Luz e sombras. Essa dicotomia simbólica que nos fascina desde o princípio dos tempos é também um dos dilemas mais interessantes onde a cultura pop explora contraposições filosóficas e estéticas, e recentemente games como Projection: First Light e Tandem: A Tale of Shadows trouxeram, cada qual a sua maneira, formas inovadoras de se lidar com essa dualidade, ainda que estejam longe de marcarem a linguagem para sempre como um dia Cidadão Kane fez pelo cinema. In My Shadow, lançado há alguns meses para PC e que chega agora ao Playstation 4, propõe uma abordagem que se não é exatamente nova, é extremamente cheia de potencial.
No game, desenvolvido pela Playbae e distribuído pela Alcon Interactive Group, acompanhamos a singeleza da jornada intimista pelas memórias de Bella, que contam vivências de um tempo há muito perdido junto à sua família. Por meio de puzzles envolvendo física de projeção de sombras nas paredes de sua antiga casa, conhecemos um pouco mais sobre como a nossa protagonista a partir de suas lembranças com seus entes queridos, como o cãozinho da família, seu irmão mais novo e seus pais. A cada nova passagem, um fragmento de memória nos mostra que as coisas nem sempre foram fáceis ou alegres para eles, o que não significa que não sejam fragmentos de vida lembrados e celebrados com carinho.
Como pode-se imaginar, esta não é exatamente uma história com uma estrutura linear, muito menos traz uma narrativa convencional. As memória de Bella, as quais vemos a partir da forma como ela mesma nos conta no melhor estilo de narração não-confiável, trazem algumas boas surpresas e nos guiam por reviravoltas que se não são especialmente surpreendentes, conseguem cumprir uma expectativa de dar significado àquele mundo tão auto contido. Por isso, eu não esperava um desfecho tradicional, e a falta de respostas ou de um fechamento conclusivo não me incomodou pessoalmente, mas também compreendo que esta é das partes mais incompletas (e até desajeitadas) de In My Shadow.
O que mais me pareceu desconexo foi que há muito pouco deste background traduzido para o gameplay em si, o que prejudica bastante a narrativa emergente, tão importante quando se trabalha com conceitos tão etéreos como sentimentos e sensações. Ainda que a composição dos cenários traga um ou outro elemento a se destacar, as relíquias que manipulamos nunca chegam a explorar o potencial do tema. O princípio básico da jogabilidade, aliás, é posicionar objetos comuns presentes em cada um dos quatro ambientes da casa de modo que a sombra deles projetada na parede sirva como plataforma para que, em um segundo momento, consigamos atravessar de um ponto a outro do trajeto de forma segura e coletando itens especiais pelo caminho.
Assim, pode-se manipular uma série de cubos e banquinhos, alguns móveis como mesas, poltronas e cadeiras, e alguns poucos objetos mais complexos, como um triciclo. As possibilidades de posicionamento livre são algo que pode assustar em certos momentos quando temos vários itens passíveis de interação para se compor um caminho seguro, e esta é uma das melhores qualidades da jogabilidade do game. Em certos casos, o jogo limita e bloqueia algumas direções, mas no geral, é fundamental que se tenha algumas boas noções de perspectiva para se criar possibilidades plausíveis, sobretudo da metade da campanha em diante, quando a dificuldade escala a pontos que podem se mostrar bem desafiadores.
Alguns itens mais complexos podem ainda girar no próprio eixo, criando sombras bastante diferentes, o que significa que não basta saber a posição em relação à luz, mas também o ângulo de incidência da mesma. Ainda que seja uma ideia bastante simples, o resultado é surpreendentemente sofisticado e exatamente por isso, faz falta ter outras coisas a se utilizar, mesmo que sejam só formas diferentes para o mesmo tipo de objeto. Por exemplo, um caixote cuja sombra desmonta ao primeiro toque poderia muito bem ser uma estrutura construída com blocos de montar. Não causaria qualquer efeito prático na física do jogo, mas traria novas dimensões para a ambientação. Diferentes texturas – como brinquedos elásticos de borracha, ou fofos como os de pelúcia – também ofereceriam uma diversidade muito maior com a qual o jogador precisaria lidar na solução desses quebra-cabeças.
Essa pouca variedade não chega a ser um problema no que se refere aos obstáculos e no design geral de cada uma das cinquenta fases disponíveis. Espere por plataformas espinhosas, barreiras perigosas, engrenagens dentadas e outras surpresas que estão lá para complicar bastante os objetivos do jogador em levar Bella até seu ente querido. A composição, aliás, é um grande acerto ao conseguir oferecer várias montagens para um espaço tão restrito, basicamente a junção de duas paredes comuns. O conjunto total é completo, propiciando ao jogo uma duração relativamente curta, mas muito adequada para a proposta de In My Shadow. Em média, considerando um ou outro nível onde ficamos mais tempos presos, a campanha total deve durar por volta das duas horas e meia a três horas. Falta, contudo, qualquer incentivo para o retorno, já que não há qualquer extra a ser perseguido depois de se chegar ao fim.
