Quem é fã dos jogos Soulslike vai entender bem o que vou dizer. Mesmo com a recente popularização do gênero e a consequente enxurrada de títulos inspirados na fórmula da FromSoftware, de alguma maneira ainda ficamos empolgados quando um novo game do gênero é anunciado. Essa empolgação passa muito pela capacidade que esses jogos têm de nos desafiar, e pela incrível sensação que experimentamos ao superarmos esses desafios.
Por isso, quando Lies of P foi revelado, a primeira impressão que tive foi das melhores. Claro que o impacto inicial por sua semelhança visual com Bloodborne é inegável, mas quem teve a oportunidade de testar a demo conseguiu perceber que o game também compartilha de mecânicas presentes em outros jogos de sucesso da FromSoftware.
A história de Lies of P é baseada nas “Aventuras de Pinóquio”, a obra clássica de autoria do italiano Carlo Collodi. Ela se passa em Krat, uma cidade costeira que possuía uma rotina pacata, até que alquimistas chegaram e a transformaram em um polo de desenvolvimento industrial e científico. O jogo é ambientado entre o final do século XIX e início do século XX, um período histórico que ficou conhecido como a Belle Époque.
Conforme jogamos Lies of P, aos poucos a sensação de um jogo parecido com Bloodborne vai ficando em segundo plano. Lies of P possui sua própria identidade visual, representada por uma direção de arte excelente. Alguns cenários do jogo são compostos por elementos da arquitetura gótica, mas também realçam outras técnicas de construção da época que permitiram o uso de materiais como metal e ferro fundido. Isso é notado em cenários como a estação de trem, a galeria de moda, a feira de exibição de ciências, e até numa fábrica. Temas como teatro, música e arte também estão presentes, deixando evidente o cuidado que os desenvolvedores tiveram com cada detalhe. Claro que não podemos esquecer que estamos diante de um Soulslike, então essa ambientação também é contrastada por elementos sombrios de um mundo devastado.
Essa situação é explicada através da história da cidade de Krat. Com a revolução tecnológica, os humanos começaram a investir no desenvolvimento de títeres para cuidarem de suas atividades corriqueiras. Desde simples tarefas do lar, até atividades de entretenimento e trabalho industrial, a população de Krat passou a ser totalmente dependente dessas máquinas. Em um momento onde a cidade enfrentava sua maior crise, por conta de uma epidemia conhecida como a Doença da Petrificação, os títeres foram acometidos por um surto de frenesi, fazendo com que se rebelassem contra os humanos, levando Krat a um pesadelo sem fim. Pinóquio (ou P), um dos únicos títeres a não sofrerem com o frenesi, é despertado por um chamado de uma voz misteriosa para enfrentar essa ameaça. A partir daí, nossa jornada começa.
Algo que chama a atenção em Lies of P é que, diferentemente da maioria dos jogos Soulslike, a história é contada de maneira mais direta. Ainda temos o clássico sistema de obtenção de informações adicionais por descrição de itens, colecionáveis e através dos muitos diálogos disponíveis, mas quem não se importar em ir atrás disso poderá compreender a história principal sem maiores problemas. O jogo segue um sistema de progressão mais linear. A cada nova área, há um chefe final para ser derrotado. Ao derrotá-lo, outra área será liberada e isso se mantém durante a maior parte do jogo. Essas áreas possuem uma boa variação, mesmo prevalecendo no jogo um tom mais acinzentado, e o level design conta com áreas adjacentes para serem exploradas e um bom posicionamento de atalhos.
Além da campanha principal, que pode levar cerca de 35 horas, Lies of P também oferece diversas missões secundárias. Essas missões normalmente envolvem conversas com NPCs, realização de tarefas, solução de enigmas e até alguns mapas do tesouro. As missões secundárias funcionam de maneira mais simples que em muitos jogos desse estilo. Você pode, inclusive, acessar o sistema de viagens rápidas para buscar informações sobre a localização dos próximos passos de algumas missões.
