O clima era suspeito. Diante nós, um descampado silencioso emanava a podridão como um convite para uma jornada sem retorno. Com a coragem (ou a incapacidade de tomar decisões mais seguras) adentramos a arena só para ouvir o urro de uma criatura magnífica pousando no centro daquele lugar como um governante soberano marcando seu território. Seus olhos ardentes nos ameaçava e, naquela fração de segundo, uma paz opressora antecipava uma batalha improvável pela nossa vida… e pelo futuro do mundo.
Dragon Age é, antes de mais nada, a materialização de uma fantasia medieval em seu estado puro, aquela que toda criança um dia se projeta em sonhos acordados, enfrentando demônios e vencendo dragões para salvar o dia. Para quem cresceu em mesas de Dungeons & Dragons ou na companhia exigente de Tolkien, há aqui um verdadeiro deleite de histórias maravilhosas em um mundo fantástico, cheio de perigos e magia. E assim mesmo, se aproveitando de todo um imaginário coletivo, a BioWare soube criar um mundo tão reconhecível e, ao mesmo tempo, tão cheio de personalidade.
Foram três games antes, uma trilogia capaz de arregimentar uma legião de seguidores que, ávidos por retornar ao mundo de Thedas, esperou pacientemente por 10 longos anos por esta nova aventura que sucede o sucesso de Dragon Age: Inquisition, game favorito da geração passada deste que vos fala. E dentre idas e vindas, mudança de título e incertezas acerca da capacidade da desenvolvedora em voltar aos seus tempos áureos depois dos lançamentos duvidosos do controverso Mass Effect Andromeda e do fracasso estratégico Anthem, eis que temos em mãos o novíssimo Dragon Age: The Veilguard, buscando renovar a marca para um mercado já bem distinto daquele que seu antecessor encontrou.
O tempo também passou na diegese da história. Anos se transcorreram desde que a Inquisição derrotou a ameaça liderada por Corypheus e descobriu que um perigo ainda mais inquietante crescia debaixo de suas asas. Solas, um dos membros mais atuantes da organização que liderávamos, se revelou uma divindade antiga com intenções ousadas e, digamos, pouco populares, em ações distorcidas para sua visão do que era reestabelecer a paz. A promessa de seu retorno antagonista não só era obvia como ficou explícita na referência ao Dreadwolf do título original deste quarto game (o Lobo Temido, na tradução oficial), algo que, no fim das contas, se revelou o ponto de partida para uma jornada na busca por frear males ancestrais e seus planos para um novo mundo corrompido.
É neste ponto em que encarnamos Rook, personagem customizável que, seguindo a cartilha de uma boa jornada de herói, terá que sair de um relativo anonimato para recrutar aliados, viajar pelas longínquas regiões nortenhas do mundo de Thedas, atrapalhar os planos malignos de forças que ele sequer compreende e, no meio de tudo isso, tentar sobreviver e salvar tudo o que for possível. O guerreiro sem rosto parte, ao lado de (poucos) velhos conhecidos e novas figuras, para uma missão improvável que colocará seus feitos na história e, quem sabe, ter suas proezas entoadas nas canções dos bardos por todos os cantos do mundo.
Evitando ao máximo os spoilers por motivos óbvios, não é difícil afirmar que há aqui uma trama intensa, que evita expandir o escopo do que já vimos antes em termos de escala, mesmo ainda lidando com o fim do mundo e a destruição daquilo que conhecemos, mas que também acaba tirando o peso de eventos tão importantes. Sai o Arauto de Andraste, uma posição quase messiânica, e temos uma figura bem menos pomposa e, talvez por isso mesmo, menos justificada enquanto centro de um movimento tão importante e, ao mesmo tempo, mais relacionável, sobretudo porque escolhemos também parte de sua origem.
O desenvolvimento da história ganha muito, sobretudo nos trechos dialogados de momentos chave, com uma direção de cena bem trabalhada, expressividade de personagens e dramaticidade cênica, mas por outro lado, há uma instabilidade na qualidade do texto, principalmente no primeiro ato de introdução. Há diálogos e narrações muito bem desenvolvidas, seja no escopo mais íntimo, seja na grandiosidade de acontecimentos enormes, mas várias passagens sofrem com o excesso de didatismo, com a repetição de informações, e com a extensão de certos dramas que se arrastam mais do que deveriam, mesmo com um trabalho de condução da ação mais focado pelos diversos espaços por onde a jornada se desvela.
