Esta não é, claro, a primeira vez que vemos a tripulação do aspirante a rei dos piratas no mundo dos videogames. Como uma das maiores propriedades intelectuais do mundo atualmente e reconhecidamente uma das obras audiovisuais mais longevas da história, One Piece é uma marca poderosíssima e detentora de uma legião de fãs fiéis e incansáveis por novas histórias, por novas aventuras. Faltava, portanto, uma grande jornada que fosse para além de um jogo de luta narrativamente limitado ou de participações especiais em crossovers sem grandes âncoras no cânone. Faltava One Piece Odyssey.
O game é, em resumo, ao mesmo tempo uma aventura lateral ao que já foi contado nos longevos mangá e anime, e uma verdadeira celebração da franquia, e longe de ser original, o roteiro encontra meios dignos de relembrar algumas das passagens mais memoráveis da saga sem cair na armadilha de simplesmente transpô-las para uma outra mídia como tantas outras adaptações tentam e, em grande parte das vezes, fracassam. Ao se desprender de qualquer necessidade de reapresentar o que já vimos antes – e há uma explícita intenção de dizer que tudo o que está acontecendo não deve ser igual ao que foi visto antes – o game também evita cair nas armadilhas da comparação rasa e, ainda assim, premiar os fãs de longas datas com uma tonelada de referências diretas e algumas mais discretas.
Como jogo em si, One Piece Odyssey é um clássico RPG que mistura exploração de ambientes relativamente amplos e combate por turnos, onde Luffy e sua tripulação – uma composição que representa basicamente a fase mais tradicional do anime – estão em mais uma de suas andanças pelo novo mundo e acabam, sem sobreaviso, caindo em uma misteriosa ilha tropical envolta por uma estranha tempestade. Uma vez que sua embarcação se despedaça no processo, eles se encontram presos nesse lugar e precisam não só reunirem suas forças para vencer bandidos e outras criaturas hostis como resgatarem a essência de seus poderes, enquanto sujeitos especiais e, principalmente, enquanto equipe.
Como fica evidente pela sinopse – falar mais do que isso seria entregar spoilers demais – não há nada de muito diferente do que já vimos antes, seja em One Piece, seja em qualquer outro jogo do gênero. O que se segue nas primeiras horas do game são um emaranhado de situações comuns que envolvem evolução de poderes, composição de relacionamentos, buscas corriqueiras por elementos descartáveis e uma infinidade de desculpas esfarrapadas para colocar nossa equipe em embates contra outras gangues de piratas, forças de segurança e bichos esquisitos, onde o objetivo prático em si pouco importa e é só uma grande muleta de roteiro para desenvolver os personagens em si. Em outras palavras, é a mais pura essência da marca.
Os maiores problemas da trama estão muito mais relacionados ao desenvolvimento lento e, muitas vezes, arrastado. Não faltam oportunidades para que fiquemos zanzando de um lado para o outro em um cansativo backtrack forçado que estica – trocadilho intencional – demais cada pequena missão, ao mesmo tempo em que bloqueia e cerceia a liberdade de exploração. Não são raros os casos onde temos a oportunidade de pegar um caminho bifurcado e o jogo simplesmente nos diz que tem alguma coisa a ser feita antes, só para que andemos duas ou três vezes pelo cenário até desbloquear a progressão. Soma-se a isso um mundo rico e cheio de belos ambientes, mas bem limitado e pouco inventivo em termos de design. Mesmo cidades e outros espaços complexos são reduzidos normalmente a um corredor com uma ou outra viela sem saída e, quando muito, com um baú ou um inimigo opcional.
O resultado é, por exemplo, percorrer cinco ou seis vezes o mesmo corredor, indo e voltando de ponta a ponta, para finalmente alguém nos autorizar a atravessar o acesso que estava lá desde o início. Soma-se a isso o fato de haver muito pouco a se fazer nesses cenários, algo que se resume a conversar com algum NPC que tem uma ou duas frases para nós, além de itens coletáveis e, quem sabe, confrontos inesperados. Tudo isso significa, assim, que o game é um grande amontoado de atividades de leva-e-traz, o que acaba se tornando cansativo quando se repete por algumas dezenas de horas. Salvam-se algumas boas dungeons que permeiam a aventura, várias delas temperadas com aquele bom e velho fator non sense que é intrínseco à marca.
