Na década de 80, quando os consoles caseiros ganhavam espaço na preferência dos consumidores, as desenvolvedoras optavam por uma técnica de programação que prezava por fases com alto grau de dificuldade que exigiam do jogador destreza e insistência para alcançar o próximo objetivo. Dessa forma, muitos dos estágios idealizados pelos estúdios nunca eram jogados ou ao menos vistos fazendo com que terminar um jogo aproveitando todas as suas etapas parecesse um desafio reservado a poucos.
Após a revolução tridimensional, que permitiu que jogos eletrônicos ganhassem profundidade e imersão, as questões em torno de como um game deveria ser aproveitado são alteradas com o intuito de privilegiar não somente a experiência de jogo como também todo o trabalho feito por artistas e programadores. Para que este feito fosse alcançado, mudanças no gameplay foram estabelecidas e o fator dificuldade foi um dos aspectos mais repensados nessa nova tomada de rumo resultando em jogos mais direcionados. Por consequência, os objetivos de cada fase bem como a forma de lidar com desafios tornaram-se mais equilibradas dentro da perspectiva de um vídeo game eliminados trechos em que o jogador deveria perder diversas vidas para passar um obstáculo.
Considerado como jogos mais fáceis e sem uma proposta bem definida de dificuldade, os jogadores mais adeptos criticaram essa nova forma de se conceber um jogo tendo como padrão games antigos que tinham uma lógica de estágios peculiar e não perdoava os menos insistentes.
Como uma forma de reviver essa experiência do passado, a sétima geração de consoles considerou trazer de volta níveis de dificuldade e desafios mais elevados adaptados ao universo de motores gráficos melhorados e que permitiam interações diversas. Um dos títulos mais marcantes dessa proposta foi Dark Souls que possibilitou aos jogadores horas de dedicação apenas para manter o personagem vivo além de uma estratégia bem montada para obter itens que poderiam ser perdidos e serem recuperados dentro de um espaço de tempo. Mais do que um jogo, Dark Souls entregou uma espécie de sub-gênero que inspirou diversas outras produções como Lords of Fallen concretizando características particulares que é conhecido na comunidade como o gênero soulslike.
Buscando ir de encontro com fãs desse tipo de jogo, Mortal Shell é o título da Cold Symertry que, dentro do orçamento de uma produção indie, busca trazer ao público uma experiência soulslike autêntica que guarda os principais aspectos dessa modalidade destacando a luta, os comandos de jogabilidade e um conceito original. Idealizado e concebido por uma equipe de apenas 15 pessoas, o título se mostra como um genuíno esforço para entregar aos jogadores um produto que, além de ter por objetivo criar uma identidade própria, deseja ser fiel ao gênero investindo no que ele tem de melhor.
O contato com Mortal Shell é um misto de expectativas diversas que são atendidas através de conceitos como gênero e comandos, mas que também são quebrados pela experiência gráfica e uma ausência de “feeling” no gameplay como um todo. Apesar de aproveitar todas as características do soulslike, o jogo ainda necessita de um polimento maior em termos de apelo ao jogador ou mais comumente conhecido como fator replay.
Por soulslike compreende-se um gênero que guarda aspectos de um sistema de RPG, mas que eleva essa propriedade a um patamar mais elevado permitindo novidades ao lidar com fatores como sobrevivência, administração de itens e combate. Neste tipo de gênero, a combinação de fatores de RPG que compõem o jogo é utilizada de forma mais intensa, o que garante um nível de dificuldade maior como é o caso da coleta de armas e upgrades bem como o enfretamento de inimigos. Sobreviver a este tipo de jogo requer paciência e treino para passar sempre por dificuldades uma vez que ao morrer, todos os itens são deixados no local fazendo com que o jogador tenha que refazer o caminho para recuperá-los. Além disso, o nível de força dos inimigos geralmente é maior que a do personagem gerando lutas trabalhosas que, quando vencidas, retribui o jogador com mais inimigos de força elevada.
Mortal Shell busca alinhar todos os elementos de um bom jogo para promover partidas interessantes e desafiadoras. O game se destaca em alguns aspectos técnicos como as propriedades da jogabilidade, que são mais voltadas à modalidade de jogo, mas apresenta uma experiência de imersão menos produtiva.