Renegando os falsos encantos da obviedade dos mundos abertos contemporâneos, Dragon Age: The Veilguard nos leva e uma série de biomas e ambientes dotados de identidade não só em termos visuais, mas principalmente em sua lógica de funcionamento interno muito bem amarrada e diversa. As vielas improvisadas de Minrathous e seu povo nos remetem às periferias de um mundo desigual, enquanto a arquitetura de Treviso brilha ao luar azulado; já explorar o mundo ensolarado de Rivain para logo depois visitar os túmulos na Necrópole soturna nos dá uma dimensão completamente diferente de um sistema de exploração que se aproveita de conexões rápidas para nos guiar para onde a ação realmente está.
Isto significa que o design de mundo do jogo sabe muito bem como articular seus espaços cênicos para valorizar seus principais aspectos. As missões principais são, deste modo, bastante diretas do que deve ser feito, como e porquê, nos convencendo a transitar de um canto ao outro sem encher o trajeto de grandes vazios, o que não significa necessariamente que estamos diante um jogo tradicionalmente linear. Cada região é dotada de espaços de navegação bastante generosos, cheios de segredos, coletáveis e missões secundárias, em sua grande maioria criativas e contextualizadas. Algumas regiões, sobretudo as localizadas em grandes estruturas internas, são um tanto quanto cartesianas em corredores e passagens, enquanto outras abrem espaço para áreas abertas e mais livres.
Esta organização permite que o level design se concentre em uma distribuição bem articulada de elementos, como hordas de inimigos, baús comuns com moedas e matérias-primas, bem como outros especiais, com equipamentos de proteção e combate. E aqui há todo um cuidado para evitar o efeito de loot exagerado como visto em outros jogos do gênero, com toneladas de itens inúteis dropando de tudo quanto é lado. Em Veilguard, encontrar espadas ou peças de armadura é relativamente raro, mas cada nova aquisição tem melhores características para dar escolhas palpáveis para o jogador, e que ainda podem ser melhorados e refinados ao longo do tempo. Sequer são coisas comercializáveis, então não funciona naquela dinâmica de pegar tudo o que existir para vender para o primeiro ambulante que encontrar.
O sistema comercial, porém, é bastante rico e compõe uma das principais diferenças no modelo de preparação e melhoria tanto do personagem principal quanto de seus companheiros. Nas diferentes áreas do jogo, podemos encontrar alguns vendedores de produtos diversos, e muitos deles tem coisas dedicadas ao nosso companheiro originário daquele local. Treviso, por exemplo, tem itens que podemos equipar em nosso avatar, mas também muita coisa para Lucanis, que veio de lá. O mesmo vale para todos os demais componentes do nosso grupo, potencializando a identidade do local e de seus habitantes. Quanto mais atuamos nas tarefas específicas, melhor é a nossa relação com os comerciantes, nos possibilitando aumentar o nível desse relacionamento e nos dando acesso a aquisição de bugigangas mais qualificadas.
Contudo, mesmo com ótimas características, o maior pecado do game é não conseguir nos ajudar a criar laços com a população comum, já que os NPCs genéricos pouco reagem à nossa presença. Pouquíssimos deles tem linhas de diálogo, o que é compreensível dado o escopo da produção, mas mais do que isso, eles sequer consideram as nossas ações. Você pode sacar duas espadas e sair arrebentando as caixas no meio do mercado central que ninguém vai olhar para o que você está fazendo. Não é possível interagir com as pessoas, seja tocando o terror, seja interferindo no mundo, e basicamente temos um monte de indivíduos que não são muito diferentes de quaisquer outros objetos cênicos. Ter uma vida social, para Rook, só mesmo com seus companheiros.
Mesmo em relação aos nossos parceiros, não é possível sair por aí iniciando diálogos por conta própria, e exceto por frases soltas contextuais que são ditas quando passamos por eles, todas as conversas são somente as que estiverem roteirizadas para acontecer de acordo com o estágio da amizade ou da trama. Se em Inquisition você podia voltar até um deles, enquanto na base, para fazer as mesmas perguntas sobre suas histórias pregressas, aqui isso faz parte só (e somente só) do processo de construção do relacionamento, o que por um lado evita aqueles diálogos intermináveis de quebra de ritmo, mas por outro nos tira uma função importante de interpretação e escolha dentro do universo do jogo e da forma como decidimos abordar estas relações interpessoais.