Os NPCs no geral são bons, sendo que muitos deles se caracterizam por atitudes suspeitas, deixando no ar dúvidas sobre algumas decisões que você deverá tomar ao longo do jogo. Isso vai de encontro ao sistema de mentiras, pois P é o único títere capaz de contá-las. Muitas vezes, durante diálogos ou ao entregar missões secundárias, você será posto diante de um dilema sobre se deve ou não mentir. Essas mentiras quase sempre servirão como palavras de conforto, ao passo que dizer a verdade parece ter um impacto maior nos personagens. Conforme suas decisões, você vai moldando P para uma forma mais humana ou mais máquina. Isso pode influenciar no visual do personagem, no resultado de algumas missões e também no final do jogo.
Em termos de jogabilidade, Lies of P talvez seja o jogo que mais se manteve fiel aos títulos da FromSoftware, dando preferência para replicar elementos de alguns de seus principais títulos à arriscar trazer uma nova abordagem para o subgênero. O mapeamento dos botões, as animações, até alguns problemas, como forma para correr e executar o pulo, tudo é muito familiar.
Os pontos de controle aqui são chamados de Stargazer, sendo que, ao morrer, voltamos ao último checkpoint salvo. No lugar de nossa morte ficará o fragmento de Ergo, a energia que usamos para subir de nível e comprar itens. Onde Lies of P difere um pouco nesse sistema é que, sempre que seu fragmento de Ergo estiver no mapa, se no caminho para recuperá-lo você sofrer dano, a quantidade disponível para ser recuperada vai diminuindo. Se morrer novamente, esse fragmento não sumirá, mas sofrerá uma redução significativa a cada nova morte. Outra ideia interessante é que quando seu item de cura, aqui chamado de célula vital, estiver zerado, uma nova célula será recarrega conforme você causar dano nos inimigos ou bloquear seus ataques. Essa mecânica pode ser um diferencial principalmente durante as lutas contra os chefes.
As armas têm ótima variedade, muitas delas com propriedades únicas e bônus de atributos. Uma característica singular de Lies of P é que você pode combinar partes dessas armas para criar uma novas variações. Cada arma é dividida entre sua lâmina e seu punho. Essas partes podem ser desmontadas e remontadas com outras partes para mudar o moveset e suas habilidades. Mais do que isso, ao combinar armas de diferentes categorias, os bônus de atributos são herdados. Esses bônus das armas também podem ser aprimorados ou até mudados com as manivelas que são instaladas nos punhos. Isso resulta em muitas possibilidades de customização para seu estilo de jogo preferido.
Além das armas básicas, que variam entre as tradicionais sabres, foices, lanças, espadas, para até algumas mais peculiares, como uma chave de grifo e uma pá, o jogo também conta com armas especiais que são adquiridas com o Ergo de cada chefe derrotado. Essas armas são as únicas que não podem ser desmontadas ou combinadas, mas possuem características e habilidades próprias.
Aliás, essas habilidades especiais estão dentre as tantas mecânicas que Lies of P pegou de jogos da FromSoftware, se assemelhado muito às artes de armas de Dark Souls 3. Cada arma vem com duas dessas habilidades, chamadas de Fábulas, sendo uma delas correspondente à lâmina e outra ao punho. Essas habilidades podem ser um ataque especial único, um buff de dano, uma técnica de defesa, dentre muitas outras.
Outro item importante do arsenal de P é o braço legionário, uma prótese mecânica muito similar à de Sekiro: Shadows Die Twice. Esse braço pode ser modificado e melhorado com recursos encontrado nos mapas e podem incluir um gancho para puxar os inimigos e evadir de alguns ataques; uma ferramenta que atira fogo, choque ou ácido; uma espécie de escudo que explode ao ser atingido; um mecanismo para plantar minas explosivas; e um lançador de bombas à média distância.