Por sua vez, o modelo de combate segue uma tradição bastante confortável para veteranos de jogos do gênero, com um sistema de combate por turnos em equipe, mas ao mesmo tempo bem convidativo para iniciantes, com menus bem organizados e iconografia de fácil entendimento. O modus operandi é aquele de sempre: há um ataque básico e livre de pré-requisitos, ataques especiais que usam da barra finita de PF (Pontos de Força, que funciona aqui como a mana ou a estamina de outros jogos), além do uso de itens especiais, que se dividem naqueles que são usados em nós, na maioria dos casos alimentos cozidos por Sanji com efeitos diversos; e aqueles que podem ser usados nos inimigos, as bolas de efeito negativo, diegeticamente produzidas pelo Usopp.
Quando a caminhada se afunila e exige que as relações se intensifiquem, também se torna disponível um ataque especial em conjunto que utiliza de uma barra coletiva que se enche conforme os aliados se ajudam em batalha. É uma habilidade de efeito poderoso e, como já e de se esperar, um recurso indispensável no enfrentamento de adversários mais resistentes e chefes de missão. Tudo isso acessível de forma bastante didática e de fácil compreensão. A grande novidade, por assim dizer, é que a distribuição de amigos e inimigos no campo de batalha é um fator extremamente importante para a estratégia de embate, já que nem todo ataque pode ser desferido contra quem está longe de nós.
Explico melhor: há basicamente quatro personagens em sua linha de frente na maioria do tempo, e há a mesma quantidade de sub-regiões sempre que um confronto se inicia. Assim como é possível que cada um esteja em um lugar diferente, pode ser que haja uma série de possíveis agrupamentos. O mesmo vale para o time adversário. Assim, o tabuleiro tem um elemento aleatório (ainda que alguns padrões sejam previsíveis com a experiência) onde você pode ter um personagem diante 3 inimigos e outro sozinho em sua área. Para atacar alguém que está em uma região diferente, há duas alternativas: se não houver inimigos pela frente, é só atacar quem está longe que a mudança de quadrante é automática. Se houver um agressor perto, há a alternativa de trocar de lugar com alguém ou ainda usar ataques de efeito distante ou efeito coletivo.
A estratégia de abordagem é, portanto, muito importante, e precisa de atenção a cada nova investida. Ela começa desde a construção da sua linha de frente – escolher quatro dentre os sete ou oito da tripulação completa – até a ordem em que eles estão dispostos no campo pode ser o grande diferencial entre a vitória e a derrota. O mesmo vale para esta composição dentro das batalhas, já que uma simples troca de posição muda a tendência e resolve uma partida. O modelo de fraquezas e vantagens também faz parte do pacote, com uma relação de pedra-papel-e-tesoura entre as características de personagens, sejam agressores ou aliados. Há os especialistas em força, os em velocidade e aqueles baseados na técnica, e cada um tem vantagem contra um tipo e desvantagem em relação ao outro.
Felizmente, não faltam oportunidades para testar e validar composições que melhor atendem ao estilo do jogador, já que não falta gente (ou outro tipo de criatura) que quer nos derrubar pelo mundo, e cada ser que anda a esmo pelo cenário pode ser abordado em combate simplesmente encostando nele. Se ele nos vir e atacar de frente, leva vantagem no início da batalha, mas se os abordarmos pelas costas, a vantagem é nossa, formato que você vai reconhecer de tantos exemplos existentes, como os mais recentes games da linha Pokémon. A maior parte das encrencas é evitável, mas não precisa ser um grande especialista em RPGs para saber que quanto mais se lutar, mais experiência se acumula, e melhor preparado se fica para um avanço mais seguro. Para os mais animados, há um respawn de inimigos depois de um tempo em cada área, então não faltam oportunidades pra sair na porrada.
Acumular experiência em combate é uma das mais eficientes formas de se subir de nível, estrutura de progressão de personagem que, aliás, também segue alguns dos preceitos mais tradicionais do gênero. Além das melhorias resultantes da subida de nível – a pontuação de cada batalha é distribuída entre todos os integrantes do seu grupo, inclusive os que não participam do conflito – há ainda relíquias a serem encontradas pelo mundo ou compradas com um certo mercador improvável que acrescentam pontos em algum atributo específico e, de novo, é importante cuidar de todo mundo para ter sempre o máximo deles na hora que a coisa apertar.
A interface, por sua vez, é simplificada (considerando os padrões do gênero) e com menus bem práticos para administrar recursos e outros elementos, como consumíveis e tarefas adicionais, ainda que para tirar proveito total de tudo o que é possível fazer é essencial acompanhar cada tutorial com calma. O game não tem pressa em apresentar suas funcionalidades, e provavelmente você ainda estará aprendendo algo mesmo depois das primeiras 10, 12 horas de campanha. Particularmente, eu compreendo a lógica desta organização compartimentalizada das informações, ainda que não seja dos modos mais dinâmicos de se aprender as principais mecânicas de jogo, que não são lá as mais complicadas do mundo.
