“I was born with a strange gift…the ability to see what no human being has ever seen before” – a abertura de Beyond: Two Souls me capturou imediatamente com o olhar e as ricas expressões faciais da protagonista Jodie Holmes, enquanto ela profere tais palavras. Seu discurso nos prepara para um enredo sobrenatural e dramático, que tem como principal foco um percurso de 15 anos da vida da personagem. É impossível não se impressionar com o modelo digital da atriz Ellen Page; com uma câmera em close podemos notar texturas tão detalhadas a ponto de identificar rugas, pintas, lábios ressecados, pequenos cortes, suaves contornos, entre outras características do rosto humano.
A primeira impressão de Beyond é esta; um espanto com a qualidade técnica que alcançaram em um hardware velho como o PlayStation 3. Talvez o jogo com a melhor modelagem 3D de personagens humanos já criada até então. Tamanho capricho nos deixa mal acostumados, as vezes por demandar o mesmo nível de detalhes de personagens coadjuvantes e dos cenários, que compreensivelmente não acompanham a perfeição de Jodie.
Beyond também estabelece novos paradigmas por conta da performance de atores digitais em mídias interativas. A impressão convincente que temos de controlar Ellen Page não é apenas pela fidelidade visual, mas pela sua performance incrível. Suas expressões foram capturadas de forma fidedigna, graças ao constante aprimoramento da Quantic Dream no uso do motion capture.
Nathan Dawkins, representado por Willem Dafoe, também contribui para o fato anteriormente colocado, embora sua participação não seja tão destacada como a de Jodie. Ainda sobre os aspectos técnicos do game, nem tudo agrada. Como já mencionei, alguns cenários são simples graficamente, especialmente alguns que se passam a luz do dia, já que os cenários noturnos ocultam e disfarçam bem fracas texturas e modelos, além de fazerem melhor proveito do contraste entre luz e sombra. Contudo, ainda sim são visualmente competentes e seria um pecado desmerecer o que foi alcançado tecnicamente e artisticamente com esse jogo.
A performance no geral é satisfatória, todavia em ambientes vastos e abertos, com maior número de assets, o jogo sofre com pop-ins e um carregamento tardio de certas texturas. Há momentos também que a taxa de quadros por segundo cai, como no episódio de guerra do jogo, mas também não chega a comprometer a experiência do jogador. As tarjas pretas inclusas no game não me incomodaram, eventualmente o jogador deve se acostumar com isso, embora imagino que seja um pouco decepcionante para os usuários de TV’s pequenas.
Acompanhado do bom desempenho técnico, o jogo ainda traz consigo um repertório de belíssimas músicas. Composta por Lorne Balfe e produzida por Hans Zimmer, a trilha sonora de Beyond encaixa com sintonia às diversas ocasiões do jogo. As dublagens também dispensam comentários, como já mencionei anteriormente ao falar sobre o trabalho de mocap do elenco, todo o profissionalismo dos atores é implementado com requinte.
Característico da Quantic Dream, Beyond é mais um produto que aproxima as linguagens do cinema e jogos eletrônicos. Um exemplo cada vez mais claro de remediação (remediation: de maneira bem rasa, é um conceito que define mídias que contêm elementos de outras). O gênero “drama interativo” pressuposto por David Cage em Heavy Rain, predomina também em Beyond. O jogo é composto de extensas cenas de corte, intercalando com passagens de gameplay e em determinados momentos, fica difícil distinguir quando o jogador toma controle da situação, tamanho o esmero com os gráficos.
Dito isso, percebe-se que a narrativa tem papel fundamental e é ela que impõe o ritmo do jogo, e não o contrário. São raros os momentos que você realmente se sente em um jogo convencional. Isto pode ser bom ou ruim.
Bom para aqueles que que querem fugir da mesmice e não se incomodam de estar praticamente pagando mais por uma experiência cinematográfica, do que interativa, típica dos videogames. Acho que é sabido por todos que mais se assiste do que joga (o que não é necessariamente desagradável) e muitos jogos do tipo já provaram que a fórmula pode dar certo. Mas é o caso de Beyond?
Agora entro na parte ruim. Para aqueles que se incomodam com a interação extremamente limitada e não têm paciência para ficar contemplando vídeos, este jogo não é para você. Mas mesmo para o primeiro caso, que tolera e aprecia esse tipo de jogo, é difícil recomendar Beyond. O motivo é simples, o roteiro é demasiadamente fraco. A história oscila muito, com situações exageradas, bizarras e desconexas. O game também possui cenas perpletas de clichês que causam vergonha alheia, como em momentos de suposto envolvimento emocional, que você provavelmente começará a gargalhar de tão piegas que é.
O grande defeito de Beyond, na minha avaliação, tem um nome – David Cage, roteirista e diretor do jogo. O enredo além de ordinário, é um desrespeito com quem espera um mínimo de coerência e originalidade. Os clichês são até perdoáveis, mas não dá para digerir como o jogo integra as situações distintas que a protagonista vivencia, não há um foco, a história é uma bagunça. Existem também diálogos pouco construtivos e diversas pontas soltas no enredo, enfraquecendo ainda mais este aspecto.
Com controle sob Jodie, o usuário testemunha festinhas de adolescentes, experimentos de laboratórios, portais de outro mundo, fugas policiais, tribos indígenas e muito mais. Alguns capítulos são mal construídos e você vai desejar que acabe o quanto antes, outros são interessantes, como os episódios “Homeless”, “My imaginary friend” e “The Dinner”, mas infelizmente acontecem em uma proporção menor.
