Já faz um tempo que a arte visual nos videogames chegou ao ponto de ser tão fluida e harmoniosa que os faz parecer ilustrações ou desenhos animados jogáveis. Mesmo familiarizado com esse tipo de arte nos jogos, de vez em quando surge mais uma obra que surpreende com uma beleza vigorosa e fascinante. Em 2018, a desenvolvedora espanhola Nomada Studio lançou um título que merece esse louvor: GRIS. Seis anos mais tarde, ela mostrou que soube repetir o feito sem cair na mesmice, entregando mais uma obra de arte ainda mais majestosa que a anterior. O nome é Neva.
Neva é um filhote de lobo de chifres. Ele vaga com sua mãe e Alba, uma humana, mas um rastro de morte cobre a terra como um vasto manto escuro, apodrecendo as árvores e derrubando os pássaros do céu. Dos cadáveres, brotam papoulas sem cor, substituindo a vida pulsante que preenchia o lugar. Criaturas rastejantes com máscaras atormentadas avançam como formigas para devorar e entrar nos restos mortais, como paródias macabras de seres que eram altivos e pacíficos até pouco tempo atrás.
Vendo-se tragicamente sozinha com Neva, Alba seguirá em frente, protegendo o lobo com sua espada em um ciclo de crescimento que atravessará as estações e as fases da vida do companheiro lupino.
A representação artística das nuances de vida e morte em Neva é impressionante, tanto na profunda simbologia quanto nas paletas de cores espantosamente eficientes, seja para transmitir beleza e graça, ou decadência e degradação — ou tudo isso ao mesmo tempo, em um processo inexoravelmente infeccioso. Se você embarca em jornadas pela promessa de beleza estética, Neva satisfará a ânsia de seus olhos.
Como jogo, porém, a satisfação dependerá das expectativas de cada um. Quem gostou da experiência de plataforma minimalista de GRIS já sabe o que esperar em Neva. Há trechos em que precisamos planejar e cadenciar os saltos, mas são puzzles simples que não colocam Neva essencialmente dentro do gênero.
Algo que chamou a atenção desde o primeiro trailer é a presença de combate. Alba tem ataque de espada, ataque para baixo e esquiva, um repertório de ação 2D que, mesmo sendo muito básico, é eficaz no que se propõe. Os segmentos de luta são frequentes, mas não constantes ao ponto de enjoar pela simplicidade.
À medida que avançamos pelos capítulos do jogo, representados pelas quatro estações, novos inimigos aparecem, com destaque aos chefes, e Neva cresce para ajudar a enfrentá-los, tornando as coisas um pouco mais dinâmicas. Logo, embora cumpra seu papel de nos fazer sentir que lutamos ativamente pela sobrevivência desesperada da dupla, a peleja também não é o traço definidor do jogo.
Em boa parte do tempo, temos longos trechos de caminhada plana em cenários deslumbrantes e atmosféricos, entremeados de saltos e fugas urgentes que não intencionam grandes desafios, mas sim continuidade de movimento, controlando com nossas mãos o fluir de Alba por entre as cores e a escuridão das matas, com uma determinação que faz parecer que sabemos qual é o objetivo final. Em narrativa e gameplay, tudo o que temos é o impulso de seguir sempre em frente, sobrevivendo em conjunto com a nossa família de um lobo só.
A interação entre Alba e Neva é mediada por um botão e pelo envolvimento de quem joga. Apertar triângulo faz com que a mulher emita a única palavra dita, chamando o nome do animal em vários tons expressivamente diferentes. É interessante que a voz também sai pelo speaker do DualSense, criando uma espécie de eco etéreo e intimista.
Quando Neva hesita perante um salto distante, devemos interagir com ele para incentivá-la. Quando ele está assustado e foge de inimigos, podemos acariciá-lo para mostrar que o perigo passou. Na verdade, podemos chamá-lo e afagá-lo a qualquer momento, se assim quisermos. O primeiro capítulo, quando Neva ainda é um filhote, tem vários momentos que incentivam esse tipo de conexão, algo que, infelizmente, senti que foi menos utilizado no decorrer da campanha.
Logo, a intenção não está na complexidade da mecânica de interação, mas no significado que damos ao nosso ímpeto de criar o contato entre as personagens. Somos observadores, mas também damos nosso melhor para que Alba possa proteger seu querido lupino.
O silêncio verbal abre lacunas que são preenchidas com o que passa em nosso peito, levando a uma experiência que tem temas e humores gerais, como apontei acima, mas, no fim das contas, deixa a significação a cargo de quem joga. A música é crucial para a condução emocional, movendo-se em um encaixe perfeito que acompanha cada momento com maestria. A harmonia narrativa das composições do grupo Berlinist é simplesmente impecável.
Neva é, portanto, uma experiência narrativa e afetiva, como uma história sem palavras que permite a ação do leitor ao se mover pelo mundo e ao formar suas próprias concepções e interpretações, conforme a experiência emocional de cada um, imergindo no íntimo de uma fábula simbólica que constantemente põe a vida diante da morte. Combate, plataforma e puzzle, nessa ordem de importância, fazem parte da alquimia que compõe Neva, mas nunca como o foco principal. O que importa aqui é o todo da experiência e, sinto, o objetivo é alcançado.
Uma das inspirações é, clara e declaradamente, filmes do estúdio Ghibli. Quem viu Princesa Mononoke não tem como não pensar no filme no decorrer de todo o primeiro capítulo, mas o clímax de perseguição desse trecho parece diretamente vindo de A Viagem de Chihiro.
Na prática, Neva é um game do tipo “o trailer representa bem o que esperar, se gostou do que viu, deve gostar de jogar”. Contudo, se o silêncio de passear pelo bosque perigoso incomoda, deixe-o de lado — mas confira ao menos os primeiros quatro minutos do nosso vídeo de gameplay para ver a magnífica cena de abertura.
Pessoalmente, no começo achei que a simplicidade da gameplay poderia diminuir o interesse para mim, mas não foi isso o que aconteceu. Ainda acho que, como jogo, ele se beneficiaria de maior diversidade mecânica de plataforma e de combate, mas, sendo apenas como realmente é, Neva é uma obra de arte arrebatadora.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Devolver Digital.
Veredito
Apoiando-se em uma narrativa de contemplação afetiva, guiado pelas emoções pungentes da música em perfeita sintonia com cada momento e construído sobre a arte visual de beleza profunda como poucos jogos alcançam, Neva é uma unidade essencial, uma experiência significativa que não foca na ação de plataforma, mas emprega-a como uma pequena parte que compõe um todo artístico indivisível, determinado e esperançoso.
Neva
Fabricante: Monada Studio
Plataforma: PS5
Gênero: Aventura / Plataforma
Distribuidora: Devolver Digital
Lançamento: 15/10/2024
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Based on a narrative of affective contemplation, guided by the poignant emotions of the music in perfect harmony with each moment and built on visual art of profound beauty that few games achieve, Neva is an essential unit, a meaningful experience that does not focus on platforming action, but employs it as a small part of an astounding, determined and hopeful whole.