Desde que o mundo é mundo – certo, talvez não faça tanto tempo assim, mas fica o efeito dramático do clichê – há duas possibilidades quando chega ao mercado algum jogo licenciado de outra mídia: em alguns casos, é um produto genérico e sem qualquer identidade, uma roupagem em um modelo qualquer feito sem tanto investimento criativo, técnico e financeiro, muito mais próximo de uma peça publicitária ou uma derivação que busca o lucro fácil ao se utilizar de uma marca conhecida. A segunda possibilidade é a tem respeito pela propriedade intelectual, com seus fãs e com o seu legado, e se apropria da linguagem dos videogames para oferecer experiências realmente recompensadoras, sobretudo para quem já está disposto a olhar para aquilo com afeto.
Certamente, você deve conhecer uma infinidade de exemplos em ambas essas vertentes, e como o mundo não é feito só de “uns” e de “zeros”, há uma série de variáveis entre um extremo e outro. Felizmente, Hot Wheels Unleashed é um belíssimo exemplo de como não reinventar as quatro rodas mas, ao mesmo tempo, oferecer um produto de altíssima qualidade e com muito potencial de engajamento que consegue unir públicos distintos, desde aqueles colecionistas inveterados até os entusiastas por jogos de corrida mais descompromissados com o realismo; desde os jogadores mais veteranos que lidam bem com aspectos técnicos até a molecada que acha divertido apostar corridas com um carrinho em formato de dinossauro. Pessoalmente, acho que sou um pouquinho de cada um desses.
Em termos de escopo conceitual, não há muito o que se complicar aqui. Hot Wheels Unleashed é a versão digital dos mais famosos autoramas da marca, e busca emular corridas com os mais diferentes veículos em circuitos diminutos que, da perspectiva dos carrinhos, se mostram intensos e megalomaníacos. Sem qualquer tentativa de personificação de brinquedos, como bem faz a série de jogos Lego, aqui estamos no controle de uma coleção de veículos de brinquedo e em diferentes modos, a missão é basicamente vencer as corridas do jeito que for necessário, superando adversários, traçados desafiadores e alguns obstáculos curiosos.
O modo principal, sobretudo para quem joga sozinho, é a campanha que deve durar, dependendo das pretensões e das habilidades do jogador, algo em torno de 15 a 20 horas. Nada complicado aqui também: vença (ou ao menos atinja o requisito mínimo) uma prova e desbloqueie a próxima, e assim sucessivamente. Em um modelo semi-linear, onde o mapa de fases tem algumas bifurcações que no final não altera o todo, a não ser a ordem em que podemos encarar os desafios, temos dois tipos básicos de missões: um deles é a tomada de tempo, onde corremos sozinhos com a meta de atingir um tempo de volta determinado – um mínimo e um ideal; e há as tradicionais corridas com mais onze adversários, onde quem pode mais, chora menos.
A primeira falta sentida aqui é que essa simplicidade de tipos possíveis de disputa nos deixa com a sensação de que poderia haver algo mais, como modos de eliminação, disputas com mais ou menos inimigos, metas distintas de vencer as corridas ou fazer boas voltas. Não porque os modos presentes sejam insuficientes ou se tornem ruins ao longo do tempo da campanha, mas exatamente porque eles funcionam muito bem e que variações acrescentariam diversidade a um modelo já bem resolvido. Não é, portanto, um defeito propriamente dito, mas algo que se torna desejável para expandir a experiência e até mesmo aproveitar circuitos de formas diferentes, estes que não são tantos assim.
A bem da verdade, há também as batalhas contra chefes, que adicionam algumas variáveis especiais e tornam certas corridas algo ainda mais caótico, e que lembram bastante elementos muito característicos dos sets do brinquedo, ainda que aqui obviamente com mais liberdade para o uso de efeitos fantásticos. Há, por exemplo, aranhas que nos capturam em armadilhas de teia, pequenos tufões, barreiras diversas e uma série de elementos que podem mudar o andamento de uma disputa apertada. Alguns desses momentos se colocam de forma aleatória em um primeiro olhar, como uma cobra que fecha a boca quando estamos passando sem muito recuo. Esses eventos lembram muito características especiais de jogos de kart, por exemplo.
Além dessas corridas excepcionais – são cinco ao todo durante a campanha – há também alguns pontos secretos, que demandam pré-requisitos para liberarem caminhos. É possível, por exemplo, que se tenha que disputar uma certa corrida com um veículo específico, e outros mistérios que precisam de um pouco mais de atenção e que nos fazem sair da zona de conforto. Não é raro, claro, termos um ou dois carros preferidos – é possível até marcar quais seriam esses favoritos em nossa coleção – mas quando o jogo exige que tenhamos que vencer um desafio avançado usando um carro-hamburguer, por exemplo, que tem atributos diferentes dos veículos mais rápidos, há uma variável interessante, principalmente para quem escolhe jogar nas dificuldades mais elevadas.