A variação das cenas é tão extrema (até mesmo pela sequência não cronológica da história de Beyond), que em um determinado momento você se sentirá parte de um filme de ação hollywoodiano, para em seguida presenciar uma história de terror sobrenatural, para então experienciar uma cena de imagens contemplativas, de afeto e convivência humana, típica do cinema neorealista. E devo dizer que o final de um dos epílogos me fez questionar o que eu estava assitindo – uma cena “trash” e deslocada, que pode ser brilhante na ótica de alguns espectadores, algo como Deadly Premonition já nos ensinou.
Beyond. Há também um modo cooperativo no game, possibilitando o controle simultâneo de Jodie e Aiden, por meio de smartphones ou com um segundo Dualshock 3.
Falando sobre exploração, o controle sob Jodie também é restrito em diversos cenários. É usual se deparar com ambientes abertos e nenhum botão do Dualshock 3 funcionar, apenas o analógico para cima – a fim de te encaminhar para a direção que o jogo demanda. Em conjunto a isso, há paredes invisíveis. Por meio de situações como esta que as vezes Beyond parece ser um jogo on-rails, algo que foi frustrante pra mim, já que até Heavy Rain costumava ceder maior liberdade de exploração.
Outro aspecto que não contribui para o produto final no game é a jogabilidade à base de quick time events (QTE’s). Este elemento é usado principalmente nas passagens de combate e fuga e torna o jogo ainda mais automático do que já é. Em Beyond, você precisa acompanhar o movimento do corpo de Jodie e seguir com o analógico direito para o mesmo lugar, mas os QTE’s nem sempre são intuitivos e quando aparecem, vêm de forma prolongada e repetitiva. Outro grave defeito que constatei é a maneira de como o jogo te conduz a próxima etapa. Mesmo falhando a maioria das QTE’s e até deixando o controle parado em certas partes, o jogo vencerá obstáculos para você.
Assim como Heavy Rain, Beyond não possui um “Game Over”. Suas escolhas ou falhas durante as QTE’s lhe direcionam para caminhos distintos e por vezes afetam o relacionamento com determinadas personagens. Todavia, a sequência de capítulos será sempre a mesma – o percurso da vida de Jodie é o mesmo quando se trata das localidades iniciais, o que muda é o desenrolar de cada episódio. Para um jogo ambicioso e dessa magnitude, considero isso uma limitação compreensível e durante minha segunda playthrough, constatei alguns novos momentos interessantes. Dependendo da sua decisão, um capítulo pode durar 5 ou até 15 minutos, por exemplo.
Existem, contudo, algumas impossibilidades de escolha. Além das QTE’s anteriormente mencionadas, o jogo toma a decisão por você em momentos de aparente interação; uma ilusão decepcionante. Como demonstrado no início do capítulo da festa, em que Jodie manifesta sua vontade de não comparecer a ocasião e acaba ficando no carro, até que vc aperte o único botão disponível e saia do carro (cabe ressaltar que o jogador faz decisões durante a festa). Esse tipo de situação não é rara e se repete em outros capítulos. Outro elemento incômodo são os controles para interação com o cenário e objetos – é o mesmo usado para movimentar a câmera, o analógico direito. Isso pode frustrar quando o jogador realiza contatos involuntários com objetos, enquanto controla a câmera. E o que pode ser ainda pior, após tais interações, você pode ser forçado a lidar com seu efeito, sem possibilidade de cancelamento.
No total Beyond oferece 12 finais diferentes, obviamente determinado pelas suas principais escolhas durante o game. E a duração total do jogo é satisfatória, são 9 ~ 10 horas aproximadamente para chegar ao final da história. Mas após a primeira jornada, é um teste a paciência retomar o jogo. É impossível pular as cutscenes, isso significa que o jogador será obrigado a assistir integralmente diversas cenas pela segunda vez. O game também possui uma DLC de pré-venda, mas esta se mostrou totalmente dispensável. São simples puzzles que podem ser facilmente solucionados em menos de 15 minutos.
Inconsistência é a qualidade que melhor define Beyond: Two Souls. O jogo não é um experimento falho, mas está longe de ser uma experiência memorável (ou talvez sim, mas por razões negativas, principalmente no que concerne ao roteiro). Oscilando entre capítulos horríveis e ótimos, é praticamente impossível não se envolver com a personagem de Ellen Page, dada a sua atuação sublime. Meu desejo é que “Jodie” pudesse marcar presença em outro jogo, longe da mediocridade de David Cage. Também espero que o próximo projeto da Quantic Dream se aproxime mais de Heavy Rain e menos de Indigo Prophecy, que foi a minha impressão ao finalizar o game. Ainda que Beyond reúna diversos defeitos, é uma experiência no mínimo curiosa e com algumas boas ideias. Recomendado – embora não seja uma prioridade diante de um ano tão majestoso para jogos como 2013 tem se mostrado.
— Resumo —
+ Excelentes gráficos, melhor visual de personagens humanos no PS3
+ Trilha sonora fantástica
+ Performance de Ellen Page
+ Alguns Capítulos (como Homeless) são muito interessantes…
– …Outros capítulos podem ser muito frustrantes.
– Péssimo roteiro proporciona uma história medíocre e inconsistente.
– QTE’s e exploração limitada deixam o jogo automático demais
– Sensação de ausência de escolhas em determinadas ocasiões