Jogo de navinha é, definitivamente, um dos meus gêneros preferidos da clássica época dos 8/16 bits. Depois de um tempo, cresci, aprendi que o estilo é comumente chamado de shoot ‘em up, ou shumup para os mais íntimos, e conheci alguns projetos menos famosos, mas igualmente interessantes e desafiadores. Já falei de coisas mais tradicionais recentemente, como a recomendada coletânea Darius Cozmic Collection, além dos mais recentes e relativamente desconhecidos Risk System e Natsuki Chronicles, todos que, de uma forma ou de outra, me levaram de volta até um momento onde as coisas eram mais simples, ao mesmo tempo que mostraram elementos e detalhes que lhes tornavam únicos.
Cotton Fantasy (lançado originalmente no Japão como Cotton Rock ‘N Roll) não só se alimenta desta tradição de décadas e que remete a alguns dos jogos mais importantes da história dos videogames, como também pertence a uma franquia que ajudou a consolidá-la no oriente. O primeiro jogo da série, Cotton: Fantastic Night Dreams, foi lançado lá no longínquo ano de 1991 para fliperamas em terras nipônicas, e desde então outros tantos surgiram, mas poucos deles atravessaram o mundo para chegar até essas bandas ocidentais. Felizmente, desta vez temos a oportunidade de experimentar este que se coloca como um legítimo representante do que se convencionou a chamar de cute ‘em up, uma variação fofinha dos jogos de tiro mais convencionais.
Cotton, personagem que dá o nome à franquia, nada mais é do que uma pequena bruxa completamente apaixonada por um tipo de doce, os chamados Willows, conhecidos por suas propriedades mágicas especiais que concedem desejos. Quando a fadinha Silk traz a triste notícia de que esses estimados quitutes começaram a desaparecer, não será necessário mais nenhum incentivo para que nossa heroína arregace as mangas e se coloque sobre sua poderosa vassoura em busca do resgate. Nenhum monstro, máquina ou criatura será poderoso o suficiente para impedi-la.
Sim, a campanha, de gravidade, não traz nada. Por mais que tudo pareça grande e ameaçador, estamos diante uma história leve e, em certa medida, inocente, sem qualquer compromisso com verossimilhança ou algo que o valha. Não há dúvidas de que a ameaça principal acaba escalando ao longo da breve jornada do game – para os mais experientes, nada que passe de uma hora ou menos, que pode ser ainda menor porque o jogo permite que se escolha a ordem das fases, incluindo pular algumas delas – mas tudo se mantém no nível lúdico da fofurice de todas as personagens que vemos em tela.
Com uma narrativa construída intercalando as 9 (ou menos) fases disponíveis com cenas de corte estáticas, mas animadas como um mangá dinâmico, é fácil se sentir seduzido por pular as passagens que contam mais dessa trama, e certamente o jogador o fará a partir de uma segunda ou uma terceira run, mas ao mesmo tempo as belas ilustrações e o carisma da protagonista valem todo o esforço dessa construção de plot, da ligação entre os diferentes níveis e até a simpática dublagem no idioma japonês que não perde em nada para as melhores experiências dos animes. Para um jogo do gênero, aliás, há uma preocupação muito autêntica com as motivações do tiroteio desenfreado que se vê em tela, por mais inesperada que seja a motivação da bruxinha.
Cotton não está sozinha, porém. O game conta com sete personagens jogáveis, uma delas desbloqueada depois de terminar o jogo pela primeira vez, e cada qual traz consigo sua própria bagagem visto que são oriundas de outras franquias, como Umihaea Kawase, Psyvaria e Starfighter Sanvein. Suas histórias próprias não são exploradas aqui, mesmo quando as escolhemos para a aventura, mas é interessante perceber que muito mais do que skins ou avatares variantes da personagem principal, todas elas tem suas características próprias, ataques especiais específicos e até modos de se jogar diferenciados.