Mesmo não tendo um grande orçamento como jogos de grandes produtoras, o título desenvolve um ótimo trabalho no quesito jogabilidade e sonoridade que reforçam o estilo de jogo e atendem as necessidades de quem procura este gênero. Os comandos de Mortal Shell possuem padrões específicos que devem ser aprendidos pelo jogador com o objetivo de se obter sucesso nas batalhas contra inimigos poderosos.
O maior destaque do sistema de batalha é a possibilidade de petrificação do corpo que permite um contra ataque mais eficiente e maior chance de derrotar os inimigos que estão pelo caminho. Entretanto, cabe ao jogador mentalizar o cálculo temporal e a precisão do tempo para que o ataque seja efetivo visto que a habilidade possui tempo de carregamento e, se mal calculada, abre vantagem para que o personagem seja ferido gravemente.
Todas as batalhas devem ser pensadas para que as vidas sejam poupadas e não haja a necessidade de se começar tudo novamente. Ao avistar um oponente, o jogador deve avaliar se possuí atributos e itens necessários para dar conta da luta e, em caso positivo, deve aguardar o momento correto para realizar a petrificação que acontece quando o ataque inimigo começa a ser deferido. Se realizado corretamente, a vantagem de contra ataque é aberta e cabe a quem joga acertar os golpes que vão eliminar o oponente. No entanto, essa abertura de vantagem não garante a vitória e o jogador deverá golpear com precisão e cadência para não dar chance de o inimigo revidar.
O conceito básico de Mortal Shell consiste em recuperar carcaças de guerreiro mortos para obter habilidades mais eficientes que colaborem para as diversas lutas e objetivos que ocorrem ao longo do jogo. Cada carcaça encontrada permite uma nova habilidade com armas e desempenho nas lutas sendo de fundamental importância encontrar esses corpos para avançar. Junto a esse conceito, soma-se os upgrades das armas e a administração de itens que são descomplicados para serem executados, mas que exigem algumas horas de jogos para a obtenção de produtos refinados e de maior potência.
Outro aspecto que compõe a jogabilidade é o mapa do jogo que possui grande extensão e diversos caminhos que, alinhado a própria condição do gênero soulslike, não sinaliza claramente quais são os objetivos e nem para onde o jogador deve ir aumentando a incerteza e a tensão de encontrar duras batalhas pelo caminho. Dessa forma, toda a programação dos controles é pensada para atender ao tipo de jogo com o intuito de entregar um título genuíno ao público.
Em termos de sonoridade, a Cold Symetry aposta em sonoplastia e ambientalização para proporcionar o melhor envolvimento que este quesito pode proporcionar. Apesar de não ter uma trilha sonora marcante, é a forma como os desenvolvedores interpretam os cenários que fornecem vida ao jogo como os ruídos das águas, dos grunhidos dos inimigos, do coaxar dos sapos, das gotas de chuva e toda uma série de ricos elementos sonoros que completam experiência. Se aproveitado por fones de ouvidos de alta precisão como a linha Gold da Sony, a dimensão pode ser ouvida mais claramente sendo que os ruídos podem ser percebidos com maior ou menor volume dependendo de onde o personagem está.
É possível escutar inimigos resmungando a uma certa distância ou mesmo as notas musicais dos instrumentos que tocam que permitem calcular sua distância e promover a melhor estratégia de sobrevivência seja ela combater ou fugir de graves ameaças. Um único ponto da questão sonora do jogo que se destaca menos em relação aos outros é a dublagem que, apesar de não ser constante, soa pouco convincente e, às vezes mal encaixadas com o personagem que enuncia. O trabalho desenvolvido se assemelha com jogos de gerações mais antigas em que a captação e reprodução de áudio era menos apurada e fornecia um resultado menos empolgante. Mesmo assim, o planejamento de áudio é bem realizado e entrega competência.
Sendo um gênero específico como o soulslike, a parte técnica representa um bom aliado para a fluência do jogo já que é por elas que a proposta pode ser realizada de forma eficiente. Entretanto, nem todos os quesitos são bem trabalhados em Mortal Shell, o que afeta a forma como o jogador lida e aproveita o título.
