Talvez a única coisa mais difícil do que se tornar um ícone é ser o responsável por substituir esse ícone. Ou pelo menos é o que se costuma dizer quando um atleta ou treinador lendário é substituído. De certa forma, é algo que vemos bastante também em relação à videogames no que se refere a sequências de títulos marcantes em toda variedade possível de franquia.
Pense na expectativa em torno de um Final Fantasy VIII, logo após a excepcionalidade de Final Fantasy VI e o sucesso retumbante de Final Fantasy VII. Ou Metal Gear Solid 2 após Metal Gear Solid. Em uma escala (muito) menor, é um pouco do desafio posto para a série Atelier com o lançamento de Atelier Yumia: The Alchemist of Memories & the Envisioned Land.
Afinal, para uma série que sempre foi voltada para um pequeno grupo dentro de um nicho, a popularidade alcançada com a trilogia Secret, impulsionada pela carismática Ryza como protagonista, era algo sem precedentes. E o desafio posto com o novo jogo é tanto de reter esses novos fãs, mas levar a franquia para novas direções que a mantenham trazendo não só novas e confortantes experiências para os fãs, mas novas abordagens ao seu gameplay que consiga prover um frescor necessário após os últimos três jogos da série principal e, quem sabe, até trazer novos fãs também com Yumia (que parece ter saído da mesma escola de design responsável pelo carisma da Ryza).
Atelier Yumia: The Alchemist of Memories & the Envisioned Land coloca o jogador no controle, naturalmente, da protagonista Yumia Liessfeldt, a alquimista líder dessa nova subsérie. O jogo se passa no Aladissian Empire, um continente que viveu um longo período de prosperidade financeira e desenvolvimento graças ao seu domínio sobre o uso da alquimia, usando seu poder para se manter sempre à frente de outras nações.
Ocorre que essa mesma alquimia foi responsável por um misterioso cataclisma que pôs fim a esse período de domínio de Aladiss sobre o restante do continente, o que fez com que, ao longo do tempo, a alquimia passasse a ser vista não só como uma arte perigosa, mas algo muitas vezes visto como maligno. É nesse mundo muito mais sombrio do que as ensolaradas terras de Kurken Island no qual Yumia assume o seu papel.
Ela descobre, após perder sua mãe em um acidente alguns anos antes, que toda sua família é parte de uma longa linhagem de alquimistas que seguem praticando a misteriosa arte até os dias de hoje. Ela decide então partir em uma jornada para descobrir mais não só sobre o passado da sua família, mas a história por trás da queda de Aladiss, o que fez com que a alquimia passasse a ser vista como é e quais outros mistérios o continente caído esconde sobre o mundo.
É um conceito relativamente simples e familiar para os fãs da série, mas o que faz da história de Atelier Yumia digna de destaque é a forma como ela se desenvolve e é entregue. A ideia de explorar ruínas antigas para descobrir segredos há muito perdidos sobre o passado do mundo é um tema bem recorrente (central, inclusive, para a trama de Atelier Ryza, por exemplo), mas a forma como ele é abordado desta vez traz uma bem-vinda lufada de ar fresco para os fãs. O tema central do jogo é memória, algo que é explorado de várias formas e de forma bem satisfatória, com Yumia constantemente lembrando de ensinamentos da mãe e a exploração girando em torno muito de recuperar as memórias de Aladiss e do Império que ele já foi um dia.
Yumia é uma personagem mais séria e grande parte dos acontecimentos aqui tem um ar mais “sombrio”, dentro, é claro, do que a série entende como tal (o que não é tanto assim). É um pouco um retorno à forma como a trilogia Dusk via seu mundo, mas dessa vez dentro de uma roupagem de uma grande jornada que a franquia já havia tentado na trilogia Mysterious, especialmente Atelier Firis. Isso pode parecer um escopo bem distinto de influências, mas é um pouco como a série pegando muito do que funcionou nesses jogos, que são alguns dos meus preferidos da franquia, jogando esses elementos em um caldeirão e sintetizando algo ainda melhor.