Cotton segue o sistema padrão do gênero, com tiros comuns que evoluem de forma linear (mas que dependem da cor do cristal que coletamos) e, quando a coisa aperta, tem como apelar para aquela boa e velha bomba de dano em área. Appli segue mais ou menos o mesmo esquema, mas ao invés de um explosivo ela captura inimigos e os arremessa de volta ao campo de batalha, algo semelhante a Umihaea e sua potente vara de pescar. Ria, por sua vez, se aproveita da carga dos tiros que passam muito próximo dela (mais ou menos como no já citado Risk System) para potencializar seus equipamentos; enquanto Fine não tem ataques especiais destruidores, mas sim um modelo de alternância entre três tipos de armas, cada qual para enfrentar inimigos distintos. Essas variações todas são ainda mais diversificadas conforme se progride na jornada e vale a pena experimentar cada uma delas na dificuldade normal antes de partir para desafios maiores.
Para tudo isso, a jogabilidade não poderia ser mais simples. Além do óbvio controle para todas as direções, algo que funciona bem em uma velocidade muito confortável, há dois comandos de ação: o tiro comum (que pode ser configurado para se manter contínuo ao segurar o botão ou gatilho pressionado) e o especial (que, como visto anteriormente, tem funções específicas de acordo com a personagem escolhida), mapeamento este que permite determinar ambas as possibilidades em qualquer lugar do controle. Nada de movimentos complicados, múltiplas combinações ou coisas do tipo. Basicamente, é o conceito mais puro do gênero: siga em frente, não seja atingido pelos inimigos e atire no que se mexer.
Nem por isso, contudo, Cotton Fantasy é um jogo fácil e relaxante. Pra valorizar e honrar as tradições, não demora muito para que a tela se torne uma verdadeira chuva de coisas acontecendo, um típico exemplo do conceito bullet hell. Em algumas passagens, a bagunça tende ao exagero, quase ao injusto, pelo menos até que se entenda que nem sempre desviar dos ataques adversários o tempo todo é a melhor escolha. O modelo segue aquilo que já vimos antes: uma série de inimigos diferentes surgem na sua frente (e as vezes surpreendem de outras direções), em bandos eles aparecem em padrões sincronizados, aqueles especiais dão mais trabalho para serem vencidos, e no final da fase, um chefe poderoso e com uma barra de energia gigantesca.
O problema é que aqui, tanto os inimigos comuns quanto os chefes são muito pouco significativos. Enquanto aqueles que aparecem na casa das dezenas tem, na sua grande maioria, um design simplório, quase sempre baseado em formas simples e superfícies lisas, e são totalmente esquecíveis, os chefes tem lá seus momentos, mas pouco oferecem em termos de personalidade. Alguns até se esforçam, mas com ataques pouco variados e animações pobres, acabam passando sem deixar saudades. E olha que cada um tem duas formas e mesmo assim, tirando uma águia cheia de olhos que evolui para um grifo ou uma aranha gigante que se torna uma quimera, tudo é muito volátil.
Cotton Fantasy, na maioria do tempo, toma decisões que boicotam suas melhores qualidades mecânicas e, principalmente, artísticas. Se as cutscenes, como já falei anteriormente, tem um charme todo especial, as passagens de gameplay escondem seus méritos. Os cenários, com boas camadas e uma paralaxe competente, sequer ganham qualquer respiro para serem apreciados e, na maioria do tempo, são só panos-de-fundo coloridos. Mesmo que apele para clichês temáticos – a floresta, o Egito Antigo, os céus, o espaço, etc. – seria muito proveitoso poder curtir melhor o espaço onde as coisas acontecem. Mesmo a trilha musical, tão típica e animada quanto um bom shmup pede, parece a base para um sem-fim de efeitos de tiros e explosões que pouco podem ser curtidas, a não ser que escolhamos deixá-la com o volume muito mais alto que os demais efeitos.
Talvez isso seja uma consequência do ritmo exageradamente acelerado do jogo. Cada fase é quase que um rápido delírio, dura algo em torno de cinco minutos no máximo, e cada horda de inimigos explode muitas vezes sem nem dizer a que veio. A velocidade em tela é outra questão que corrobora para esse sentimento de vislumbre, e nem permite que aproveitemos cenários, ambientação ou algo do tipo. Então você começa o nível já atirando, nem vê o que está lhe ameaçando direito, se bobear aquilo toma a tela e você pouco percebe a si mesmo naquela bagunça toda, e em questão de segundos já está lutando contra um chefe que não dá muito respiro. Enquanto vê sua pontuação na tela, o jogador ainda está tentando descobrir qual era a temática da fase.