Aliás, a questão da exigência de habilidade é também um mérito de Hot Wheels Unleashed, e há quatro possibilidades inicialmente, que vai do fácil ao extremo, e que estão ligadas diretamente à agressividade da inteligência artificial, o que significa que tomadas de tempo vão continuar exigentes de qualquer forma. Mais especificamente da metade para o final da campanha há certos desafios intensos, algo que pode ser destoante para crianças menores ou jogadores sem muita experiência com jogos de corrida. Nesse aspecto, a vantagem é que há espaço para voltas e mais voltas até que se atinja os objetivos, como em modos time attack.
Outros modos de jogo também seguem essa mesma tendência. Corridas rápidas, a partir de circuitos já desbloqueados, podem ser disputadas em modo solo ou em tela dividida no multiplayer local. Corridas on-line juntam pessoas de todos os níveis em pistas nem sempre já conhecidas de um ou de outro, mas na maioria das vezes, são as que trazem as maiores surpresas e elementos aleatórios que acabam oferecendo imprevisibilidade. Vencer corridas improváveis é uma constante, tanto quanto perder disputas dadas como ganhas. Mesmo nesse período de acesso anterior ao lançamento, o serviço de matchmaking funcionou de forma muito competente, nos colocando em salas rapidamente, mesmo que em alguns casos tenhamos que esperar uma corrida em andamento terminar.
Por sua vez, a jogabilidade de Hot Wheels Unleashed é absoluta e escancaradamente arcade, com controles simplificados e sem melindres quaisquer, de forma coerente com a proposta de ser, pois, um grande brinquedo interativo. Coincidentemente, venho de uma experiência oposta em WRC 10 (análise publicada na semana passada), então a transição não poderia ser mais drástica. Comparativamente, o feeling dos controles, até pelo recurso do bust, está mais próximo de Team Sonic Racing do que de Need For Speed, por exemplo. Não demora para aprendermos, inclusive, que fazer curvas naquele estilo drift ajuda a carregar a barra de impulso.
Com um modelo de física e peso um pouco menos compromissado com o realismo, há que se adaptar também a passagens de salto, desníveis e outras maluquices. O carro no ar significa caos em potencial, e basta estar com o veículo de lado para uma volta perfeita se tornar uma perfeita porcaria. Ainda assim, o game não tem qualquer tipo de burocracia quanto a correção e ajustes. Cair fora da pista, ficar preso em um canto ou outro tipo de desvio irremediável conta com o botão para recolocação do carro na pista, sem qualquer contratempo maior. O foco, ao que parece, não está na punição, mesmo que corridas mais apertadas possam ser decididas nesse tipo de detalhe. É inevitável que vez ou outra tenhamos que reiniciar uma corrida, mas é um alento saber que mesmo quando um erro é cometido, há espaço para correção, para a ousadia, e para recuperações heróicas.
Tão ajustado quanto a jogabilidade, o caráter artístico de Hot Wheels Unleashed é um verdadeiro abraço caloroso em cada fã. Ao trazer dezenas de carrinhos, dos mais conhecidos aos mais raros, que fazem parte de uma das coleções mais diversas da história, cada nova caixa aberta vem com uma certa dose de expectativa tal qual quando abrimos um novo envelope de figurinhas. Porém, é aí que recai algo que provavelmente vai desagradar algumas pessoas: a obtenção da coleção é, em grande parte, baseada em itens aleatórios. Ainda que até o momento não tenha qualquer menção a loot boxes naquela forma mais padrão, já que não é possível comprar pontos dentro do jogo com dinheiro real, não deixa de ser frustrante ralar para vencer provas e quando contemplado, abrir um pacote e sair um carro repetido, ou algum tão sem graça que vai ficar de escanteio até termos a coragem de desmontá-lo em troca de peças.
É possível ainda comprar itens conhecidos, em um sistema de mercado que se atualiza de tempos em tempos. Nesse caso, há 4 ou 5 possibilidades com preço fixado que nos deixa saber o que estamos comprando. Em certas corridas, também há um item determinado que será oferecido pela vitória, sendo normalmente um carro que será exigido em um desafio futuro. No mais, todo o resto das aquisições se dá pelas caixas-supresa. Particularmente, não me senti incomodado com o modelo nas primeiras horas, já que cada nova conquista era uma boa surpresa, mas chega um momento onde isso cansa, principalmente quando começamos a cobiçar algum veículo que vemos nas pistas, nas mãos dos adversários, e que nunca entram na lista sazonal. Torcer pela aleatoriedade normalmente é mais frustrante que satisfatório.
Falando na economia do jogo, há dois tipos básicos de elementos a serem utilizados: moedas, que são usadas para comprar veículos e outros itens cosméticos para o nosso porão – do qual falarei mais tarde – e engrenagens, que funcionam para dar um upgrade em veículos que já temos, o que melhora alguns atributos e o eleva de status. Ambos são conquistados, claro, correndo e vencendo disputas, ou, no caso de moedas, vendendo carros repetidos ou indesejados, e no das engrenagens, desmontando-os. Já há uma temporada, via DLC, disponível (ainda que inacessível uma vez que o jogo não foi lançado oficialmente), e muito provavelmente haverá uma tonelada delas, já que não faltam itens a serem adicionados no catálogo Hot Wheels.