Isso vem de elementos como o fato da energia vital das pessoas e criaturas serem parte essencial da ambientação. Em Aladiss, quando qualquer criatura morre, sua energia vital retorna para o mundo e Yumia, como alquimista, é capaz de ver e manipular essa mana de várias formas. E é justamente o mistério por trás da razão dela conseguir fazer isso, a própria natureza da alquimia nesse mundo e como isso afetou e afeta o planeta. De várias maneiras, é o jeito que o jogo tem de abordar temas relevantes no mundo real, como a exploração dos recursos naturais, canalizado através de magia. Não espere uma grande narrativa ou reflexão digna de, por exemplo, Final Fantasy VII sobre o tema, mas, para o que Atelier se propõe a fazer, ele faz isso surpreendentemente bem e é talvez a melhor narrativa central da série até aqui.
Outro ponto que merece muito destaque são os personagens, que geralmente são o grande destaque da franquia. Yumia ser uma protagonista tão distinta das mais recentes estrelas da série é uma escolha acertadíssima. Ela ainda tem a fofura e carisma inerente às protagonistas da série, mas ela tem uma visão de mundo um pouco mais centrada, algo que é refletido até na escolha de arma dela (uma mistura de bastão mágico de alquimista com um rifle). O tom mais leve aqui fica por conta dos seus companheiros, com Flammi, o assistente pessoal dela (meio que como uma inversão da dinâmica entre Sophie e Plachta), Rutger e Isla merecendo destaques especiais.
Dito isso, todo mundo tem um papel importante a exercer dentro do grupo, chamado de Aladiss Research Team, mesmo que cada um se encaixe em arquétipos específicos. A dinâmica entre os seis membros de campo é excepcional e há uma constante sensação de que, de fato, todos estão engajados na jornada, mesmo que a motivação por trás de cada um deles seja diferente (o que também é um ponto positivo). Cabe elogiar também o fato de que a dublagem em japonês e a qualidade da localização ajudam bastante a dar mais impacto aos acontecimentos do jogo, já que eles entregam bem a emoção de cada cena.
O último ponto que seria ótimo poder falar mais sobre mas que é difícil de tratar sem entrar em territórios sensíveis de spoilers são os antagonistas centrais da trama. Durante sua jornada, Yumia enfrenta um grupo liderado por um misterioso homem encapuzado extremamente poderoso que busca impedir que Yumia descubra qualquer coisa sobre o passado de Aladiss. Sob seu comando estão três misteriosas figuras animalescas antropomorfizadas que se demonstram não só inimigos formidáveis no campo de batalha, mas verdadeiras ameaças fora dele. É um grupo cujo mistério por trás ajuda a enriquecer muito a aura deles, mas que o jogo consegue demonstrar esse poder também através de ações, fazendo com que o caminho para transpô-los seja muito bem construído.
Falando sobre o gameplay agora, o sistema de alquimia, como já era de se esperar, foi totalmente modificado para essa nova jornada e a mana exerce um papel fundamental nele. Agora, além de ter a receita, o jogador precisa estar de posse de uma Alchemy Core, basicamente um ingrediente essencial, daquele item que ele quer criar. Cada receita tem três (ou cinco, após subir um pouco de nível) Cores e basta que o jogador tenha um deles para iniciar a síntese. A escolha dos elementos que vão compor esse Core é o que vai definir os Traits, Qualidade e Efeitos do item a ser criado.
Ao ativar um Alchemy Core, o jogador pode então incluir ingredientes nos Slots. Cada ingrediente tem uma área de ressonância e é aí que entra a mecânica mais importante da alquimia nesse jogo. Para criar itens melhores, o jogador precisa fazer com que não só os nodos de outros ingredientes estejam abarcados na sua área de ressonância, mas também os pontos de Mana que estão espalhados circulando pelo ar. Quanto mais mana acumulada e mais slots abarcados na sua síntese, mais poderoso vai ser o seu item.
Outro ponto em que a mana é importante é no desbloqueio de novas receitas. Basicamente, isso é feito através da história, localizando Memory Vials durante a exploração ou através de partículas de mana que vão sendo conquistadas ao explorar o mundo e encontrando Mana Geysers. O jogador pode então acessar o Recipe Recall Stations para gastar esses pontos para desbloquear novas receitas ou, juntamente com os ingredientes necessários, melhorar receitas já existentes, conseguindo assim mais efeitos e outros benefícios para itens sintetizados.
