A metalinguagem, quando crítica, é uma das formas mais interessantes de olhar para si, de ressignificar, a partir de um distanciamento presente, aquilo que nos é tão íntimo. Hollywood adora falar de si mesma, por exemplo, e gosta ainda mais de se premiar quando faz isso. Não à toa, tantos filmes que adotam a estratégia de abordar a própria indústria são reconhecidos com as principais nomeações no Oscar, Emmy e assim por diante. Se ora esta auto-citação funciona como celebração, ora permite questionamentos, mas de um jeito ou de outro, é certo que a indústria cinematográfica estadunidense adora falar dela mesma. Felizmente, não só ela.
A prática não é restrita ao mercado audiovisual mais tradicional, e os games também lançam mão deste poderoso recurso, e novos olhares podem nos trazer algumas das melhores e mais significativas leituras de um universo. Bem Feito, produzido pelo estúdio brasileiro oiCabie e distribuído pela QUByte Interactive, traz uma brincadeira não só com o modelo de produção de jogos e do próprio mercado, como também da forma como lendas e conteúdos alternativos acabam ganhando espaço em camadas menos, digamos, nobres da internet.
As conhecidas creepypastas, fenômeno que surge e ganha seu nicho de interesse ao longo dos últimos 20 anos, são um poderoso combustível para teorias da conspiração e lendas urbanas que, se compreendidas como tal, podem divertir, entreter e despertar as melhores (ou piores) imaginações em cada um de nós. Para os pouco adeptos aos porões desta magnânima rede mundial de computadores, a coisa se parece com aqueles “contos que o povo conta” que foram muito populares décadas atrás em programas popularescos de televisão e rádio, só que ganham contornos mais interessantes porque demandam engajamento e uma dose de pseudo-investigação. É assim que somos apresentados ao universo de Bem Feito.
Diz a história que em meados dos anos 1990, uma empresa pioneira sediada nas Minas Gerais decidiu adentrar o competitivo mercado de hardware com um novo console portável de videogames, o Jogaroto, que logo em seu lançamento, trazia o inovador Bem Feito como o primeiro (e até onde se sabe, único) jogo do sistema, que trazia Reginaldo, um simpático e solitário garotinho, como um protagonista.
Sua missão, lá no seu mundinho chamado B-613, cuidar de uma propriedade (não chega a ter as dimensões de uma fazendinha) bastante simples, trabalhando em suas pequenas plantações e outros afazeres como pescar e colher frutas e madeira, transformando o lugar em um espaço confortável, produtivo e feliz para ele e para todos os seus mais novos amigos. Qualquer semelhança com o nosso mundo – ou outros mundos virtuais que já visitamos – não é, claro, mera coincidência.
Entretanto, todos os registros deste lançamento simplesmente foram apagados do mundo. Os aparelhos sumiram misteriosamente do varejo, não se sabia de ninguém que tinha comprado console ou jogo, e mesmo quem ousava buscar informações sobre o tema desaparecia sem deixar rastros. E, meio que sem querer querendo, nós assumimos o papel de uma pessoa que acaba com o emulador do console em mãos, o Garotron OS, que vem acompanhado, claro, com uma versão ROM do famigerado Bem Feito, além de uma série de arquivos encriptados. Tudo muito suspeito, claro, mas exatamente por isso mesmo, fascinante.
Obviamente que nem tudo está exposto logo a princípio, e tudo o que podemos fazer quando abrimos o jogo pela primeira vez é, de fato, emular o Bem Feito. Antes, porém, é importante destacar que a interface do metajogo simula a tela de um computador típico da época onde a história se passa e roda uma versão quase reconhecível do saudoso Windows 98 em suas gloriosas 800 colunas por 600 linhas de definição. Pastas, discadores de internet e aplicativos e outras poucas referências são capazes de nos fazer relembrar da área de trabalho da maioria de nós que vivemos aqueles dias pré-banda larga.
Há um apelo aqui para a nostalgia tanto daqueles que cresceram acompanhados pelo Game Boy como quem usava as poderosas máquinas Pentium 100 tão populares em escolas e universidades da época. Cada sprite do game nos lembra do lendário console da Nintendo assim como cada ícone nos leva diretamente para os tempos onde internet rápida e alta definição eram só papo de futurólogos.
O Bem Feito dentro do Bem Feito funciona como aquilo que esperamos, com ciclos diários guiados por uma listinha de afazeres convencionais na propriedade do protagonista. Coisas rotineiras, tradicionalmente rotineiras e bem pouco interessantes, como varrer a casa ou fazer a colheita do dia, mas até aí, todo mundo que já se aventurou por Harvest Moon, Animal Crossing e similares reconhece bem as iterações que constituem a gestão de propriedades. Tudo parece bem até que algumas atividades começam a, digamos, fugir da normalidade, nos provocando a realizar ações pouco nobres. O sorrisão de Reginaldo deixa de ser um ícone de simpatia e ganha conotações bem mais macabras.
Nada, claro, foge de qualquer sistema padrão de carma em jogos onde você pode ou não realizar tarefas moralmente questionáveis. O jogador tem a escolha de realizar só o que considera bom, ou se eixar consumir pelas trevas. Mas este não é, definitivamente, um jogo convencional, e a experiência de jogo dentro do jogo nos leva a fazer coisas também fora dele. A metalinguagem se eleva para uma nova instância, que pode lembrar até histórias como a da cinessérie O Chamado, mas ao invés de uma fita cassete empoeirada, recebemos um emulador bastante suspeito.
