Um simulador de amizades disfarçado de visual novel ou vice-versa, tanto faz: Hiveswap Friendsim se apropria de um conceito bastante simples para apresentar situações curiosas e, na maioria das vezes, únicas, buscando na interação pontual do jogador um meio de imersão e envolvimento emocional, sem deixar de lado um humor ácido um tanto quanto peculiar que estabelece uma linha tênue entre a paixão absoluta pela proposta do game ou uma profunda aversão pelo que ele pode entregar.
Compreendido como uma derivação de uma web comic lançada em 2009, chamada de Homestuck, a linha Hiveswap tinha como proposta inicial a experiência point-and-click tradicional noventista, envolvendo a solução de uma série de puzzles em meio a uma rebelião que se desenvolve em um planeta hostil. Com uma proposta que leva aspectos e personalidades para um mundo alienígena, a ideia é problematizar de forma leve e bem humorada aspectos sociais e de relacionamento com os quais temos que lidar frequentemente aqui mesmo, na nossa vida real. A boa notícia para novatos nesse universo, porém, é que nada disso é pré-requisito para aproveitar o novo game, mesmo que a princípio sintamos que realmente este é um lugar que parece esperar que já o conheçamos.
Como uma derivação da derivação, Friendsim (que literalmente é uma abreviação de Friendship Simulator), deixa de lado o aspecto investigativo e exploratório e nos coloca no centro de uma trama onde nós, no papel de um narrador sem rosto, nos vemos obrigados a fazer uma aterrissagem não programada em um lugar dos mais estranhos chamado Alternia, e todas as nossas energias estão focadas em coisas básicas, como atendimento médico, comida e, principalmente (talvez desesperadamente) amizade. A ponto deste último aspecto estar sobreposto a todos os demais. Afinal, um braço quebrado e um quadro de desnutrição podem esperar, enquanto a amizade é totalmente inegociável.
A partir de um menu base, precisamos escolher um dentre dezoito (e mais um) capítulos para experimentar. Cada capítulo tem dois caminhos principais também selecionáveis logo a princípio, cada qual representado por um personagem diferente, que descobrimos serem todos trolls, com quem podemos ou não desenvolver um relacionamento duradouro de amizade. Diferente de simuladores de romance, porém, aqui a meta não é estabelecer o flerte como regra de conquista, mas sim formas de se aproximar, criar empatia e, enfim, convencer nossos interlocutores que precisamos nos tornar amigos. O resultado de uma dentre as mais de 30 sub-tramas depende da nossa capacidade, e basicamente tem como possibilidades de consequências um resultado binário: amizade ou não.
Se a proposta parece um tanto rasa sobretudo para segurar tantas historietas independentes, é no texto onde o game se destaca. Enquanto os diálogos das pessoas que encontramos são explicitados na íntegra, o nosso lado é uma descrição do que dizemos, pensamos e do que mais está acontecendo em cena. A perspectiva da narrativa está, portanto, calcada no narrador não confiável em primeira pessoa, se é que isso é possível. Porque sabemos exatamente o que dizem pra nós, mas o que dizemos de volta, ou ao menos a forma como é dito, não necessariamente. Isso torna a relação muito mais interessante porque nos pontos onde precisamos tomar decisões, o subsídio para isso pode não ser tão nítido, e a escolha, não tão óbvia.
Importante destacar que, para os não íntimos de jogos do tipo, algumas visual novels são bastante limitadas no que se refere à interferência do jogador. Aqui, não é muito diferente, e em várias cenas, o poder de escolha é limitado a duas ou três bifurcações. Muitas das ações do personagem que são somente relatadas seriam passíveis de interação, mas qualquer perguntinha boba a mais abriria uma ramificação totalmente nova que, dado o volume de conteúdo, acabaria sendo custoso para o desenvolvimento. Por outro lado, se o jogador esperar por uma narrativa interativa mais participativa, como visto nas aventuras da Telltale ou Quantic Dream, a decepção será enorme. Sabendo onde está se metendo, os interessados podem se divertir. E muito.