Estas conversas, aliás, trazem muito da essência conhecida da Bioware, e o sistema de amizade e fidelidade se mostra bastante presente aqui. Veteranos nos jogos da desenvolvedora vão reconhecer facilmente os artifícios de construção dos laços entre os personagens, nos dando entre uma e outra missão principal algumas ações complementares que fortalecem a afeição de nossos companheiros para conosco. Pode ser, por exemplo, uma demanda particular que somos convidados a ajudar, ou mesmo ações mais simples, como acompanhar uma amiga em um jantar com a mãe, com quem ela tem uma dinâmica complicada. Cada colaboração gentil nos deixa mais próximos, aumenta a lealdade de nossos amigos e, consequentemente, garante seu progresso paralelo ao nosso próprio.
Não são só os laços fraternos que são maturados, obviamente. Rook pode se envolver amorosamente com vários membros da party, e aqui o jogo abre ainda mais possibilidades e combinações, ampliando o alcance da sexualidade da maioria dos personagens secundários. Há todo um cuidado no tratamento de temas delicados que valorizam a diversidade, abordando abertamente conceitos e preconceitos de um modo bem mais sofisticado do que estereótipos unidimensionais retratados no passado. Vê-se um esforço genuíno em trabalhar com a representatividade sem qualquer caráter panfletário ou omissão e, mesmo sendo um aspecto periférico dentro de uma aventura fantástica medieval, confere mais autenticidade e aprofundamento, resultando em uma empatia maior de nossa parte, e tornando cada escolha que os envolve ainda mais difícil.
A constituição de um mundo crível (e incrível) altamente explorável, mesmo que derrape nesta organicidade das populações comuns, é a base de fundo para uma narrativa muito bem engendrada que se estabelece para destacar a maior e mais polêmica diferença deste para os jogos anteriores, que é o sistema de combate. Sai de cena um modelo mais tradicional e estático, centrado nas estatísticas e nos embates estratégicos, para dar lugar a batalhas dinâmicas, típicas dos RPGs de ação mais recentes que se aproveitam da movimentação mais fluida baseada em ataques rápidos ou fortes, esquiva, uso de habilidades especiais previamente mapeadas e artifícios de ação e reação, como o inevitável parry.
Ainda assim, a mudança é algo muito menos brusco do que se poderia imaginar pela comparação entre trailers e memória afetiva, e ter revisitado os jogos anteriores recentemente foi substantivamente importante para compreender que o estado atual nada mais é do que uma progressão dos ajustes que já estavam sendo implementados desde o segundo jogo. Provavelmente eu teria sentido um baque maior se mantivesse a visão do meu guerreiro brutamontes e sua agilidade limitada de Inquisition, mas para uma análise justa, minhas andanças mais recentes foram no comando de um novo personagem também ladrão, me dando parâmetros de comparação mais claros.
Há sim uma simplificação no core das passagens de maior ação, com mais fluidez, mas menos controle do contexto macro. Não é possível, por exemplo, controlar os outros personagens que nos acompanham, muito menos dar ordens mais sofisticadas que estejam para além de comandos de ataque, suporte e combos, o que nos libera desta responsabilidade e os deixa completamente independentes, sem risco de caírem em combate, o que significa que aprender até onde contar com eles é importante para se dar bem sobretudo nos confrontos de grande porte. Ao mesmo tempo, este modelo revisado parece coerente com o que se exige dele.
Considerando o conjunto em si, o tipo de enfrentamento disposto aqui não funcionaria de outras formas e exige um combate mais plural, com inimigos rápidos e perigosos, ainda que não tão variados quanto se poderia esperar pelo escopo da produção. O ritmo mais acelerado também favorece uma maior independência dos companheiros de time – desta vez dois, ao invés dos três do game anterior, o que se provou suficiente e útil para as exigências encontradas. Com características mais definidas, montar um time ideal para diferentes situações deixou de ser uma tarefa de quebra-cabeças, valorizando configurações distintas e nos ajudando a criar vínculos com todos eles.
