto e sem burocracias de viagem rápida, o que traz agilidade e dinamismo ao ritmo da trama.
A direção de arte, porém, tem suas limitações. Se o design da nossa carismática protagonista transborda identidade própria, o mesmo não pode ser dito de alguns outros tantos personagens que encontramos pelo caminho, sobretudo os de natureza tecnológica. Por mais que a massificação sem rosto seja um tema que orbite o game, isso nos tira um pouco de proximidade com alguns dos arquétipos mais importantes da trama. Nem todos, entretanto, caem no genérico, e há tipos, digamos, bem únicos pelo caminho. As belas ilustrações que acompanham os diálogos, aliás, entregam ótimas artes que exalam expressividade e sentimento.
Já cenografia e ambientação são aspectos que ficam devendo, sobretudo em ambientes internos. Mesmo que um ou outro quarto seja arrumadinho e bem estruturado, todo o grande conjunto parece sem vida, com preenchimento pobre e muita repetição. Não é raro entrar em uma cozinha e encontrar cinco ou seis geladeiras iguais enfileiradas, ou passar por uma ante-sala composta por corredores vazios e paredes acinzentadas sem textura. Se espaços externos tem seus momentos de brilho intenso e inspiração, mesmo que sejam um tanto quanto repetitivos, são as construções pouco inspiradas que falham em enriquecer aquele universo.
Porém, se o visual do jogo tem seus altos e baixos, a banda sonora é um dos seus maiores acertos. A trilha musical traz um aconchego muito bem-vindo para uma jornada que acaba se mostrando muito íntima e pessoal, que aborda identidade e fé, ainda que na casca ela esteja transvestida de uma clássica história onde o herói salva o mundo todo. Somam-se efeitos e ruídos perfeitos de ambientação que, mesmo sem um trabalho de vozes propriamente dito, preenchem esta elaboração coesa de um universo rico e sobre o qual queremos saber um pouco mais. Com diálogos por texto, destaca-se a bela localização para o nosso bom e velho português brasileiro, com boas soluções e uma bela fluidez que faz jus a um texto afiado e complexo na medida certa.
A edição para consoles de OneShot precisou abrir mão de um princípio determinante da sua gênese, que é questionar os limites diegéticos do jogo. Quando ele literalmente nos pede para ir buscar alguma solução em outro espaço – e as vezes fecha a si mesmo para isso – certamente funciona melhor em um computador de verdade do que em um sistema operacional emulado, mas é exatamente por isso que o game se mostra tão diferente de outras aventuras narrativas similares. A interface fora do jogo é pouco intuitiva e demanda aprendizagem, e confesso que usar o gatilho do DualShock ou do DualSense como clique de mouse é um pouco estranho, principalmente em ações de duplo-clique, mas faz parte de um processo de transposição.
Apesar desse estranhamento, OneShot aproveita muito bem esta característica permitindo que se mude configurações como papel de parede e cor geral do tema da nossa área e trabalho. Também há uma vasta galeria com detalhamento de personagens que encontramos pelo caminho, as sequências animadas de cada cena de corte pela qual já passamos e um player especial para ouvirmos as belas canções do jogo, com uma opção interessante de acelerar ou retardar a velocidade da música. Pode parecer bobeira no primeiro momento, mas confesso que passei mais tempo do que gostaria de admitir só curtindo o mesmo tema em cadências diferentes.
Quebrar os limites narrativos, entretanto, ao trazer o jogador como um personagem interpretativo, se mantém fiel à proposta e é das melhores coisas de OneShot: World Machine Edition. Quanto mais nossa protagonista nos convida ao debate, mais curiosa fica a relação entre quem está tomando as decisões e quem está se deixando levar por elas. Soma-se a isso uma trama que sabe usar suas surpresas para escalar o interesse e um sistema redondinho de puzzles baseado em objetos contextualizados e temos um adventure point-and-click que honra o legado do gênero e se candidata a fazer parte do seleto grupo de clássicos atemporais.
Jogo (versão de PS4) analisado no PS5 com código fornecido pela Dangen Entertainment.
Veredito
OneShot: World Machine Edition oferece tudo o que de melhor se pode esperar de um adventure point-and-click. Há puzzles criativos e coerentes com o sistema de gameplay, além de uma história cativante e, por vezes, surpreendente. Soma-se a tudo isso a forma curiosa de como brinca com os próprios limites do jogo e mesmo com um deslize ou outro, pode se tornar um dos jogos favoritos do gênero para muita gente – eu incluso.
Veredict
OneShot: World Machine Edition offers all the best you can expect from a point-and-click adventure. There are creative and coherent puzzles with the gameplay system, and a captivating and, at times, surprising story. Added to all this is the curious way in which it plays with the game’s own limits and even with a slip or another, it can become one of the favorite games of the genre for many people – myself included.