Montar o caminho posicionando os objetos de cena é, porém, só a primeira metade do trabalho. Uma vez que isso tenha sido resolvido, resta controlar a própria personagem para validar a solução encontrada, e nesse momento In My Shadow se comporta como um jogo de plataforma lateral convencional, evidenciando algumas de suas maiores limitações técnicas. A jogabilidade aqui é simplória, com a possibilidade de duas ações, caminhar e saltar, sendo que neste segundo caso, não há qualquer nível de gradação da força do pulo. Ainda que provavelmente esta seja uma escolha que sirva ao level design – porque afinal poder saltar com mais ou menps força, com mais ou menos altitude poderia adicionar algumas facilidades que quebrariam o desafio, ou que forçariam uma maior poluição de obstáculos, algo que definitivamente poderia estragar o senso do minimalismo do princípio das sombras.
Também é notável que há alguns engasgos no sistema de colisão, com um comportamento estranho quando em quinas ou outras saliências não tão planejadas assim. Essa simplificação poderia explicar a ausência de itens mais recortados ou de texturas diferentes citados anteriormente, mas ainda que seja esse o motivo, é de se lamentar que toda a sutileza das projeções de sombras seja incompatível com a rigidez de movimentação. Na soma dos fatores, parece que cada um desses quesitos presentes no jogo – o bom trabalho com iluminação, a narrativa e o gameplay de plataforma – estão desconexos um do outro, como uma compilação pouco ajustada. Falta refinamento, falta aquele toque a mais para aparar algumas arestas entre os diferentes departamentos do desenvolvimento.
Por sua vez, a construção visual do game tem seus méritos, mas também seus tropeços. Por um lado, a elaboração do ambiente, por mais comum que possa ser projetar um quarto de criança ou uma sala de estar, tem seus elementos instigantes, boas texturas e a sensação correta de profundidade. A composição com as diferentes projeções funciona de modo agradável, mesmo havendo uma sequência de fases na segunda área cujo canto parece iluminado demais para esconder armadilhas invisíveis, o que me pareceu uma decisão questionável quando o objetivo é propor que o jogador tome boas decisões que considerem o raciocínio, não a tentativa e erro, como principal ferramenta.
Já os personagens vivos são os que mais sofrem com uma modelagem demasiadamente simples, algo até compreensível dado o escopo de uma produção independente, sobretudo porque mostrar pessoas o tempo todo não é o objetivo, e traços mais limpos são até positivos quando se pensa em silhuetas reconhecíveis. Ainda assim, há um certo incômodo na movimentação e com expressões que por vezes parecem um desenho animado infantil, e outras um comercial de refrigerante. A palheta de cores é agradável e agride pouco, o que é ideal para um jogo que evita a sensação de urgência, mas também desperta poucas respostas mais provocativas por parte do jogador.
A sensação que tive ao terminar In My Shadow é um grande misto entre a certeza de uma boa ideia bem explorada e o inevitável pensamento de que poderia ter ido muito além de houvesse o interesse em expandir o princípio para outras direções. Isso significa que são três horas muito bem aproveitadas, com alguns momentos de incerteza, mas que dão conta de mostrar tudo o que o jogo tem a oferecer sem barrigas desnecessárias, mas que um pouco mais de ousadia e criatividade podem multiplicar essa experiência. A curva de aprendizagem acompanha bem a de dificuldade, e cada novo toque, como a projeção dupla, as plataformas móveis e afins, me senti preparado pelo próprio jogo a superar o desafio com a soma de esforço e experiência, um equilíbrio muito difícil de se alcançar.
Porém, esta é uma ação pontual, daquelas que não tem nenhum motivo de retorno que não o de mostrar para outra pessoa, porque depois de vencidos, os níveis não tem mais nenhum motivo de ser. Não há, por exemplo, colecionáveis optativos, não há soluções secretas, não há escala de pontuação, tempo de execução ou qualquer gradação que qualifique a sua solução. Você passa ou não passa, não há o que melhorar depois, o que é ótimo ao não diminuir uma conquista do jogador lhe conferindo, por exemplo, rankings baixos, mas que ao mesmo tempo, não premia quem faz com mais tranquilidade, menos tempo ou com o uso mais criativo das peças disponíveis.
Além disso tudo, ao longo da jogatina, não consegui me conectar pra valer em momento algum com a narrativa, por mais emotiva e introspectiva que ela se proponha a ser. Não há dúvidas que a abordagem é tocante, mas diálogos rasos e apresentados de forma tediosa em telas estáticas e texto em legendas, uma construção fragmentada e a total incompatibilidade entre o que está sendo contado e o que está sendo jogado me afastaram de um estado de imersão. Sempre valorizo a proposta de se criar algo contextual que seja muito mais do que só uma desculpa para aplicação de uma boa mecânica simples e direta, mas nem sempre é possível se relacionar e este foi o caso de In My Shadow para mim. Eu realmente gosto da proposta e gosto de muitas partes da execução, mas o conjunto parece incompleto. Não faltam luz e sombras, mas falta tempero, falta sedução do jogo para com o jogador, o que não o inviabiliza, mas definitivamente não o deixa chegar onde gostaria.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Alcon Interactive Group.
Veredito
Eu realmente gostaria de ter me envolvido mais com In My Shadow, mas o ótimo conceito principal não é o suficiente para sustentar uma história pouco envolvente e um trabalho artístico instável. Se por um lado os puzzles em si apresentam suas virtudes, a passagem em plataforma deixa a desejar, o que resulta em um conjunto desconexo e incompleto.
Veredict
I really wish I’d been more involved with In My Shadow, but the great core concept isn’t enough to sustain an uninvolved story and shaky artwork. While the puzzles themselves have their virtues, the platforming leaves something to be desired, resulting in a disconnected and incomplete set.