Indubitavelmente, as diferentes classes carregam consigo características próprias, e considerando o equilíbrio entre ataques corpo-a-corpo, projéteis e agilidade, decidi por criar um bom Rogue (o típico arquétipo do ladrão) dotado de um arco preciso e espadas curtas ágeis para combos caprichados. Os primeiros minutos do jogo são muito competentes em demonstrar como as batalhas se desenvolverão ao longo da campanha, o que significa que servem como aperitivo tanto para se testar a dificuldade do game (e confesso que o modo Normal se mostrou muito mais acessível que o mesmo nível em Inquisition, com exceção para os encontros com chefes e dragões) quanto para entender se a classe escolhida é a melhor decisão para o estilo do jogador.
A sugestão, aliás, é evitar perder muito tempo criando o personagem na primeira oportunidade, já que é possível que se queira reiniciar o jogo caso você não se sinta bem adaptado às primeiras escolhas. Caso esteja feliz com o que decidiu, não demora para que voltemos ao espelho em nossa base, aqui chamada de O Farol, para reformular tudo o que ainda não está de acordo com as expectativas. A minha versão no jogo se transformou bastante desde a introdução, e admito ter usado mais tempo do que estaria disposto a admitir montando um rosto que me deixasse satisfeito. A boa notícia é que, com exceção da raça ou da classe, todos os quesitos de aparência podem ser feitos e refeitos quantas vezes o jogador desejar.
Ainda no campo da customização, outra grande diferença foi a simplificação na criação de novos equipamentos, e é importante destacar que o sistema de forja já é praticamente inexistente. Ou seja, se você gostava de comprar ou coletar receitas, criando armaduras e armas com diferentes composições para ter uma build exatamente como deseja (ou várias para diferentes situações), vai acabar se decepcionando aqui. No lugar, tudo ficou mais direto, onde encontramos uma peça e a equipamos ou não a partir de suas características primordiais. O máximo que se pode fazer, a partir de um certo ponto na trama, é adicionar um encantamento com uma característica complementar, como maior dano elemental, maior resistência a ataques de longe ou de perto, e coisas do tipo. Para quem ficava horas montando um sets para todo o time, uma economia de tempo, mas também uma limitação no poder de personalização jo jogo.
Ao menos no caráter da aparência, contudo, há aqui uma ampliação de características já vistas em outros jogos similares, onde embutimos visuais já prontos aos equipamentos de verdade. Estas aparências vão sendo liberadas conforme coletamos seus itens originais, ou compradas em diferentes locais, de modo que dificilmente você terá que tolerar um chapéu horroroso de pano para uma armadura prateada só porque eles são seus componentes mais fortes. Na maioria do tempo, você nem vai se preocupar com a estética do que você usa, porque ela estará escondida debaixo da escolha da aparência feita anteriormente e customizada à parte.
Por outro lado, confesso que são pouquíssimos os visuais – reais ou disfarçados – que realmente me agradaram no game. A maioria dos itens é feia, desengonçada e muitas vezes sequer combina com o corpo do personagem. Não foram raras as vezes onde meu boneco parecia aquelas montagens que fazíamos quando crianças colocando a cabeça de um brinquedo no outro que nem era de mesma proporção. Os elmos e capacetes são particularmente horrendos, todos eles, o que me fez optar, por 80% da campanha, em usar o visual de uma pequena coroa que mal dá pra ver, porque as demais opções eram simplesmente intragáveis.
Curiosamente, isso não é um reflexo das escolhas artísticas do jogo, algo que também causou um certo estranhamento por não investir necessariamente no realismo tão característico da série. Ainda que texturas e expressões sejam bastante reconhecíveis, há alguns exageros nos traços e nas cores que flertam com um tom levemente cartunesco, quase caricatural. Entretanto, esses pequenos ajustes são muito mais sutis do que se fazia crer no material promocional, e Dragon Age: The Veilguard encontrou um meio termo ainda bastante coerente com o que já tínhamos visto, mas um pouco mais carismático e bem saturado. Não só personagens humanóides, como elfos e anões, mas até os inimigos ganharam com este tom discretamente exagerado, e o resultado é bastante satisfatório, ainda que eu compreenda não ser uma unanimidade.
