Não é segredo para ninguém que a indústria atual dos videogames está se apoiando, como quem precisa de duas muletas, na herança rica e gloriosa das gerações passadas. É chover no molhado dizer que nunca na história recebemos tantos conteúdos requentados, muitos deles relançamentos mal cuidados que se aproveitam de uma certa carência do público seja por coisas novas, seja pela retomada de franquias amadas e esquecidas no churrasco.
Dentre tantas coisas que ninguém pediu, algumas IPs continuam sendo objeto de desejo por um grupo de fãs saudosistas (ou masoquistas, que sabe) e uma delas é, sem dúvidas, a linha Legacy of Kain, iniciada lá em 1996 com toda a força da parceria entre a Crystal Dynamics e a Eidos Interactive, que já tinha nos rendido um tal de Tomb Raider semanas antes.
Foi em 1999, porém, que a série realmente sensibilizou o grande público do primeiro Playstation (e mais tarde, do subestimado Dreamcast) com o primeiro Legacy of Kain: Soul Reaver, que nos transportou para algo em torno de 1500 depois dos eventos de Blood Omen e nos apresentou Raziel, um dos seis discípulos de Kain que, tal como a lenda de Ícaro, superou seu mestre desenvolvendo asas e foi punido com a desculpa de que aquela aberração seria uma dádiva sombria, uma maldição.
A punição flerta com o arquétipo do anjo caído, uma vez que com as asas quebradas, Raziel é atirado para a destruição no Lake of the Dead, o que de fato quase o matou em definitivo. Por um milênio, o pobre coitado agonizou até ser restaurado por uma entidade conhecida como The Elder God, e debilitado, dá início a uma busca insaciável pelas forças que lhe permitirão, enfim, cumprir sua jornada de vingança contra Kain.
Ao confrontar seu mestre, o sujeito acaba sendo atirado a um passado ainda mais remoto graças à Chronoplasta, um dispositivo de viagem no tempo que lhe permite, no segundo Soul Reaver lançado dois anos depois, em 2001, explorar suas próprias origens e entender um pouco mais desta complicada relação. E por mais que essa duologia não esgote a relação intrincada entre estas entidades tão complexas, é muito provavelmente o ponto alto da franquia, que depois de outras sequências menos celebradas e algumas tentativas mal sucedidas de retorno, acabou de lado. Pelo menos até agora.
Legacy of Kain: Soul Reaver 1 & 2 Remastered é, portanto, uma resposta direta ao clamor de quem esperava, de forma nostálgica, reencontrar estes personagens agora, com toda a capacidade visual e narrativa que os videogames permitem. Mas para variar, em um reaproveitamento parcial do que já conhecemos a exatos 25 anos (o jogo celebra este importante aniversário, aliás), a expectativa ficou dividida. Seria este mais um port raso e mal atualizado ou seria uma versão realmente significativa e definitiva destas pérolas dos videogames?
Como um dos maiores referenciais da mescla entre beat ‘em up e hack ‘n slash tridimensionais, o primeiro impacto é o de que o jogo parece ter envelhecido relativamente bem, mas ainda entrega a sua idade. Suas mecânicas de combate funcionavam, mas tendiam ao tédio rapidamente, algo que só se agravou com os anos. Por outro lado, exploração e resolução de puzzles, coisas que foram referência para o gênero por muito tempo, se saem melhor, sobretudo nas transições e na disposição dos pontos de interesse no cenário.
Para o seu tempo, o tom sombrio da narrativa surpreendia pela profundidade dos temas tratados e pela violência gráfica impressa, mas mesmo com a forte potência do plano de fundo dessa história, o comportamento pouco nobre do herói já não tem o mesmo impacto, enquanto os visuais mais definidos se apoiam em um traço duro, agressivo, e se adaptam bem à alta definição graças a uma concepção que se prova sólida e robusta.
Por outro lado, os cenários e ambientes vazios de outrora parecem menos atraentes, mesmo na transição entre os planos material e espectral, ou quando povoados por uma diversidade de inimigos que mesmo nos dias atuais é difícil de encontrar. Entre homens, vampiros e criaturas do tal vortex, será necessário aproveitar bem dos movimentos e combinações disponíveis para Raziel enquanto ele recupera sua forma para não se frustrar diante sua missão principal. Aliás, com algumas tarefas complementares e opcionais, o sistema de progressão é muito agradável sobretudo para quem se dispõe a aproveitá-lo.
As mecânicas de interação e plataforma funcionam a contento tal como na remasterização recente da primeira trilogia do já citado Tomb Raider, mas não sem antes demandar uma certa adaptação por parte do jogador. Quando dominada a lógica de movimentação de câmera e transição entre duas realidades, tudo flui bem, ainda que o jogo seja pouco amigável com a imprecisão e não tolere erros grosseiros. Pela crueza de outros tempos, mais do que nunca a paciência é uma virtude.
Destaca-se também a dinâmica interessante de degradação constante do cadavérico Raziel no plano material em detrimento à sua recuperação quando está do outro lado do véu, e o papel importante da manifestação da tal Soul Reaver nesta restauração da própria existência deste herói pouco nobre. Perder ou aumentar a barra de saúde constantemente garante mais urgência à missão e mais gravidade às escolhas que fazemos.
