Jogos colaborativos com atividades assimétricas propõem, como parte essencial da experiência, uma relação de dependência mútua entre os envolvidos. Ou seja, o sucesso da jogatina e até mesmo a diversão de quem joga estão diretamente ligados ao que se faz juntos, já que nenhuma ação individual importa se não estiver em consonância com o todo. Um dos ótimos exemplos dos últimos anos que se encaixa nessa descrição é A Way Out que, tal como outros jogos dirigidos por Josef Fares, traz esse princípio de aventura colaborativa ao máximo da definição.
Can’t Drive This parte do mesmo princípio em um cenário completamente diferente, onde o foco está muito mais na sobrevivência imediata e não em aspectos da contação de uma história ou do estabelecimento de mundo. Aliás, a base do jogo já parte do pressuposto da ausência total e absoluta de qualquer contexto narrativo e foca todas as suas forças nos princípios de gameplay colaborativo. Portanto, não espere qualquer introdução de “porquês” e de “para quês”. O objetivo absoluto aqui está só e somente só no “o quê” e no “com quem”.
Basicamente, o objetivo aqui é construir uma pista no absoluto vazio de uma arena etérea e atravessá-la em tempo real com um carrinho, buscando-se ir o mais longe possível antes da inevitável falha de um dos lados. É o clássico exemplo do jargão “fazer o bolo enquanto se constrói o forno”. A colaboração, portanto, está na execução de cada uma dessas tarefas fundamentais em consonância, ainda que há algumas pequenas variantes competitivas. Um dos jogadores vai montando a pista com trechos aleatórios que vão surgindo, cada qual com tipos de terreno, caminhos possíveis e obstáculos diferentes; e o outro precisa se manter em movimento lidando não só com o desenho da pista, mas também com essas outras tantas variáveis.
Assim, caso o primeiro demore em decidir qual peça e como ela será encaixada, certamente vai faltar chão para o motorista continuar seu trajeto. Já se o segundo não conseguir lidar com os imprevistos, como terreno molhado, fumaça ou mesmo o próprio leiaute da pista, poderá cair ou explodir – a inatividade causa superaquecimento e auto-destruição – o que também significa o fracasso da investida. Cada nova run é, desse modo, um salto de fé com o outro, um investimento que sua parceria fará bem o trabalho dela para que você possa fazer o seu, e vice-versa.
O jogo single player, contudo, não é impossível. Há um modo especificamente desenhado para quem quer ou precisa jogar sozinho. Para tanto, obviamente, ambas as funções são realizadas pelo mesmo jogador em estado de alternância de ponto-de-vista, com um timer garantindo que ele execute ambas as ações o mais rápido possível. Nesse modo, ha alguns pontos no mapa com itens de acréscimo no tempo para que a jornada se estenda ao máximo possível. É um jeito interessante de se jogar, ajuda a aprender bem cada uma das funções, mas evidentemente está distante de oferecer a experiência ideal do game. Com a perspectiva de não ter ninguém com quem jogar, provavelmente o game terá vida muito curta se jogado só nesse formato.
A forma mais convencional é a colaboração com mais uma pessoa, onde cada qual realiza uma função conforme já descrito. Para essa configuração, há dois modos diferentes (mas nem tanto). Enquanto o primeiro, chamado de Yardage, é basicamente um infinite run, com os jogadores tendo como meta se manterem vivos e superar a marca anterior de distância percorrida, o segundo se dá em uma arena mais fechada e, dividida em fases, depende da coleta de uma certa quantidade de objetos, chamados holos, para se avançar para o próximo nível, com uma preocupação adicional de haver um drone disparando armadilhas que desabilitam os controles do veículo por alguns segundos. Daí, o trocadilho do nome do modo: Game of Drones. Nesse modo, há um máximo de mortes permitida antes da falha, então ele se mostra um pouco mais convidativo do que o outro.
Ambos os modos multiplayer citados podem também ser jogados com mais pessoas. Se são três, há um construtor e dois motoristas, e se há quatro, três deles tentam sobreviver enquanto o outro se mantém em uma obra constante. Nesse caso, há a possibilidade de que o motorista que tenha falhado possa ser revivido pelo outro de uma forma bastante simples e direta: é só passar pela marcação exatamente no ponto onde o outro fracassou. Ainda que seja uma variante que acrescenta pouco ao formato, a possibilidade de resgatar o parceiro muda inclusive o próprio conceito de sempre seguir em frente, já que incentiva que se dê a meia volta para salvar companheiros caídos.