A ambientação, porém, parece ser menos passível de discordâncias, com uma construção de mundo quase irretocável. Texturas e efeitos de partícula são dignos do mais alto padrão desta geração, com destaque para a iluminação dinâmica que reage muito bem a magias, efeitos pirotécnicos e outros virtuosismos muito coerentes com a identidade visual do jogo, com um desempenho muito satisfatório. Como de costume para mim, aliás, a escolha por mais fluidez em detrimento à qualidade e estabilidade dos 4K se provou mais interessante para o meu perfil pessoal, mas não tive grandes surpresas experimentando uma ou outra possibilidade, mesmo nos momentos de maior movimento e ação em tela, salvo a passagem final, que parecia mais carregada de tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo.
O game também joga seguro no que tange a interface de suporte, sem grandes sustos ou surpresas, e também sem grandes inovações. A árvore de habilidades protocolar, que progride conforme ganhamos níveis de experiência, traz tanto habilidades ativas, como novos atraques especiais e golpes supremos que dependem da especialização escolhida para cada classe; bem como melhorias passivas, como aumento em dano, resistência ou tempo de recarga. Além disso, a composição dos equipamentos é quase instintiva dada a sua similaridade com jogos conhecidos, como os mais recentes Assassin’s Creed, acrescidos de uma composição de três runas, cada qual também com caraterísticas passivas e outras ativas, acionáveis manualmente durante a ação.
Seguindo a escolha de um relativo minimalismo, a grande maioria dos documentos, sejam recortes ou outras leituras encontradas, sejam lembranças colecionáveis, ou até mesmo cartas recebidas, é bastante rápida e evita longas leituras mais dedicadas. Tal como uma visível diminuição dos diálogos expositivos, tudo parece mais direto e pulverizado em uma série de fontes que dão substância para aquele universo, conectando-o com o que já conhecíamos, sem parecer didático ou enfadonho demais. O recurso que melhor se aproveita do princípio é o de navegação do mapa, o mais objetivo possível tanto para encontrar caminhos – dificilmente se tem aquelas áreas enormes e vazias de RPGs de ação – e pontos de viagem rápida, sem burocracia ou pré-requisitos requintados.
Se no aspecto visual tudo parece menos pesado, esta objetividade estética sacrifica outros valores, e a maior delas provavelmente é a trilha sonora. Não porque o trabalho com vozes esteja ruim e, ao contrário, todos os principais diálogos funcionam muito bem, com ótima escolha de elenco e direção, a se lamentar a ausência de uma versão brasileira, deixando para a localização apenas as boas legendas. Também não tenho queixas quanto à mixagem ou aos efeitos sonoros, todos muito competentes e funcionais, mesmo que eu ainda sinta falta de ouvir melhor as distinções entre cada ambiente, seja pela natureza dos espaços abertos, ou o tom mais urbano das cidades e povoados. O que está aquém é a parte musical.
Confesso ser um pouco difícil me distanciar de expectativas pessoais, dado que tanto a canção principal quanto as demais composições são, em conjunto, a minha trilha sonora favorita de toda a história dos videogames, o que é bem difícil de se cumprir enquanto parâmetro de comparação. Mas olhando mais friamente, não encontrei aqui momentos onde esse elemento me comovesse como fizera o game anterior, mesmo que estruturalmente tudo esteja no devido lugar, com boas batidas para passagens de batalhas ou sons mais melódicos para cenas adequadas. Tudo funciona bem, mas… Dragon Age já provou que “bem” lhe é pouco. The Veilguard é ótimo em termos sonoros. Mas não é inesquecível.
Diante tudo isso, tem um pequeno detalhe: dragões! As maiores estrelas do show não poderiam ficar de fora desta análise, tal como estão permeando tudo o que envolve a marca Dragon Age. Possivelmente, esta tenha sido a maior carência da série animada da Netflix, já que esta utilizou destes gigantes muito mais como ferramenta de roteiro do que em toda a sua capacidade de pautar a trama mais ativamente. Se em Inquisition trombar com um dragão cedo demais era sinônimo de fracasso, morte e humilhação, Dragon Age: The Veilguard cria expectativas no ponto certo, nos dando aperitivos destes encontros até estarmos totalmente preparados para o embate completo, sendo que a maioria deles se concentra na metade final da aventura.
