A conhecida jornada do herói, tal como preconizada na clássica obra “O Herói de Mil Faces”, de Joseph Campbell, é das estruturas narrativas mais reconhecidas nas diversas obras da cultura pop, seja qual for a linguagem, o meio ou o suporte. Não à toa é das ferramentas mais básicas para roteiristas, mesmo aqueles que pretendam subvertê-la, e isso não é por acaso, já que historicamente ela favorece o encadeamento de eventos e ações que buscam criar uma relação de empatia entre protagonista e público, sentimento fundamental na busca pela imersão e pelo engajamento. Esta relação de cumplicidade é uma das chaves para compreender como Batora: Lost Heaven encontra um lugar especial diante tantas produções mais chamativas da atualidade.
Não é por acaso que o game lança mão de praticamente todos os principais tópicos deste modelo e, considerando a proposta de um jogo que flutua entre o já sedimentado RPG de ação com visão isométrica e um jogo linear com forte direcionamento para a história, a Stormmind Games, desenvolvedora do jogo, entrega tem um pequeno-grande acerto que poderia passar despercebido do grande público. Na trama, Avril, a improvável heroína desta épica aventura, é uma típica adolescente comum e sem nada de extraordinário que a destaque, até que um evento de proporções catastróficas dizima o nosso planeta. Sobrevivente do desastre, ela acaba recebendo habilidades místicas e, guiada por entidades chamadas Sol e Lua, descobre que o destino da Terra e de todo o universo está em suas mãos.
Cabe a Avril experenciar uma jornada por diferentes mundos para restaurar núcleos danificados e, com isso, reequilibrar a paz no universo. No caminho, além na inestimável parceria com uma amiga de longa data, Milla, ela enfrentará inimigos corrompidos, esbarrará em conflitos ancestrais de facções rivais e fará novas e inesperadas amizades, algo muito bem trabalhado por um roteiro sólido e bem amarrado, considerando um controle narrativo mais confortável por se provar uma experiência com um bom ritmo linear e bastante objetividade. O texto em si pode, em certos momentos, parecer um pouco superficial e infrutífero, caindo em várias ocasiões no estereótipo clássico da representação de adolescentes seja em termos de linguajar, seja no comportamento, mas felizmente nada que comprometa uma amarração segura e que cumpre a missão em encadear eventos e missões que nos levam a um final satisfatório.
As habilidades especiais da protagonista, ainda que contextualizadas nas primeiras duas horas do game, atendem mais do qur a qualquer outra coisa, a um modelo de gameplay que tem se tornado muito comum nos últimos anos, onde há a necessidade de se enfrentar inimigos em dois espectros dimensionais (ou algo similar) distintos. De produções populares como Sombras de Mordor até obras mais modestas, como o recente Soulstice, tem se pulverizada a ideia de se incorporar, de uma forma ou de outra, uma alternância de estados para enfrentamento de inimigos e mecanismos distintos. Dito isso, Avril é agraciada com a capacidade de poder se projetar na esfera física e na mental para superar seus desafios. Na primeira, se torna a portadora de uma imponente e avassaladora espada e na segunda se torna capaz de disparar projéteis de energia.
Para cada forma, um tipo de obstáculo. Não demora para que compreendamos que os inimigos pertencem também a essa dualidade de situações por meio de uma codificação visual bastante objetiva: enquanto alguns são identificados pela cor roxa, outros são destacados em um verde claro. E alguns deles, normalmente os mais poderosos ou até mesmo os chefes de fase, podem, como nós, pertencer a ambos os lados. Assim, sem nenhum segredo, na forma psíquica, somos mais eficientes contra os de mesma natureza e vice-versa, e normalmente cada nova horda que encontramos pelo caminho possui adversários variados que exigem a rápida alternância de estado.
Essa composição perpassa também a própria essência da personagem. Além das duas barras de vida, uma de cada cor (se algumas delas se exaurir, é morte certa), o jogo também determina estatísticas específicas para cada lado, e para alterá-las, há uma mecânica para que equipemos runas das mais diversas, algumas que melhoram um ou outro aspecto, ou até que melhoram algo de um lado em detrimento de um prejuízo do outro, o que favorece um alto grau de personalização. Há uma quantidade enorme de slots a serem preenchidos ao longo da campanha e cada mercador presente em vilarejos e outros pontos de hub tem seu estoque de itens, além de algumas delas serem parte da premiação por uma tarefa concluída ou até escondidas em alguns baús pelo cenário.
Tais runas, aliás, estão vinculadas a um sistema simples, mas bem efetivo de moralidade do jogo. Em certas ocasiões, somos impelidos a escolher entre uma alternativa que nos leva para o caminho da conquistadora, normalmente mais impositiva e sem misericórdia para com os outros povos, e outra para o lado da defensora, que tende a ser uma solução mais pacífica e apaziguadora. Cada vez que fazemos uma opção, temos como resultado uma consequência na história, que oferece algumas variantes pelo caminho, e também uma pontuação para usarmos com as tais runas. Há ainda aquelas que demandam uma pontuação mediana, imparcial. É compondo essas três vertentes que vamos moldando a nossa heroína.
