Quando vi o trailer de Graveyard Keeper pela primeira vez, minha impressão inicial era de que se tratava basicamente de um “simulador de coveiro” no estilo old school. Curiosamente, essa premissa incomum (e um tanto quanto inusitada) foi o suficiente para me despertar um interesse pelo game e cá estou eu falando sobre um dos jogos mais surpreendentes do ano até aqui. Depois de algumas dezenas de horas compreendendo o quão mais complexo – e talvez por isso, mais instigante e mais rico – é o universo da produção da Lazy Bear Games (que conta com a distribuição da tinyBuild) posso dizer que essa primeira impressão, ainda que não seja enganosa, pode ser só um vislumbre do que se pode encontrar no game.
Então, sim, Graveyard Keeper, como o título já adianta, é um jogo sobre um coveiro. Mas entendamos melhor: nosso herói improvável é um cara comum dos dias atuais que ao encontrar a morte abrupta acaba despertando em uma vila medieval e, motivado a encontrar uma caveira falante (bem parecido com o Cranicola, do universo das HQs de Maurício de Sousa), descobre que agora ostenta o importante cargo de gerência do cemitério local e que para voltar para casa, deverá se dedicar ao ofício, desvendar alguns mistérios e enfim escapar daquele lugar. Não demora para descobrirmos a quem pertencia esses restos mortais, assim como o fato de esta vila é bastante coisa, menos normal.
Configurado como um jogo de simulação, cultivo e crafiting com visão isométrica e estilo artístico pixel art, aprendemos as mecânicas básicas essenciais do game ao coletar, fazer uma autópsia improvisada e enterrar o primeiro cadáver no cemitério ao lado de nossa casa. Nesse meio tempo, recursos como madeira e pedra podem ser coletados e estocados antes mesmo de sabermos o que fazer com isso. Não demora muito até que tenhamos conversado com alguns NPCs que vão nos introduzindo a outros conceitos importantes do game, que envolvem comércio e missões secundárias que se misturam com as metas principais, além do desenvolvimento de seu estabelecimento. Nada de tão diferente de outros jogos do gênero.
A primeira grande especificidade – para além, claro, da sua profissão em si – está em um sistema de moralidade ética bem peculiar. Afinal, fazer uma autópsia no porão sombrio de uma propriedade particular sendo guiado pela fração de um esqueleto, e a escassez de alimentos e de condições sanitárias naquele momento histórico parece bastante convidativo para que possamos, quem sabe, extrair um belo naco de carne de um morto fresco, quem sabe até alguns ingredientes a mais. Afinal, como diria seu companheiro, o dono original não irá mais precisar de nada disso, certo?
Esse é só um dos primeiros elementos que vão testar nossa capacidade de desprendimento ético dentro da narrativa de Graveyard Keeper. Mas fique tranquilo, porque toda essa bizarrice é apresentada em um contexto acidamente afiado, com um humor todo peculiar e com um texto surpreendentemente mais sofisticado (felizmente todo localizado para o português brasoleiro) do que pode parecer em um primeiro instante. O jogo consegue abordar temas como misticismo, religiosidade, fantasia fantástica, história medieval e tabus morais de um modo que poucas obras conseguem fazer, com sarcasmo e ironia e, mesmo assim, sem parecer ofensivo ou panfletário.
Se há muito o que se fazer, o jogo não alivia a vida do jogador e, portanto, não pega na mão quando chega o momento de detalhar passo a passo o que deve ser feito. Em muitos momentos, você pode até consultar a lista de personagens e consequentemente as tarefas que eles solicitaram, o que não significa que isso lhe dará os subsídios para cumpri-la. Se um comerciante te pede um certo número de cenouras e beterrabas, ou você decora o que precisa levar, ou corre o risco de chegar lá e descobrir que não foi suficiente. Se você precisa de quatro sementes para plantar um canteiro de trigo e não se lembra disso quando for comprar, possivelmente irá gastar mais do que precisa ou descobrir, depois de um dia de viagem de ida e volta, que comprou uma a menos do que o mínimo, e o que tem em mãos é inútil até que se retorne e complete a “receita”. A dica é prestar bastante atenção aos detalhes de cada missão para não correr o risco de faltar informação quando você a está executando.