O último modo, o Capture The Egg, é exclusivo para quatro jogadores e apresenta um aspecto também competitivo. São dois times com um motorista e um construtor e o objetivo é, tal como o título sugere, alcançar o ovo adversário antes que ele faça o mesmo com o seu, e trazê-lo em segurança pra casa. É certamente o modo mais diferente dentre todos os disponíveis, mas é também o com menor potencial de acesso junto a amigos, já que precisa necessariamente de quatro pessoas. Nesse período de testes, não consegui jogar esse modo com pessoas aleatórias, já que havia pouca gente on-line, e só consegui testar com gambiarras localmente: jogando no Playstation 5, consegui ligar o dual sense, dois controles do PS4 e um PSVita para ser a quarta parte.
É uma configuração bem específica que pouca gente tem a disposição, então já esteja ciente que pode ser um modo on-line esvaziado se o jogo não alcançar um público amplo, e um dos modos mais difíceis de se jogar com amigos em casa. Por outro lado, caso ele seja possível (seja porque você tem amigos on-line com o game, seja porque tem gente e controles para tanto), é o modo com mais potencial para jornadas mais longas, já que tudo o que aprendemos para favorecer nos modos colaborativos pode ser usado também como armas sorrateiras no competitivo, algo capaz de causar algumas rusgas e muitas gargalhadas espalhafatosas. Garanta que haja mais das segundas que das primeiras.
Falando no aspecto de com quem jogar, não há formas de se misturar pessoas on-line e off-line na mesma jogatina. Assim que se aciona um segundo jogador local, automaticamente a opção on-line fica desabilitada. Em outras palavras, não há como jogar com mais uma pessoa em casa e outras duas remotamente, por exemplo. Ou se joga com todo mundo distante, ou com todo mundo no sofá de casa, o que é uma pena, pois limita ainda mais as opções do jogador. Para esta análise, recebemos dois códigos exatamente para o teste on-line, e ficamos satisfeitos em dizer que o jogo funciona extremamente bem, sem lags ou imprecisões, algo essencial para a proposta. O bate-papo por voz para coordenação da jogatina, via party da PSN, se mostrou especialmente fundamental para o sucesso (ou ao menos o adiamento da derrota), mesmo que com a tela dividida seja possível dar aquela corrida de olho do lado para saber o que vem pela frente, como no multiplayer local.
Jogando on-line ou não, a alternância de papéis dentro do mesmo modo é bastante facilitado. Basta uma opção ao final de cada partida e as funções são trocadas – a imagem acima ilustra a necessidade de uma correçãozinha ortográfica nessa opção, inclusive. Porém, se a jogatina tiver três ou quatro pessoas, necessariamente cada uma delas passará pelas funções de construção e de motorista, isso porquê não é possível escolher quem será o mestre-de-obras da rodada, essa escolha é automática e rotativa. Nesse caso, não há como fugir de uma ou outro função, o que na verdade é importante já que seria uma pena poder escolher ficar só construindo ou só dirigindo, o que significaria perder parte da experiência proposta pelo jogo.
A boa notícia, nesse aspecto, é que Can’t Drive This é extremamente fácil de jogar. A dirigibilidade arcade sem muitas frescuras ou especificidades acaba se mostrando a opção certa para não atrapalhar (ainda mais) a tarefa árdua do jogador em se manter vivo. O mesmo vale para a construção. Com peças aleatórias surgindo, cabe a quem está jogando decidir somente a posição da peça e a orientação dela, girando-a com os gatilhos do controle. São poucos comandos, poucas variantes para se preocupar, valorizando uma jogatina mais dinâmica e reativa, como pede a ideia original. Mesmo customização e opções pré-jogatina não oferecem tantos melindres e são bem otimizados para a objetividade.
Já no que tange o aspecto estético da produção, o visual é algo bastante modesto, com ambientação quase inexistente, peças de pista pouco diversificadas e um único modelo de veículo. O aspecto de customização tanto do seu carro como da sua pista (com itens que lembram os de Rocket League) amenizam essa percepção de pouca variabilidade e de texturas bastante simplórias, e a liberação de mais opções para essa personalização é, na verdade, o único incentivo de replay contínuo no jogo. Ainda assim, seria interessante que houvesse uma maior gama de cenários, veículos e tipos de terreno para que sessões mais longas parecessem menos repetitivas.