Pelo aspecto técnico, não foram só os gráficos que foram retrabalhados para suavizar o aspecto poligonal do game original, que já fora muito bem recebido neste aspecto por crítica e público na segunda metade da década de 1990. O quesito sonoro, por sua vez, ganhou um refinamento consistente, valorizando o ótimo trabalho de vozes e toda a construção de uma ambientação mais soturna e carregada, ainda que a trilha musical nunca tenha sido especialmente marcante e, mesmo em momento de maior impacto, mantém o tom de suspense acima de batidas marcadas para a ação.
A transição entre os novos visuais e os originais é rápida e pode ser acionada a qualquer momento no toque de um botão, inclusive durante as cut-scenes in-game, e fica evidente nesta alternância que o jogo não perde muita coisa escolhendo-se um ou outro modo. Já as cenas pré-renderizadas em CGI sofrem bastante e, mesmo com alguns filtros de suavização, são feias e embaçadas, sem contar a artificialidade e o aspecto de bonecos articulados dos personagens animados com as tecnologias da época.
A atualização, vale lembrar, é uma ação de celebração de um quarto de século do primeiro destes dois games, e todo o material complementar valoriza esse caráter de registro e permanência. Há todo um conglomerado de conteúdos que valorizam esta herança, como o Lore Reader, com conteúdos criados a partir da colaboração com a comunidade de fãs da franquia, como mapas que integram organicamente os cenários por onde os jogos se passam.
A galeria de artes é um verdadeiro arquivo histórico, com muito material desconhecido do grande público, coisas originais, criações de fãs e cut-scenes organizadas e remasterizadas que trazem todo um cuidado de restauração. Esta atenção também pode ser vista em documentos de textos bem detalhados sobre a lore criada para a marca, bem como na seleção das músicas bem organizadas em uma playlist absolutamete nostálgica.
A sessão Lost Levels, em especial, permite darmos uma volta em ambientes totalmente novos e não utilizados nos jogos originais, nomeadamente Undercity, Smokestack, Retreat e Forges (esta que permitiria o uso de outros poderes elementais para além do fogo, o único que permaneceu), que foram preservados e finalmente podem ser apreciados. Alguns estão incompletos, com texturas rascunhadas e pouco acabamento, demostrando em que estágio estas fases estavam antes de serem abandonadas e cortadas da versão final.
Por outro lado, tamanho esmero não significa uma preocupação conosco, fãs brasileiros da obra, e mesmo com manifestações públicas (com direito até a abaixo assinado), o jogo não conta, pelo menos até o momento, com uma localização para o nosso português brasileiro, uma falha lamentável considerando a riqueza deste universo e o volume de informações que, para quem não domina o idioma gringo, acaba passando batido mais uma vez.
Também é de se notar que nem a mixagem de som está à altura dos recursos do som tridimensional das novas gerações, nem o sistema de vibração se apropria adequadamente das possibilidades mais básicas do DualSense, e ambos os tópicos foram mantidos sem atualizações notáveis. Houve pouco retrabalho na grande maioria dos departamentos, com exceção ao visual e seus retoques na modelagem de personagens.
Como um todo, a compilação tem alguns dos altos e outros baixos de vários produtos similares lançados recentemente. Há um esforço para que os gráficos sejam palatáveis para os padrões atuais, que apostam em traços e cores mais cartunizados para evitar comparações mais sofisticadas entre realismo e expressividade, enquanto que outros aspectos esperados pelo mercado atual são negligenciados ou, no máximo, atualizados de forma mais tímida.
Contudo, ambos são jogos muito acima da média em sua geração, e mesmo com algumas características de progressão, level design e interação datados, continuam sólidos e bem divertidos. Além disso, o arquivo histórico é recheado de conteúdo extra de décadas atrás ou criados mais recentemente, e a narrativa, para quem conseguir lidar bem com o idioma, tem muitas referências culturais distintas e uma certa ousadia criativa que anda em falta nos dias atuais.
Para quem não teve a oportunidade de conhecer os games originais ou para aqueles que realmente curtiam ambos em sua época, a recomendação para essa nova edição é quase certa. Em todas as suas melhores qualidades, ambos os Soul Reavers continuam plenos. Para quem espera uma modernização profunda de gráficos e jogabilidade, porém, melhor pensar com mais cuidado. Por enquanto Legacy of Kain: Soul Reaver 1 & 2 Remastered se preocupa bastante com o seu legado, mas olha de forma muito tímida para o que vem adiante.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Aspyr Media.
Veredito
Como visto em outros lançamentos similares, Legacy of Kain: Soul Reaver 1 & 2 Remastered é uma ótima forma de se matar as saudades ou para se conhecer a franquia pela primeira vez. No entanto, o jogo deixa claro que não pretende ir muito além de um port com visuais mais suavizados e conteúdo extra de bastidores da produção.
Legacy of Kain: Soul Reaver 1 & 2 Remastered
Fabricante: Aspyr Media
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: Ação
Distribuidora: Aspyr Media
Lançamento: 10/12/2024
Dublado: Não
Legendado: Não
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
As seen in other similar releases, Legacy of Kain: Soul Reaver 1 & 2 Remastered is a great way to feed nostalgia or get to know the franchise for the first time. However, the game makes it clear that it doesn’t intend to go much further than a port with smoother visuals and extra behind-the-scenes content.