“- E com fogo veio disparidade. Vida e morte. Luz e escuridão”. A abertura do primeiro Dark Souls demonstra as etapas para a consolidação da era do fogo, rompendo com a escuridão – curso natural do universo do jogo. Mas o fogo não duraria para sempre e, cedo ou tarde, ele se extinguiria. Diante desta ameaça, Gwyn, o primeiro Lord of Cinder, posterga a chegada da escuridão ao se sacrificar para “linkar” o fogo.
Em Dark Souls III, diversas eras se passaram, civilizações ruíram e o período do fogo continuou a ser prolongado por outros Lords of Cinder. No entanto, as trevas representam o curso natural do mundo e tal ameaça está voltando, agora no reino de Lothric. Com a tarefa de renovar a era do fogo (ou não), o jogador assume um ser de cinzas, receptáculo de almas, incubido de trazer as cinzas dos antigos Lords of Cinder aos seus respectivos tronos, para então completar o ritual que permita mais uma breve existência da era do fogo.
O terceiro episódio do RPG ação da From Software herda aspectos diversos de cada jogo da série Souls, inclusive Demon’s. Traz ainda um exagerado fan-service e faz constantes referências aos games anteriores. A essência do gameplay é a mesma, com foco em combates desafiantes, level design fantástico e um lore profundo. Contudo, os avanços técnicos permitidos por plataformas da nova geração e o conhecimento acumulado ao longo dos anos pelos talentosos desenvolvedores da From Software resultaram em um produto especial.
Bastante distinto do sistema de vials de Bloodborne, os estus estão de volta em Dark Souls III. Não há mais necessidade de “farmar” itens de recuperação, visto que em cada bonfire o jogador recebe um número fixo de estus de cura ou do inédito estus que recupera a barra de magia. Life gems de Dark Souls II foram extintas e o jogador precisa controlar bem o uso de estus para ficar vivo. Preferido por uma boa parcela dos fãs, esse é um sistema bem balanceado e, portanto, deve agradar aos entusiastas da série.
O alto desafio, marca registrada da franquia, permanece. Inimigos comuns são trabalhosos e possuem uma inteligência artificial mais sofisticada, com uma grande diversidade de comandos que usualmente os permitem contornar táticas sujas elaboradas pelo jogador. Inimigos humanoides, por exemplo, abusam da cura por estus caso o jogador dê abertura para isso. A criatividade da From Software também não cessa. O design dos inimigos e seus novos padrões de comportamento contribuem para revigorar o combate do jogo. A bizarra aranha da catedral e os guardiões da prisão são alguns que me surpreenderam.
Igualmente importante para a série são os chefes. Ainda que visualmente impressionantes, são relativamente fáceis e podem decepcionar os mais hardcores. A dificuldade aumenta significativamente perto do fim do jogo, mas na sua primeira metade não existem elementos impeditivos. É inegável que a experiência com os demais jogos da From Soft ajude neste processo, mas mesmo iniciantes não devem ter trabalho, visto que a barra de vida dos chefes são bem curtas e o acesso a um vasto e excelente arsenal desde o início facilitam a jornada do ser de cinzas.
Uma das críticas mais recorrentes de Bloodborne é a falta de variedade de armas, vestimentas, “magias”, entre outros itens customizáveis. Em Dark Souls III esse é um problema inexistente. Existem diversas armas clássicas (Great Axe, Claymore, Club, Uchigatana, etc) e muitas novas. O medidor de peso para vestimentas permanece na série Souls e o jogador pode combinar as roupas, mas deve estar atento aos limites de 70% e 30% para movimentação moderada ou rápida, respectivamente.
Magias, milagres e piromancias também retornam com novas habilidades. Hex não foram extintas, apenas incorporadas a algumas dessas categorias. A barra de MP é introduzida pela primeira vez em um Dark Souls e muda a estratégia de uso dessas habilidades. Infelizmente as magias em geral não são muito úteis para o PvP (Jogador VS Jogador) e necessitam de balanceamento.
Por falar em PvP, somente a robustez de customização e builds de Dark Souls III já torna esse modo muito satisfatório. Uma boa notícia: o Soul Memory de Dark Souls II foi abolido, uma medida que precisava ser feita para não comprometer o matchmaking. Embora o netcode seja datado e existam atrasos no registro de informações mesmo com pessoas da mesma região, é um modo bastante divertido e com grande potencial. As áreas do jogo oferecem ótimos palcos para as lutas ou emboscadas que predominam o esconde-esconde.