A apresentação interessante de menus e outras ferramentas de gestão acompanha um belo trabalho gráfico realizado no projeto como um todo, que traz algumas das melhores ambientações de um game tridimensional baseado em animes. A variedade de cenários, que representam alguns dos arcos mais importantes que já vimos nas mídias originais, é um dos melhores méritos do jogo, mesmo que esteja longe das produções mais destacadas desta e da geração anterior. A textura de terreno, a geração de partículas e os poucos, mas significativos ciclos de dia e noite funcionam bem, com uma iluminação global adequada aos objetivos do game. Cenografia e objetos de cena tendem a uma pouca variedade, o sistema de colisão não é dos mais agradáveis, mas nada que desmereça um belo trabalho de construção de mundo.
A modelagem de personagens pode incomodar os mais puristas da estética 2D e confesso que os traços exagerados típicos da franquia ficam um pouco bizarros em bonecos com volume, algo que sempre foi evidente em outras aparições principalmente do Luffy no mundo dos games, mas tudo é questão de costume. Incomoda mais a repetição de um sistema de expressões faciais bastante artificial e que está presente em praticamente todas as produções baseadas nesta estética e que tendem a falta de naturalidade. Em alguns casos, o tom cômico é favorecido por isso, mas em outras, a fluidez das animações não transmite o mesmo efeito da dureza dos animes e fica só estranho. Esse não é um problema de One Piece Odyssey em específico, então se o jogador já estiver acostumado com isso em outras obras, não vai se assustar aqui.
No departamento sonoro, destacam-se uma trilha cheia de energia e principalmente os diálogos e um belo trabalho de voz, sobretudo pela quantidade de linhas de fala da produção. Nem toda conversa é por áudio, claro, mas me surpreende que só conversas muito corriqueiras rolam só via texto, felizmente bem localizado para o português brasileiro. As cenas mais importantes de corte, bem como um ou outro bate-papo mais superficial, são todas faladas e trazem o mesmo estilo que já conhecemos onde todo mundo parece estar gritando o tempo todo. Ainda assim, há bons momentos de nuance e mais leveza, principalmente em passagens mais emocionais. Para quem já conhece a marca, relembrar esses momentos pode arrancar uma ou outra lágrima, e muito se deve a bela interpretação dos atores e atrizes que emprestam seu talento para esses personagens tão queridos.
One Piece Odyssey é, sem dúvidas, uma das melhores e mais importantes adaptações de animes para os games nos últimos anos, não só por trazer novamente uma das marcas mais significativas das últimas décadas, mas primordialmente por respeitar o material de base sem se limitar a emular situações e recontar de forma redundante o que já vimos. Ainda que revisite arcos muito queridos pela fanbase, ele o faz por uma outra perspectiva, com uma equipe já madura e com relações muito melhor estabelecidas do que quando essa trupe improvável se conheceu. Em transposições de outras mídias para games, nem sempre esta estrutura de colcha de retalhos faz sentido e na maioria das vezes se apoia no saudosismo, mas felizmente aqui ela se sustenta bem, mesmo que o ritmo da narrativa e o level design sejam inconstantes.
O game está longe da excelência técnica que se vê em produções de maior orçamento, e ainda repete muito de bases que os desenvolvedores já sedimentaram em outras adaptações, como por exemplo um estilo artístico que traz uma textura de plástico (ou de borracha, para não fugir do tema) para personagens tipicamente idealizados no 2D. O mesmo vale para a exploração quase linear não fossem as andanças de vai-e-vem e o tradicional sistema de combate que nos primeiros segundos se mostra eficiente e equilibrado. Seja como for, há aqui um jogo sólido que não reinventa a roda e vai se mostrar bem confortável para quem gosta de RPGs japoneses por turnos, ainda mais se estiver pronto para uma nova-velha aventura dos Piratas do Chapéu de Palha.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Bandai Namco.
Veredito
One Piece Odyssey é um belo resgate de alguns dos momentos mais icônicos da franquia, sem contudo apelar para uma nostalgia descerebrada e levando a trama para frente. Com sistemas de combate e exploração sólidos e tradicionais, peca em arrastar a narrativa de forma desnecessária e por um level design limitado, mas o saldo ainda é bem positivo, principalmente se você é um fã dos Piratas do Chapéu de Palha.
One Piece Odyssey
Fabricante: ILCA
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: RPG
Distribuidora: Bandai Namco
Lançamento: 12/01/2023
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
One Piece Odyssey offers some of the franchise’s most iconic moments, without appealing to mindless nostalgia and moving the plot forward. With solid and traditional combat and exploration systems, it lacks in the narrative unnecessarily and in the limited level design, but the balance is still very positive, especially if you are a fan of the Straw Hat Pirates.