Estes conflitos são bem contextualizados e justificados na lógica das missões primárias e secundárias, quase sempre resultantes de uma construção escalonada. Ou seja, muitas vezes começamos por algo mais corriqueiro, que ganha proporções maiores a cada nova atualização e, de repente, desemboca em um covil do qual só dá pra sair depois de derrubar uma destas criaturas maravilhosas. Você até pode vislumbrar um ou outro de longe, virar as costas e seguir a vida, como era comum na trilogia original, mas na maioria das vezes, o encontro é conceitualmente único e sem retorno, adicionando um certo tempero para estas presenças ilustres.
Menos pomposa é, contudo, a conexão com tudo o que veio antes na franquia. A participação desejada de personagens célebres, como Morrigan e Varric, é maior do que eu imaginava, mas ainda assim periférica e quase desnecessária, e funciona muito mais como fan service do que, de fato, como algo significativo para expansão e aprofundamento da lore de cada um deles. O próprio Inquisidor parece estar pouco preocupado com eventos tão significativos, e mesmo com uma desculpinha esfarrapada justificando seu distanciamento, é contrastante demais o pouco envolvimento do que sobrou daquela organização, considerando os sacrifícios vistos anteriormente.
Algumas outras participações especiais são ainda mais discretas e podem passar despercebidas por quem bobear por alguns segundos, e ainda assim parecem adições de última hora, como se a produção tivesse esquecido de criar as pontes transversais para a composição desse universo, criando pitadas econômicas de última hora só para cumprir tabela. A maior e mais direta ligação é mesmo toda a sub-trama com Solas, cuja ação está convencionalmente limitada por praticamente toda a história, mas ainda é estranho que suas convicções sejam suavizadas e, por vezes, relativizadas.
Dragon Age: The Veilguard é, em resumo, um grande jogo em praticamente todos os seus aspectos, mas é notável que aposta no seguro e evita se arriscar demais. Várias das convenções estruturais do gênero, atualmente, estão presentes sem quaisquer intenções de inovação, o aproximando de muitas outras coisas que vemos no mercado. Se isso facilita a aproximação de jogadores novos para, quem sabe, uma primeira entrada na franquia, ao mesmo tempo pode decepcionar os velhos fãs que esperavam um salto em direções mais ousadas, como o aprofundamento da gerenciamento de grupo, do sistema de escolhas de diálogo e caminhos ramificados e coisas onde os jogos anteriores se tornaram referência.
O game recua alguns passos no que o destacava, por exemplo, em termos de liberdade e personalização da experiência, limitando elementos táticos de gestão de combate e construção de ferramentas, e com isso ganha um maior controle de ritmo e condução narrativa, uma troca que pode agradar uns mais do que outros, mas que certamente mexe com a identidade da marca. É inevitável que constatemos que se passou uma década desde o premiado último título, e que a indústria interna e externamente passa por algumas transformações significativas em termos de produção, distribuição e financiamento, o que se reflete nas escolhas óbvias aqui realizadas.
Ainda assim, o game revigora seu estilo e consegue acertar nos quesitos mais importantes, com uma trama interessante o suficiente para guiar a campanha; um sistema de exploração que equilibra bem espaços abertos em cenários bem desenhados; um combate menos truncado que funciona bem para o modelo de confronto escolhido; bem como a escolha por uma interface reconhecível que abre mão de algumas liberdades para valorizar o ritmo mais aventuresco. Se a mudança sutil, mas significativa no tom (que tornou este mundo um pouco mais descontraído) e no estilo artístico mais saturado não serão unanimidades, o aspecto da fantasia mantém-se coeso, lindamente representado e emocionante como sempre. E, bem… já contei que tem dragões?
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Eletronic Arts.
Veredito
Com um saldo bastante positivo, Dragon Age: The Veilguard atualiza alguns dos sistemas mais conhecidos da franquia, simplificando vários deles em favor de um tom mais leve e uma narrativa mais direta. Enquanto estilo artístico e combate podem dividir o público, a narrativa sofre com inconsistências, e a fluidez favorece a ação em detrimento da estratégia tão característica da franquia.
Dragon Age: The Veilguard
Fabricante: BioWare
Plataforma: PS5
Gênero: RPG
Distribuidora: Eletronic Arts
Lançamento: 31/10/2024
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Overall, Dragon Age: The Veilguard updates some of the franchise’s most well-known systems, simplifying many of them in favor of a lighter tone and more straightforward narrative. While the art style and combat may divide audiences, the narrative suffers from inconsistencies, and the fluidity favors action over the strategy that is so characteristic of the franchise.