Tudo isso oferece pano de fundo para um sistema que envolve o desenvolvimento da nossa propriedade a partir da coleta e/ou construção de recursos, cultivo de comida (no melhor estilo Stardew Valley) e exploração, com alguns elementos de estratégia e RPG. Inevitavelmente, nos deparados com aquele formato já bastante sedimentado onde seu objetivo está fragmentado em uma série de passos que dependem de acesso e aprendizagem. Por exemplo, sua primeira meta a médio-longo prazo é conseguir uma licença real para poder comercializar carne. Para tanto, precisa melhorar a estrutura do cemitério para agradar ao clero, que lhe levará ao inquisidor, que lhe dará outras tarefas antes de confiar em você e essas tarefas exigem que você faça pesquisas em locais ainda inacessíveis… missões multicamada são uma constante aqui.
Exatamente por isso, Graveyard Keeper pode não ser convidativo para todo tipo de jogador, sobretudo os mais imediatistas. Paciência é elemento básico do gameplay, não só pela cadência no desenvolvimento de algumas missões, sobretudo as principais, mas pela própria estrutura da passagem de tempo do jogo. São dois os aspectos principais que precisam ser ponderados aqui: o primeiro corresponde ao sistema semanal, já que vários eventos tem dia certo para acontecer. Um certo NPC só aparece no vilarejo às segundas-feiras e as missas só podem ser feitas aos domingos, por exemplo. Como o tempo não pode ser pausado e o dia passa bem rápido, um cálculo errado do tempo para chegar do ponto A ao ponto B pode significar perder uma semana inteira até ter um evento disponível novamente.
O segundo aspecto é a energia, a estamina do nosso protagonista, para a realização da maioria das atividades braçais. É uma barra extremamente curta, que não se recupera com o tempo e que, portanto, depende de uma boa sessão de sono. Isso significa que em vários momentos é necessário dormir entre uma atividade e outra, e as vezes até no meio de ações um pouquinho mais complexas. Não é raro, por exemplo, gastar toda a força fazendo uma autópsia e ter que ir dormir para terminar o enterro depois. A única atividade mais desgastante que não influencia nessa barra de energia é a caminhada, felizmente, mas confesso que é das características menos práticas do game. Há também a barra de vida que em alguns momentos precisa ser bem cuidada, mas o combate no jogo é extremamente raro, principalmente na primeira metade da jornada, então não chega a ser o problema que a de estamina é.
É possível recuperar um pouco dessa energia com consumíveis, sobretudo alimentos crus ou cozidos, mas esse efeito é pouco prático e oferece uma péssima relação de custo-benefício sendo indicada somente para momentos excepcionais. Para atividades realizadas “no quintal”, a característica continua sendo irritante, mas é gerenciável. Forjar pregos, cortar madeira, criar lápides, tudo é administrável, mesmo precisando de alguns dias nesse ciclo de trabalha um pouquinho, descansa um pouquinho, e assim por diante. O que pode ser mais tedioso é ter que fazer isso quando a ação é do outro lado do mapa.
Ainda que não seja um mundo especialmente enorme, essa viagem pode ser um outro elemento cansativo. Como a única forma de locomoção é a caminhada (sem meios de transporte ou mesmo qualquer função de corrida) e ir e voltar o tempo todo é uma constante, atravessar as mesmas estradas durante uma campanha relativamente longa não é das coisas mais empolgantes, inclusive pelo elemento do tempo citado anteriormente. Sou daqueles que gosta de viajar em jogos assim, e fazer tudo o que puder no caminho. Mas em Graveyard Keeper isso ficou quase impossível, já que ou estamos sempre atrasados para chegar até o ponto final na hora certa, ou se começarmos a fazer outras coisas corremos o risco de não ter energia necessária quando finalmente chegarmos ao destino. Desbloquear outros pontos de descanso ameniza, mas não elimina esse aspecto. Há alguns atalhos que aparecem depois, mas estes nunca chegam a ser um alívio de verdade.