Destaca-se o cuidado com cada modelo, com detalhes de textura, às edições especiais, à emulação de embalagens, tudo é muito criterioso e respeitoso ao material original. O mesmo também acontece com cenários – que sempre garantem a sensação da dimensionalidade quando nos coloca em uma sala, uma garagem ou qualquer espaço corriqueiro; e circuitos, montados de forma modular tal qual as mais requintadas séries limitadas do brinquedo. Tecnicamente temos um dos jogos de corrida mais coloridos, saturados e vibrantes dos últimos anos, como já é de se esperar. No Playstation 5, cada detalhe salta aos olhos e ganha valor rodando liso e fluido a 4K em 60 frames por segundo sem engasgos, mesmo em momentos de maior velocidade ou de muitos elementos na tela.
Os efeitos de iluminação natural não são nem um pouco discretos, enquanto o sistema de colisão ainda dá algumas tropeçadas aqui e acolá, tornando certas disputas na pista ainda mais imprevisíveis. Por outro lado, a trilha sonora é um pouco mais discreta, com músicas não tão memoráveis assim e efeitos sonoros um pouco cansativos, até por buscarem transmitir ruídos de um autorama. Aqui, é tudo tão simplificado quanto se espera, sem qualquer sofisticação. Não há efeitos superlativos nas colisões, nem em áudio, nem no visual. Não espere peças caindo, portas amassando ou pneus se soltando. Também não há qualquer sinal de efeitos da corrida no mundo real. A cenografia não sente qualquer impacto da presença desses carrinhos, não há marcas de derrapagem na pista, nada disso.
Por outro lado, esses efeitos são sentidos de forma bastante satisfatória no DualSense, com o peso do acelerador impactando no gatilho e a vibração da corrida no feedback háptico. Sem a presença de terrenos diferentes ou efeitos climáticos, não há grande variação aqui também, mas é notório que há uma preocupação em explorar essa função do PS5 ao máximo. Soma-se a isso o carregamento bastante rápido das corridas off-line e um belo desempenho gráfico, e temos um produto esteticamente muito bem acabado, cheio de sensorialidades que transmitem a leveza, a diversão e, ao mesmo tempo, a adrenalina de corridas insanas e velozes.
Fora das pistas, há ainda muitos elementos de customização. Podemos modificar o nosso porão, com direito a texturas e pinturas de paredes e objetos, decoração especial e outras perfumarias do tipo, algo que se reflete no cenário que serve de fundo para algumas corridas. Há também como modificar o visual dos nossos veículos, com cores texturas e adesivos, bem como compartilhar nossas criações com a comunidade, e vice-versa. Mas o grande brilho nesse quesito da criatividade está, claro, na possibilidade de construir pistas totalmente novas. Confesso que mesmo desbloqueando alguns recursos novos, não há tanta diversidade de peças assim, e o desenho demanda paciência, mas para os projetistas de plantão, há horas e mais horas imperceptíveis só para criar e também compartilhar aquela pista perfeita.
Hot Wheels Unleashed é, sem sombra de dúvidas, um jogo licenciado muito acima da média e, voltando à dualidade da qual falei no começo desse texto, respeita a franquia de modo que poucos fazem. Ao entender que está adaptando um brinquedo, e não simplesmente criando um jogo de corrida que empresta a marca para se promover, tudo funciona como deveria, considerando colecionismo, descompromisso e diversão como metas prioritárias. Ao abdicar de qualquer pretensão narrativa ou de estabelecimento de um lore forçado, deixa espaço para focar naquilo que realmente importa para o público-alvo e atende com bastante equilíbrio aqueles que já conhecem a franquia, sem deixar de lado possíveis (e desejáveis) novos adeptos. Como um produto por si, é bastante completo, e como parte de uma estrutura muito maior, é uma bela e respeitosa homenagem, enquanto que como um jogo de corrida, é uma opção bem-vinda para todos aqueles que buscam disputas simples, aventurescas e sem o detalhismo realista de outras possibilidades no mercado.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Milestone.
Veredito
Hot Wheels Unleashed traz tudo aquilo que de melhor se poderia esperar: uma versão digital de uma das franquias de autorama mais lendárias de todos os tempos, com uma jogabilidade simples, mas muito agradável e responsiva, com bom nível de desafio, e uma elaboração audiovisual caprichada para aquilo que se propõe.
Veredict
Hot Wheels Unleashed brings everything you could hope for: a digital version of one of the most legendary slot-car franchises of all time, with simple but very pleasant and responsive gameplay, a good level of challenge, and an audio-visual elaboration that is good for what it proposes.