Nas dificuldades mais elevadas isso tudo só se potencializa. Enquanto na Difícil, a quantidade de inimigos não muda muito da normal, e o que se altera mesmo é a velocidade com a qual eles disparam projéteis, na Extra as coisas saem do controle, com cada inimigo derrotado explodindo em pedaços que também nos causam dano. Isso sem contar nossa própria arma que, se bem gerenciada, dá ataques tão diversos e espalhados que podem tomar a tela toda. Em outras palavras, o ritmo do jogo é insano, e na maioria do tempo eu lamentava que tudo passava tão rápido, não porque era mais fácil ou mais complicado assim, mas porque pude aproveitar pouco da passagem. Fases um pouco mais longas e uma dinâmica mais cadenciada seriam ótimas oportunidades para potencializar cada detalhe criado pro jogo.
Cotton Fantasy, mesmo que nem sempre seja tranquilo, não tem nenhuma pretensão de punir o jogador, nem de deixá-lo pelo caminho. Normalmente, temos três pontos de dano antes da morte (a não ser Ria, que usa um cronômetro regressivo que perde tempo cada vez que ela é atingida e se zerar, lá se vai a vida) e, mesmo quando somos derrotados, a contagem de continuação surge e nos recoloca no exato ponto onde fracassamos. Ou seja, nada de voltar até um checkpoint anterior, nada de recomeçar a fase, nada de perder qualquer centímetro do progresso. Na verdade, ao reviver estamos até melhores do que quando caímos. A única punição, para quem se importa com isso, é a pontuação zerar, prejudicando a posição nos rankings mundiais. É basicamente a mesma experiência de jogar qualquer Metal Slug nos consoles com Continues infinitos. Morreu? Volta e continua como se nada tivesse acontecido.
Tecnicamente, o game é um grande deslumbre, que, mesmo com os tropeços citados, nos oferece algo ainda muito positivo. Controlar personagens voando em vassouras ou flutuando em peixes no lugar de naves espaciais é algo muito especial, e é uma pena que os inimigos não tenham o mesmo nível de cuidado. A velocidade, se as vezes não prestigia a construção visual da obra, não é um problema em relação ao desempenho, que se mantém estável e sólido. O prejuízo é muito mais artístico do que prático. Por outro lado, há camadas de complexidade que merecem a atenção e a iniciativa de desbravamento por parte do jogador, como o sistema de níveis de experiência, variações dinâmicas do equipamento e outros detalhes pouco evidentes para olhares desavisados.
Completam as opções o modo de treinamento e algumas fases especiais de coleta de chá, incluindo partes que podem ser liberadas conforme se vence no modo principal. Não é muito, é verdade, mas são coisas suficientes para garantir que o jogador termine a campanha algumas vezes antes de partir para outra. Se, pessoalmente, eu gostaria que o jogo fosse um pouco mais longo, valorizasse as suas virtudes em fases com uma cadência mais variável e trouxesse mais daquilo que fez bem, não há dúvidas que dentro daquilo que se propõe, há muito mais acertos do que equívocos. É um jogo bonito, interessante, direto mas profundo, e se não é exatamente uma fonte de criatividade diante as mecânicas nas quais se inspira, aplica bem o princípio de ser fácil de aprender, mas difícil de dominar. E tudo isso com muita doçura.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela ININ Games.
Veredito
Cotton Fantasy é um típico shmup em sua essência e que segue a boa e velha regra do “atire primeiro, pergunte depois”. Não reinventa nada, se apropria dos melhores modelos de tudo o que veio antes no gênero e soma tudo isso ao carisma instantâneo de sua protagonista e de todas as personagens que a cercam em uma singela história sobre doces.
Veredict
Cotton Fantasy is a typical shmup at its core and follows the good old “shoot first, ask questions later” rule. It does not reinvent anything, it uses the best models of everything that came before in the genre and adds it all to the instant charisma of its protagonist and all the characters that surround her in a simple story about sweets.