Por fim, o sistema em camadas também não é das coisas mais dinâmicas. Muitas vezes alcançamos lugares importantes e necessários depois de muito trabalho, e quando estamos lá descobrimos que há um certo ingrediente necessário que ainda nem apareceu na história, ou ainda que não temos o dinheiro suficiente para desbloquear um elemento que acaba travando tudo. Há ainda um sistema de habilidades tecnológicas que podem ser comprados com o acúmulo de recursos que advém da exploração ou do cumprimento de missões, e alguns deles são pré-requisito para certos objetivos, mas inclusive elas tem componentes que nem sempre estão disponíveis de imediato. Resta desistir e voltar depois de mais 10 horas de pesquisa, busca e melhoria do personagem.
Ou seja, há aqui um efeito de causalidade que enrosca em vários momentos os melhores pontos sobre escolha do que e de como fazer primeiro. No começo, a quantidade de objetivos assusta pela diversidade, mas não demora para aprendermos que há uma ordem necessária a ser seguida por conta da estrutura muito rígida de pré-requisitos. E isso pode ser um tanto quanto frustrante, não necessariamente pela complexidade ou pela dificuldade das tarefas – que aliás não são acentuadas em momento algum – mas pela trabalheira braçal e muitas vezes repetitiva que exigem. Prepare-se para muitas e muitas horas cortando madeira e extraindo órgãos de mortos antes de fazer alguma coisa nova.
Nenhum desses aspectos, saliento, é necessariamente algo negativo ou positivo a priori. Quem está acostumado com games de gerenciamento e simulação já reconhece mecânicas e tempos e não será especialmente surpreendido aqui. Essas particularidades mais pontuais podem irritar ou relaxar, podem atender ao que se espera ou afastarem o jogador, e tudo isso depende da expectativa. Da minha vivência, posso dizer que avaliei que muitos desses elementos me pareciam excessivamente desnecessários, o que não significou, em momento algum, que me senti convidado a abandonar o projeto. Pela quantidade de coisas a serem feitas, pelo imediatismo de muitas delas, mesmo que encadeadas em uma sequência mais amarrada, pelos ciclos que conseguem ser lentos considerando uma semana mas curtos considerando o dia, sempre estive desafiado aos famigerados “mais cinco minutinhos”.
Graveyard Keeper sabe de seus bons atributos e como explorá-los nessa retroalimentação. A narrativa consegue seduzir, e quando estamos caindo em um possível ostracismo, aparece um burro falante bem petulante ou um vizinho para te avisar do ataque de uma certa criatura noturna que bebe sangue, enquanto as missões e novas áreas engrandecem o universo do jogo e expandem nossas responsabilidades, que logo deixam de ser só as de cuidar dos mortos. Todavia, certamente uma das características mais interessantes da produção está voltada ao charme da composição artística da obra. Se inicialmente olhamos e pensamos “ok, mais um jogo indie com estética pixel art nostálgica saudosista” logo começamos a nos apegar aos pequenos detalhes que mostram que aquilo que parece uma escolha mais confortável e apelativa tem muito mais a oferecer.
Um dos elementos que mais me impressionou durante toda a caminhada é a dinâmica climática bastante diversa. O mesmo ambiente sob o sol escaldante de um domingo de verão e, no dia seguinte, sob uma névoa densa e assustadora mostra que a preocupação foi muito além de efeitos e filtros de cor ou de textura, algo que também se reflete na ambientação sonora. Dia e noite se comportam de formas diferentes, NPCs, se não são lá tão complexos como em jogos de maior orçamento, se mostram muito mais do totens de informação como podemos ver em tantos outros jogos do gênero, e eventos especiais mostram que esse mundo é muito mais do que um plano de fundo temático.