O game, como conjunto da obra, é pensado exatamente como algo para além da diegese, que transborda o chamado círculo mágico idealizado há décadas por Johan Huizinga, aquele mesmo que falava que o espaço e o tempo do jogo é limitado por si. O que acontece na trama importa bastante só quando em conjunto com o que está fora. Ao invés de estarmos em um mundo independente e desconexo da realidade, em Bem Feito, somos Reginaldo, somos um jogador fictício a quem o computador simulado pertence, e somos nós mesmos, com cada uma destes “eus” tendo suas próprias preocupações.
Uma produção assim traz também algumas dificuldades na própria avaliação de questões como jogabilidade. Os controles são bastante convencionais dentro do jogo de fazendinha, com comandos simplificados para executar tarefas, e mesmo quem não esta habituado com o gênero conseguirá atuar com tranquilidade, já que o game não exige grandes habilidades ou quaisquer respostas rápidas. Fora do jogo-dentro-do-jogo, mesmo um sistema que emula mouse e teclado não gera grandes complicações e abrir e fechar janelas é também algo muito simples. Impressionante o cuidado com detalhes que poderiam ser bobos em um primeiro momento, mas que fazem diferença no contexto e na imersão, como os padrões in-game de confirmação e cancelamento que imitam os jogos orientais, enquanto na interface de PC os comandos são ocidentais.
O mesmo vale para os aspectos estéticos, que não são simplesmente pautados por visuais retrô para jogos que querem se parecer com os lançados para o Game Boy ainda monocromático. Há aqui uma minuciosa reconstrução de aclimatação noventista que se permite fazer poucas concessões modernas. Não há, portanto, um movimento de reprodução simplória de valores pixel art, como acontece em tantos outros games que se baseiam nos visuais 8 ou 16 bits, mas uma verdadeira reconstituição histórica que se propõe como uma espécie de jogo de época. E, por este prisma, Bem Feito sabe exatamente o que quer oferecer e o faz com bastante competência.
Ainda que não se configure exatamente como um jogo de terror, de suspense ou de aventura, a forma como as coisas acontecem é muito peculiar e, não raro, pode causar até aquele frio na espinha, uma sensação estranha de inquietação e desconfiança. Quando a coisa transborda para além do jogo – não vou falar muito sobre isso para não estragar surpresas, mas houve um momento onde tive que apagar o save do jogo no meu Playstation 5 – tudo parece medonhamente macabro e remete diretamente àquela sensação de quando ouvimos uma lenda urbana das mais grosseiras, mas sempre com aquela desconfiança do “e se”.
Assim como lemos historinhas e causos na deep web ou quando ouvimos aquele nosso parente do interior contando histórias assombradas, a única forma de se divertir e suspender a descrença por alguns minutos e brincar de acreditar. E olhando por esse prisma, os desenvolvedores se mostram muito atentos aos detalhes, nos retroalimentam com referências e easter eggs tão típicos da época representada no jogo, algo que vai da trilha musical, dos efeitos sonoros do computador e até algumas citações a coisas tipicamente brasileiras. Mundo real e ficção se misturam, se conectam, e brincam um com outro de forma deliciosamente irresponsável.
Tudo isso, porém, parece propor uma grande jornada imersiva na qual estaríamos (em nossa imaginação) imersos por horas a fio, e mesmo quando assumimos seguir fielmente aquilo que é proposto enquanto experiência, a coisa toda é lamentavelmente muito curta e bastante condensada. É possível começar e terminar tudo em uma única madrugada preguiçosa, as vezes até menos se já houver uma ideia do que vem a seguir, e depois que se vivencia tudo com entusiasmo, há pouco o que fazer depois. Você até pode reiniciar a jornada uma ou outra vez, aproveitar para pegar um ou dois troféus para fechar a platina (uma das mais fáceis da minha vida), mas depois, o jogo fica mais como uma lembrança do que algo para onde retornar.
Bem Feito é, no final das contas, uma ótima ideia, quase que um experimento social, mas há quase nada para além disso, o que pode funcionar bem como, por exemplo, uma passagem de um jogo grande para outro, mas que pode ser pouco para quem se importou de verdade com ele. Ainda assim, é das coisas mais inventivas que joguei nos últimos anos, com uma capacidade enorme de provocar pensamentos, lembranças e devaneios. Ninguém vai acordar de madrugada pensando em Reginaldo, mas eu que não sou besta de comprar um boneco dele e deixar ele do lado da minha cama enquanto eu durmo. É uma bobagem, claro. Mas… vai quê, né?
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela QUByte Interactive.
Veredito
Bem Feito tem uma vida útil curtíssima, mas considerando a inventividade da proposta a partir de ótimas referências sobretudo para o público old school, propõe uma experiência muito diferente do que estamos acostumados – tudo isso com qualidade, cuidado e um tipo de carinho meio mórbido.
Veredict
Bem Feito is very short, but considering the inventiveness of the proposal based on great references especially for the old school audience, it proposes an experience very different from what we are used to – all with quality, care and a somewhat morbid type of affection.