Apesar de ser muito questionado por jogadores de todos os estilos e identidades, o aspecto gráfico ainda é um tema que gera discussões calorosas entre os gamers no sentido de saber se alta definição, resolução de imagens e potência de motores gráficos ainda são relevantes. Para um game no estilo soulslike, um trabalho mais refinado com a questão gráfica pode ser decisivo para completar a imersão no jogo e criar um “feeling” de aceitação de quem joga.
Nesse quesito, Mortal Shell não se revela polido e traz gráficos ultrapassados aos moldes do PS3 não aproveitando o que o Unreal Engine tem a oferecer. Mesmo sendo um motor que mostre sinais de desgaste, diversas produtoras conseguiram maximizar o potencial da ferramenta produzindo jogos graficamente bonitos e aceitáveis para a geração. As texturas gráficas parecem ser sempre as mesmas e possuem pouca definição apresentando uma imagem “lavada” e opaca com exceção de alguns pontos dos cenários que possuem mais brilho e definição. As formas e as cores buscam apresentar um cenário detalhado, mas falha ao propor uma técnica pouco apurada que não contempla o estilo de jogo em sua totalidade.
Ainda considerando o estilo soulslike para pensar a efetividade da experiência, um fator que também é prejudicado é o que comumente entende-se por fator “replay”, isto é, uma espécie de apego que o jogador tem com o game. Isso faz ou com que a pessoa se dedique às partidas, mantendo uma forte conexão com o gameplay, ou deixe o título para trás por falta desse fator.
Neste sentido, Mortal Shell não investe fortemente em pontos que poderiam colaborar com o replay como a criação de um personagem cativante, inimigos bem pensados ou mesmo as motivações que levam a história se concretizar. O jogo da Cold Symetry possui uma premissa interessante, porém mal aproveitada. O fato de o personagem guerreiro se apossar de outros corpos poderia ser desenvolvido de uma maneira mais sombria e instigante como mostrava o trailer. Entretanto, essa característica não foi fortemente explorada para se adequar ao um tipo de jogo bastante específico. Apesar de a avaliação do chamado fator replay variar entre os jogadores, o aspecto que cria uma conexão entre quem joga e o próprio jogo ainda é um fator bastante considerado e muito prezado pelas desenvolvedoras que buscam, junto a uma relação próxima da comunidade, e criar o “feeling” para o jogo. É possível perceber um certo vazio nas andanças de Mortal Shell mesmo que o gênero suolslike esteja bem adequado. A repetição de batalhas contra fortes inimigos vai se tornando mais uma obrigação e não um desafio conforme se acumula horas de jogo gerando uma sensação de não saber qual é a proposta de progressão.
Por ser um título com um apelo sobrenatural, Mortal Shell seria mais convincente se fosse pensado com elementos de terror, suspense e entidades malignas criando mais adequadamente um reino das sombras regado a desespero e tensão que fariam a imersão imediata e coerente com o conceito original. O resultado final é um misto de boas técnicas de preparação de gênero, jogabilidade e som com fatores que freiam o jogo no quesito participação com algumas inconsistências na percepção gráfica e envolvimento geral com a experiência de gameplay.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela Playstack.
Veredito
Mortal Shell é um esforço em entregar um jogo soulslike prezando pelo bom desenvolvimento do gênero e comandos bem trabalhados que garantem uma técnica apurada para um game indie. A proposta sobrenatural é interessante com boa premissa e conta com elementos típicos desse tipo de jogo que proporcionam certa fluidez no gameplay. Entretanto, o conceito geral é pouco aproveitado e não se alinha completamente à proposta, resultando em um jogo com menos envolvimento por parte do jogador do que é esperado.
Veredict
Mortal Shell is an effort to deliver a soulslike game that values the good development of the genre and well-crafted controls that guarantee a refined technique for an indie game. The supernatural proposal is interesting with a good premise and has elements typical of this type of game that provides a certain fluidity in the gameplay. However, the general concept is underused and does not fully align with the proposal, resulting in a game with less involvement on the part of the player than expected.