Há ótimas soluções climáticas, que envolvem nuvens de neblina que atrapalham o motorista ou poças de água que respingam inclusive na tela do construtor, algo que certamente não ajuda na tomada de decisões rápidas e é mais um elemento de dificuldade. Mas no geral, a iluminação universal simples e efeitos visuais de partícula primários parecem pouco, assim como modelos comuns, texturas e cores básicas, o que resulta em um conjunto gráfico pouco original e com quase nenhuma identidade que realmente destaque Can’t Drive This de outras tantas produções com carrinhos por aí.
O mesmo pode ser dito em relação ao departamento sonoro do jogo. Confesso que a música principal, aquela que toca ao longo da jogatina, é muito boa, um belo rock n’ roll empolgante e que dá o tom de caos que Can’t Drive This pede. Mas é literalmente isso: uma música, que independentemente da qualidade, se torna repetitiva. Como um jogo colaborativo também on-line, ela vai tocar no ouvido pelo uso de headset por horas e, bem, em algum momento vai cansar. Os efeitos sonoros e ruídos, até pela pouca variedade de itens e de cenários, também são bastante econômicos.
A falta de conteúdo e a simplicidade do que existe é um trunfo no aspecto de desempenho, algo que se reflete naquilo que foi dito sobre o jogo rodar lisinho sem qualquer engasgo mesmo em partidas caóticas. Não há dúvidas que a fluidez é aquela que se espera de um jogo com essa proposta multiplayer como premissa. Ao mesmo tempo, é uma característica fatal para a longevidade do título, que oferece pouco incentivo para que se continue engajado depois da primeira meia hora, dependendo somente da boa vontade dos jogadores. Destaco ainda que há um probleminha de câmera no jogo para três pessoas no modo Game of Drones, onde o construtor fica dependente do primeiro motorista e se esse explode, acaba complicando a continuidade da construção para quem ficou. Algo simples a ser corrigido em atualizações, mas ainda assim uma questão que acabou atrapalhando um pouco.
Na nossa experiência, não há dúvidas que a experiência tem sido bastante satisfatória. Por um motivo ou por outro, a gargalhada é fácil por conta de mortes ridículas, caminhos construídos bizarramente e a vontade de superar metas pessoais (ou rankings universais para os mais dedicados) de distância ou de fases vencidas, principalmente quando não se deixa levar a coisa a sério demais (porque nesse caso se cai na armadilha do stress, como acontece em jogos como Overcooked, por exemplo). É um jogo também gostoso para se assistir, algo que pode favorecer streammers, e a lista de conquistas é generosa, com ótimos trocadilhos e, para se conseguir alguns troféus, bem desafiadora. Ainda assim, continua sendo pouco para um jogo que depende de pessoas constantemente interessadas para se manter ativo para uma comunidade.
A torcida é para que os desenvolvedores possam continuar dando suporte ao game nos próximos meses, trazendo novos itens cosméticos, cenários, quem sabe novos modelos para pistas e carros, algo que seria muito proveitoso para os jogadores e que valorizaria o princípio básico de Can’t Drive This, que é uma ideia inventiva e diferente do que vemos no mercado atual de jogos colaborativos. Tal como está, certamente ficará instalado por um bom tempo na HD (não é um jogo que ocupa muito espaço) e provavelmente pode render algumas boas risadas numa tarde de domingo descompromissada com família e amigos (principalmente nesse período de maior distanciamento presencial). Mas a ideia parece comportar coisas maiores e tomara que elas venham para potencializar as gargalhadas e a diversão compartilhada.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Pixel Maniacs.
Veredito
Can’t Drive This traz o que há de melhor no conceito de multiplayer colaborativo assimétrico (local ou online) com uma jogabilidade simplificada de construção de pistas e direção de veículos, mas oferece pouco conteúdo audiovisual e de variabilidade dentro de cada modo, o que pode prejudicar a longevidade da produção. Mesmo limitado, conta com uma ideia criativa e bastante divertida para se compartilhar com amigos e família.
Veredict
Can’t Drive This brings out the best in the concept of asymmetric collaborative multiplayer (local or online) with simplified track-building and vehicle driving gameplay, but offers little audiovisual and variability content within each mode, which can impair the longevity of production. Although limited, it has a creative and very fun idea to share with friends and family.