As covenants estão de volta e diversificam o matchmaking do jogo, além de trazer recompensas exclusivas. Toda covenant possui algum item necessário para o troféu de platina, portanto, os caçadores de troféus terão bastante trabalho pela frente. Da minha breve experiência com o PvP, observei diversos confrontos desleais. É muito comum cair em salas com dois ou mais jogadores em Coop, sem muita oportunidade para lutar de forma justa e cumprir as metas de algumas covenants.
Outro aspecto esperado da série “Soulsborne” é o level design inteligente e original. Esse é, sem dúvidas, o ponto alto de Dark Souls III e que se sobressai em relação aos demais jogos da franquia e do gênero.
Dark Souls III possui os locais mais vastos, com as biomas ou temáticas mais impressionantes da série. A região do Vale Boreal é a minha favorita e imagino que minha opinião seja compartilhada por inúmeros outros jogadores. A escala é absurda em alguns casos, com diversos locais para serem explorados e com muitos atalhos disponíveis. As partes de uma área são cuidadosamente arquitetadas a fim de oferecer armadilhas ou posicionar inimigos de maneira cruel para atrapalhar o progresso do jogador. Os detalhes também são ricos, similares aos visto em Yharnam, de Bloodborne.
A decepção fica por conta do “world design” – especificamente de como as áreas se interconectam para formar o mundo de Dark Souls III. Nesse ponto, ele é mais linear (que os demais jogos) e os teleportes entre bonfires vão suprir a ausência de atalhos. Citando como exemplo de mundo interconectado, temos o elevador de Undead Parish para Firelink Shrine em Dark Souls ou a passagem de Forbidden Woods para Central Yharnam em Bloodborne. Conexões similares infelizmente não existem em Dark Souls III, ainda que seja possível ver locais familiares no horizonte.
A composição visual e artística deste terceiro episódio é primorosa. O salto em relação a Bloodborne é imperceptível, mas a ausência da aberração cromática faz um enorme bem para as cores e gráficos do game. A iluminação é sofisticada e por vezes compensa as fracas texturas de alguns cenários.
Infelizmente, os programadores da From Software não entregaram uma performance agradável na versão PlayStation 4. Não é algo que surpreende, pois o problema de framepace existente em Dark Souls III é o mesmo de Bloodborne – provavelmente uma falha derivada do mesmo motor gráfico. Isso acarreta em ocasionais stutters, facilmente visto ao se movimentar a câmera. A taxa de quadros por segundos (fps) também não é das melhores. Nos cenários finais do jogo é comum notar segmentos que ficam abaixo dos 20 fps. Não é tão drástico quanto Blighttown de Dark Souls, mas chega perto.
Típico dos demais jogos da From Software, o áudio design é ótimo. Os sons emitidos pelos novos inimigos e chefes colaboram para construir a atmosfera sombria e de terror do jogo. A trilha sonora é um enorme salto em relação aos demais Souls. As composições de Yuka Kitamura (responsável por Ebrietas, Daughter of Cosmos e Lady Maria of the Astral Clocktower) são belíssimas – a música tema de Dark Souls III é um exemplo disso.
Há muitos segredos em Dark Souls III, especialmente na forma de quests de cada NPC. É fácil perder alguma conversa ou recompensa, visto que a série Souls não guia o jogador como outros jogos convencionais. O game possui uma boa longevidade, algo similar ao que o primeiro Dark Souls oferece. No meu caso, foram necessárias 35 horas para finalizar o jogo e completar todos os chefes opcionais. O new game+ característico da série está de volta e contém algumas pequenas novidades na segunda jornada.
O fator replay da série é alto, seja pela infinidade de conteúdo singleplayer ou pela diversão nos modos multiplayer. Todavia, após jogar extensivamente todos os jogos anteriores da franquia e algumas cópias, a fórmula já começa a apresentar sinais de desgaste. Pode ser algo facilmente contornável – sucessores espirituais na forma de novas IPs com leves alterações no gameplay, como é o caso de Bloodborne, podem dar nova vida a futuros jogos da desenvolvedora japonesa.
Veredito
De uma série que saiu do anonimato, da escuridão (trocadilho sem intenção), hoje Dark Souls faz parte de um público mainstream – fruto apenas de sua excelência. Ao longo da história da franquia houve muitas evoluções e alguns tropeços, mas é seguro dizer que Dark Souls III alcançou o equilíbrio ideal e é o produto mais refinado da série Souls. Os problemas de performance incomodam e deveriam ser corrigidos por patches, mas o restante de Dark Souls III é brilhante e deve ser experimentado por novatos ou entusiastas.
Jogo analisado com código fornecido pela Bandai Namco