As animações são uma qualidade a parte, que fazem da estética um trunfo e não um limitador. Esse é daqueles jogos que dá vontade de estar o mais perto da tela possível para ver a sutileza de um transeunte insolente dando de ombros, ou de uma camponesa virando os olhos com desdém. Aquele humor sofisticado do qual falei anteriormente não está só no texto, mas em vários dos pequenos meandros do game, transparecendo um cuidado acima da média com essa construção da imersão e do engajamento. Então sim, há aquelas texturas que parecem ter saído de padrões de um RPG Maker, há espaços meio vazios que parecem só preencher o mapa, mas há um investimento bem cativante nos pontos de interesse.
A trilha musical, por sua vez, é muito agradável, com algumas canções que acabam ficando na cabeça e que conseguem transportar aquele estilo instrumental medieval para algo que flerta com estilo sintetizado dos 16 bits, mas que se apossa de um batida mais contemporânea com flautas e instrumentos de percussão modernos, e que não destoam do estilo visual e dos efeitos mais estilizados como ruídos e aqueles grunhidos no lugar de diálogos falados. Há um destaque especial para ambiência em lugares fechados ou campos mais amplos e para uma mixagem de som caprichada.
Quando consideramos os principais pilares de Graveyard Keeper – narrativa, jogabilidade e estética – há muito mais acertos do que equívocos, inclusive quando consideramos o gênero onde o jogo se enquadra, trazendo um certo frescor ao modelo de crafting e cultivo já tão popular hoje como jamais foi. Há aqui uma boa história sendo contada, ainda que em doses homeopáticas e fragmentadas em alguns momentos, personagens secundários surpreendentemente cativantes e cheios de personalidade, um humor satírico refinado e que está o tempo todo flertando com os limites éticos, e um estilo artístico que consegue se sustentar muito mais pelo cuidado com os detalhes do que pela originalidade do traço.
Ampliar o mundo a nossa volta é sempre um desafio que garante com que voltemos mesmo depois de longas sessões cortando madeira e coletando pedras, dungeons e missões secundárias agregam valor ao universo apresentado e a perspectiva de se descobrir um pouco mais sobre o mistério que nos trouxe até ali são suficientes para deixar muitos roteiros de grandes produções para trás. Há que se considerar um modelo de ciclos repetitivos e objetivos multicamada que podem saturar e até encobrir as qualidades do jogo, principalmente se você for daqueles jogadores sem tanto tempo para investir no formato, mas superado esse aspecto – ou se ele é um dos atrativos em jogos assim para você – há aqui uma grande pequena obra com muita alma que merece destaque.
Cuidar de um cemitério pode parecer algo tão trivial que jamais seria um tema de interesse em um game deste gênero, mas no final, Graveyard Keeper é muito mais do que isso. Uma narrativa cheia de acidez, um sistema bastante profundo de criação e evolução e um estilo artístico já seriam suficientes para chamar a atenção, e mesmo que algumas tarefas sejam demasiadamente trabalhosas e repetitivas, e algumas complicações pareçam forçar demais a resiliência do jogador, certamente há aqui um jogo que deve ganhar seu lugar de destaque no gênero. Se a minha impressão inicial não estava completamente errada – já que no final do dia há um cadáver a ser enterrado a uma sepultura a ser cuidada – há muito mais nuances aqui do que o objetivo principal de se tornar um bom coveiro para voltar para casa. A premissa é inesperada, mas nem se compara com o que vem depois para aqueles que topam a missão.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela tinyBuild Games.
Veredito
Graveyard Keeper é visualmente bem resolvido e traz uma das melhores trilhas sonoras do gênero. Sua história flerta com aspectos morais como poucos jogos ousam e seu sistema de missões e de progressão tem lá seus momentos pouco inspirados, mas é suficiente para nos envolver e nos convencer a seguir para a próxima cova.
Veredict
Graveyard Keeper is visually well resolved and brings one of the best soundtracks in the genre. Its story flirts with moral aspects like few games dare, and its mission and progression system has its uninspired moments, but it’s enough to get us involved and convince us to move on to the next grave.