Sobre os inimigos, vale destacar a ótima variedade presente no jogo. O design visual dos títeres é excelente, apresentando muita diversidade de acordo com as funções para as quais foram criados pelos cientistas de Krat. Além dos títeres, temos também outros tipos de inimigos, como os monstros (algo explicado durante a história), e até humanos que funcionam como mini bosses, lembrando as lutas contra os caçadores de Bloodborne.
Um ponto chave de Lies of P em relação ao combate é que o game incentiva a jogar de forma mais ofensiva. Um bom exemplo disso é que ao bloquear um ataque, parte do dano é absorvido pela barra de vida de P, mas esse dano não é totalmente convertido de imediato. Um trecho da barra de vida fica destacada em uma cor marrom, indicando que aquela quantidade de vida pode ser recuperada ao atacar o inimigo, outra vez lembrando Bloodborne.
Essa mecânica também está presente nos inimigos, mas de forma diferente. Toda vez que causar dano ao inimigo, você notará que parte da barra de vida dele ficará marrom. Essa fração de vida marrom poderá voltar aos poucos para ele, caso não sofra dano por um tempo. Isso tem maior impacto nas lutas contra os chefes. Então se prepare para alguns momentos de desespero, quando você perceber que aquele chefe problemático está recuperando um pouco de vida durante a batalha.
Uma forma de evitar que o inimigo recupere vida é realizar um ataque letal. Isso pode acontecer toda vez que você conseguir deixá-lo em estado atordoado. Toda vez que um bloqueio for realizado no momento exato, isso evitará que receba parte do dano e também contribuirá para construir no inimigo um estado atordoável. Quando atingir esse estado, você notará um contorno branco na barra de vida do inimigo. Nesse momento, será possível derrubá-lo com um golpe carregado ou um ataque de fábula, dando oportunidade para você acertá-lo com um ataque letal.
Essa mecânica do bloqueio é o ponto chave da maioria dos combates. E mesmo que a esquiva tenha sido melhorada com o feedback dos jogadores durante a demo, no fim das contas ela ainda vai funcionar mais como uma medida emergencial. Todo esse sistema de bloqueio se torna mais importante quando colocado junto com características das armas e habilidades. Algumas armas possuem uma melhor redução de dano recebido e durabilidade. Os bloqueios consequentes podem danificar sua arma, fazendo com que você tenha que consertá-la durante o combate. Em contrapartida, bloqueios bem sucedidos também podem quebrar as armas do inimigos.
Isso tudo deixa o combate mais direcionado. Algo que não me agradou muito foi que alguns inimigos, em especial os elites e chefes, tendem a desferir diversos ataques consecutivos quando estiverem sob pressão, tornando mais difícil evitar sofrer dano ou conseguir apará-los de forma perfeita. Isso é mais perceptível quando eles realizam ataques enfurecidos. Esses ataques são indicados quando o inimigo ficar destacado em vermelho. Muitos desses ataques possuem uma espécie de rastreio e uma hitbox grande, tornando o bloqueio perfeito a melhor alternativa para evitá-los.
Então, por muitas vezes ficamos em situações onde precisamos atacar para tentar atordoar o inimigo ou para impedi-lo de recuperar vida, mas sem sabermos qual o momento ideal para isso. Não há um indicativo do quanto falta para seu oponente ficar em estado atordoável. Quando ele estiver com a barra branca, é necessário calcular o risco de tentar acertá-lo com um ataque carregado, pois você poderá cair em uma armadilha se tentar fazer isso de forma desordenada.
Todas essas mecânicas tornam as lutas principais um jogo de paciência. Você deve entender o momento certo de se defender, esquivar e contra atacar. Muitas dessas situações podem ser aliviadas com melhorias a serem adquiridas, mas a maior parte delas só fica disponível na porção final do jogo. Por isso, considero a curva de aprendizado em Lies of P maior que boa parte dos títulos do gênero. Em algumas lutas contra os chefes esse sistema pode se tornar um pouco frustrante, pois a maioria delas possui a mecânica duas fases, sendo que, em alguns casos, você terá que esgotar toda a barra de vida do boss para ter acesso à segunda fase. Portanto, ficar preso nesses confrontos pode se tornar desgastante.