Se pelo aspecto das mecânicas, visual novels deste tipo podem forçar as definições do que pode ser chamado de jogo e do que passa a ser outra coisa, no aspecto artístico a coisa é ainda mais difícil de se descrever. Por um lado, temos belíssimas ilustrações que trazem personalidade, com cada personagem, por mais próximos que possam parecer uns dos outros, trazendo suas próprias idiossincrasias, detalhes e expressões que realmente os tornam únicos. Não há, porém, animações mais complexas, salvo um ou outro efeito estilizado que serve muito mais à trama do que qualquer outra coisa. Há quem não goste deste estilo visual (que pode ser notado nas imagens que ilustram esta análise), mas eu realmente aprecio um tom mais destoante, quase que relaxado, que foge dos traços limpos e perfeitinhos de obras mais pasteurizadas. Tem um elemento teen, concordo, mas funciona.
Por outro lado, a ambientação me parece um pouco menos inspirada. Com cenários estáticos e, por vezes, destoantes daquilo que está sendo narrado, parecem muito mais planos de fundo temáticos e genéricos, acrescentando pouco ao conjunto. Há destaques aqui e ali que remetem aos eventos dos quais estamos tratando, mas via de regra eu simplesmente sentia que o primeiro plano e o fundo não funcionavam para me transportar para aquela situação, por mais que compreenda as bases do gênero. O mesmo pode ser dito sobre o caráter sonoro, com alguns temas bem interessantes no que se refere a trilha musical, mas sem qualquer trabalho complementar de sonoplastia que poderia acrescentar muito a cada uma das situações em ambientes distintos. Se os diálogos intrigantes e o humor pouco ortodoxo nos mantém atentos, as bases audiovisuais poderiam contribuir um pouco mais para o engajamento do público.
Baseado totalmente no texto escrito, o jogo não conta com diálogos falados ou qualquer trabalho de vozes, e aí pode emergir uma grande barreira, que é a do idioma. Experiências do tipo dependem, mais do que outras, da profunda compreensão de tudo o que está sendo dito e descrito pelos personagens, e se isso não funcionar, todo o resto entra em ruínas. Particularmente, o inglês não chega a ser um problema, mas ainda assim precisei recorrer a boa e velha contextualização para entender alguns nuances e intencionalidades de certas linhas de texto. Então, para quem não está em dia com o gringuês, esta é uma recomendação bem difícil de se fazer.
Se inicialmente o jogo parece ser uma coleção compartimentalizada de situações episódicas, isso não é por acaso. Hiveswap Friendsim realmente foi feito para que cada capítulo, em sua época, fosse vendido separadamente e, portanto, tivessem o mínimo possível de interdependência entre eles. Esta fragmentação fica evidente quando podemos escolher por onde começar e por onde continuar, com a fusão do pacote reduzido a uma listinha de quem você já conseguiu conquistar como amigo. Não espere, assim, uma campanha central ou arcos maiores, porque o game se faz pelo fragmento, não pelo conjunto. Por outro lado, é uma ótima opção para quem procura coisas pontuais que podem ser intercaladas entre um ou outro projeto mais longo. Afinal, fazer amigos não é uma ação de tiro curto e funciona muito mais como uma jornada ao longo da vida.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Fellow Traveller.
Veredito
Sem grandes novidades ou quaisquer inovações, Hiveswap Friendsim tem no texto bem escrito e nas situações inesperadas sua maior força. Visualmente instável e mecanicamente simplório, é uma recomendação para fãs do gênero que não esperam se envolver com uma grande história, mas sim com desventuras de um aficcionado por fazer amizades.
Hiveswap Friendsim
Fabricante: What Pumpkin Games, Inc.
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: Visual Novel
Distribuidora: Fellow Traveller
Lançamento: 07/12/2023
Dublado: Não
Legendado: Não
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Without any great novelties or innovations, Hiveswap Friendsim’s greatest strength lies in its well-written text and unexpected situations. Visually unstable and mechanically simple, it’s a recommendation for fans of the genre who don’t expect to be involved with a great story, but rather with the misadventures of a fan of making friends.