Tudo isso parece um tanto confuso e meio complexo de se explicar, mas felizmente é de uma implementação muito simples no jogo. Como não há nenhum outro aspecto quanto a armaduras, armas ou outros itens equipáveis, este é o principal ponto a se dedicar tempo no planejamento e na (leve) busca por loot. Equipar e desequipar runas é tão claro como o cálculo de seus efeitos diretos em nossos atributos, e portanto Batora: Lost Heaven não perde tempo com isso. Aliás, enquanto uma proposta que se assume como um ARPG, esta construção é muito mais rasa que qualquer outra com a qual o jogo aparentemente poderia se assemelhar. Sim, até pelo ponto de vista isométrico, a referência óbvia é Diablo e suas infinitas inspirações, mas no final das contas, este jogo está muito mais próximo de um hack ‘em slash do que de qualquer outra coisa.
Próximo, mas nem tanto. Isso porque o modelo de combate fica também em um meio termo, com um botão de ataque básico, o uso do direcional direito para um ataque focal (algo que remete a sistemas twin-stick action, mas que nunca se aprofunda demais nisso), além de um indispensável movimento de esquiva e de algumas habilidades especiais desbloqueáveis e equipáveis, inclusive, por elas mesmas, as runas. POr fim, claro, há o botão para se alternar entre os já comentados estados físico e mental. Na prática, é um modelo de combo único e uma série de comandos com cooldown que, como consequência, oferecem pouca diversidade no combate.
Não é só de pancadaria que o game é feito, contudo. Com inspirações claras em jogos como Immortals Fenyx Rising, há certas passagens dentro de uma bolha dimensional compostas inteiramente por puzzles labirínticos. Basicamente, utilizam-se os dois estados possíveis para liberar o caminho seja para alcançar alguma relíquia, seja para chegar ao objetivo final daquele mundo, que invariavelmente é um daqueles chefes gigantescos e que elevam o nível da dificuldade. Tais quebra-cabeças (alguns também podem ser encontrados no mundo principal) nunca chegam a ser realmente enroscados e a maior complicação fica por conta de um sistema de direcionamento de ataques impreciso por conta do posicionamento de câmera.
Falando no game da Ubisoft, parece que não é só o modelo de puzzles que serviu de inspiração aqui, já que é possível notar similaridades também no estilo artístico, que flerta com modelagens que abusam de traços fortes e cores vivas com um bom uso de um cel shading para dar um aspecto mais cartunesco ao jogo, algo que lembra (guardadas as devidas proporções de escala de investimento) animações como a de League of Legends: Arcane e He-Man and the Masters of the Universe, ambas exibidas atualmente pela Netflix. O resultado são personagens, humanos e alienígenas, muito expressivos e carregados de identidade, além de cenários bonitos que, com alguns artifícios low poly para geração de partículas, conseguem um bom equilíbrio entre estilo e desempenho.
Considerando tudo isso, há de se compreender que Batora: Lost Heaven pareça ser um produto limitado e, se de certo modo parece óbvio que sim, a sensação é exatamente do oposto. Isso porque a possibilidade de se alternar entre dois estados e de se equipar diferentes habilidades para contextos diversos trazem uma variedade para a jogabilidade que se mostra suficiente para a proposta do game. Primeiro porque a campanha não é das mais longas, durando em torno das 8 a 9 horas, e segundo porque o que realmente acaba transparecendo uma certa insuficiência é o seu bestiário. Em outras palavras, como há tão poucos tipos de inimigos a se enfrentar, os recursos oferecidos são mais que o suficiente para superá-los. Pareço contraditório? Provavelmente.
Fato é que o modo minimalista como tudo o que o jogo propõe é implementado se mostra funcional e muito apropriado para o conjunto da produção. Não há exageros, não há ganância em criar algo megalomaníaco que depois será subaproveitado, o que valoriza aquilo que Batora: Lost Heaven realmente é: um jogo de ação honesto, focado em contar uma fábula heroica que se não é das mais originais, consegue envolver pela forma como constrói as relações entre seus personagens. Méritos para o sistema de escolha que, mais do que tantos outros jogos alardeados como narrativas interativas, realmente nos dá uma dimensão de causa e consequência. Escolher entre salvar ou não toda uma tribo selvagem parece uma decisão óbvia, mas nem sempre pode ser a com melhores resultados.
O que pode atrapalhar o jogo é a expectativa criada sobre ele quando se espera um RPG de ação com elementos de roguelite, porque no final das contas, à exceção da customização via runas e dos frequentes momentos com escolhas bifurcadas, há muito pouco do gênero aqui. Soma-se o design de níveis extremamente linear – no máximo, um vai-e-volta pelo caminho, mas nada que seja significativo a ponto de influenciar no conceito de jogo – uma campanha que se preocupa mais com o ritmo e com a história sendo contada do que com a exploração, e um modelo de combate competente, porém bastante simplificado, e temos um jogo de ação e aventura objetivo, com uma clara jornada de amadurecimento que trata de dualismos e escolhas, mas sem se levar a sério demais.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Team17.
Veredito
Batora: Lost Heaven não se propôe a desenvolver mecânicas sofisticadas ou um universo altamente explorável, mas se destaca pela simplicidade como implementa seus sistemas de progressão e customização, focando no desenvolvimento de uma ação linear e pautada por uma narrativa típica da jornada do herói.
Batora: Lost Heaven
Fabricante: Stormmind Games
Plataforma: PS4 / PS5
Gênero: RPG / Ação
Distribuidora: Team17
Lançamento: 20/10/2022
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Batora: Lost Heaven does not set out to develop sophisticated mechanics or a highly explorable universe, but stands out for the simplicity with which it implements its progression and customization systems, focusing on the development of a linear action guided by a typical hero’s journey narrative.