Para amenizar um pouco isso, Lies of P oferece um mecanismo de convocação de ajuda offline. Antes da maioria das boss fights, você poderá oferecer um item para chamar um espectro para ajudá-lo. Ele não possui uma inteligência artificial muito boa, mas causa uma quantidade razoável de dano e pode ajudá-lo na distração do chefe. Para quem quiser optar pelo uso do espectro, o game disponibiliza um item que pode ser acionado para fortalecê-lo.
Em termos de progressão, Lies of P conta com o tradicional sistema de level up, onde gastamos o Ergo obtido para distribuirmos pontos entre os atributos disponíveis. Aqui vale citar que toda vez que quiser subir de nível, será necessário fazer uma viagem rápida para o Hotel para conversar com um NPC específico. Isso torna esse processo entediante e só é solucionado na parte final do game.
Só que além da evolução de nível tradicional, Lies of P também conta com uma espécie de árvore de habilidades, chamada de Órgão P. Esse sistema pode ser acessado do Hotel e depende de um item chamado Quartzo para ser aprimorado. A cada upgrade adquirido você poderá optar por mais itens de cura, melhorias para a movimentação, para as habilidades, e muitos mais. Esses upgrades também são combinados com habilidades passivas das mais diversas, como ampliação da retenção de vida no bloqueio, aumento do dano de fábulas, ganho de energia legionária, e assim por diante.
Ainda há os amuletos, fundamentais para equilibrar melhor sua build e conceder algumas vantagens durante o combate. Os itens de defesa estão divididos entre quatro categorias, duas delas mais focadas em proteção elemental e as outras duas em variedades de proteção física. Já os trajes e máscaras são apenas cosméticos, mas vale destacar o ótimo design que possuem.
Do ponto de vista técnico, temos a opção dos modos qualidade e performance. O modo qualidade deixa o jogo limitado aos 30 quadros por segundo, ao passo que no modo performance ele roda estável, permanecendo a maioria do tempo em 60 quadros por segundo. A parte gráfica é satisfatória, mesmo no modo performance, o que o torna a melhor opção para a aproveitar o jogo. Em termos de bugs, chama a atenção a frequente ocorrência de eventos de pop in de elementos de cenário. Também é possível encontrar atrasos na renderização de texturas.
Para finalizar, não poderia deixar de fora um dos maiores destaques de Lies of P. A trilha sonora do game está dentre as melhores que tive oportunidade de ouvir recentemente. Não apenas durante as lutas contra os chefes, onde são bastante empolgantes, mas também em toques sutis como nos discos que funcionam como colecionáveis e que podem ser reproduzidos no gramofone do Hotel.
De forma geral, Lies of P corresponde à expectativa criada em torno de seu lançamento. O game conta com uma ambientação excelente e uma história satisfatória. Algumas de suas mecânicas de combate podem parecer frustrantes em alguns momentos, mas os que conseguirem se adaptar a elas terão uma boa experiência de jogo Soulslike .
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela NEOWIZ.
Veredito
Lies of P combina elementos de jogos Soulsborne, adiciona algumas ideias próprias e coloca tudo em uma versão muito bem ambientada de um mundo obscuro, inspirado por uma das histórias mais conhecidas da literatura clássica. Algumas de suas mecânicas de combate podem levar um pouco mais tempo para se acostumar, mas isso não tira de Lies of P seus méritos em ser um dos melhores Soulslikes lançados recentemente.
Lies of P
Fabricante: Round8 Studio
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: RPG / Ação / Soulslike
Distribuidora: NEOWIZ
Lançamento: 19/09/2023
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Lies of P combines elements from Soulsborne games, adds some of its own ideas and puts it all in a very well-set version of a dark world, inspired by one of the most recognizable stories in classic literature. Some of its combat mechanics may take a little more time to get used to, but that doesn’t take away from Lies of P its merits of being one of the best Soulslikes released recently.