A síntese agora também pode ser feita durante a exploração através de um sistema conhecido como Simple Synthesis. Basicamente, Yumia pode usar materiais e Mana Energy para criar alguns itens que vão ser necessários em campo, como munição para a arma dela, bandagens para recuperar energia, bombas de fumaça para fugir do combate e vários outros. Cada um desses itens ocupa espaço na Exploration Bag da Yumia e a gestão de inventário é necessária aqui (pense na bolsa ou maleta do Leon em Resident Evil 2 e 4 Remake), mas é uma ferramenta bem útil e que quebra a necessidade de estar sempre retornando para o seu atelier para produzir novos itens.
Isso é algo bem importante porque a exploração é, realmente, uma parte muito, muito importante desse jogo. Os mapas são ainda maiores do que os vistos em Atelier Ryza 3 e, consequentemente, Yumia tem ao seu dispor ainda mais ferramentas para essa exploração. Ela tem um super-pulo e pulo duplo, que pode ser feito usando uma parede, pode atirar em certos locais para desbloquear formas de acessar novas áreas (ou escanear inimigos), além de uma moto, eventualmente, para explorar as áreas mais rápido.
Para fazer tudo isso, Yumia vai precisar, como você já deve imaginar, de Mana e para tal ela é equipada com um item chamado Energy Core que é capaz de armazenar Mana que pode ser usada para ativar todas essas gimmicks e outras Energy Actions (o mapa é repleto de ferramentas de movimentação à disposição do jogador) ou explorar regiões chamadas de Manabound Areas, locais onde a mana se tornou estagnada e só a Yumia pode, protegida pela sua Energy Core (que vai aos poucos sendo esgotada), encontrar os Circulators no centro dessas áreas para limpá-las e torná-las exploráveis para o resto do Research Team.
É um sistema bem interessante, no geral, e faz com que a jornada como um todo tenha uma constante sensação de progresso e movimento, ao invés do constante ritmo de pegar uma missão, fazer algo, retornar à base, completar a missão e iniciar uma nova missão que dava aquele ar de familiaridade à série. Esse dinamismo é muito bem-vindo aqui e é visto também no fato de que os seus aliados constantemente irão trazer novas missões durante a exploração mesmo, geralmente envolvendo coletar certos ingredientes, explorar um certo local ou derrotar determinado inimigo, mas que ajuda a passar essa ideia de estar pulando para novas aventuras o tempo todo, algo que também é exacerbado pela quantidade de locais a explorar.
O sistema mais simples e talvez “descartável” (ainda que funcione bem dentro da sua proposta) é o sistema de construção. Ao chegar em certas landmarks, Yumia pode construir um novo atelier que servirá de base de operações naquela região. Essa nova base, que tem até um nível de conforto que afeta a recuperação do grupo, não só permite que novos mercadores do ART abrirem lojas e desbloquear novas missões, mas permite que ela entre em um menu de Building e personalize seu atelier dentro de uma certa área disponível.
Basicamente, o jogador pode usar uma mesa de trabalho (que pode ser sintetizada) para construir novos itens usando diferentes Blueprints espalhados ao redor do mundo e com isso construir vários itens usando ingredientes. Eles vão de Energy Generators, que podem ser usados para recuperar mana, à itens de decoração, cada qual com suas próprias vantagens, e permitem ao jogador criar sua própria base como bem preferir. É uma evolução de um sistema de personalização que a série já vinha brincando com desde a trilogia anterior e é provável que jogadores mais afeitos a esses sistemas o aproveitem mais, mas como alguém que não liga muito, tudo foi feito na base do que era mais prático e necessário ao longo da jornada e funcionou.
Por derradeiro, sobre o combate, ele é ainda mais próximo de um RPG de Ação, ainda que não seja exatamente um. Pense em algo similar a Final Fantasy VII Remake/Rebirth ou o próprio Atelier Ryza 3. Aqui, você terá um grupo ativo de três personagens (com outros três de suporte), podendo trocar livremente entre eles. Cada personagem pode até quatro ataques para cada um dos quatro botões de face e atacar a partir daí. Ao usar um ataque, no entanto, há um pequeno cooldown daquela habilidade, então não é possível só spammar seus ataques mais fortes o tempo todo.
O elemento mais tático fica por parte do sistema de círculo do combate. O que isso significa é que os personagens ficam dispostos dentro do círculo interno ou externo, podendo alternar de um pro outro, o que significa que suas habilidades de combate também mudarão com isso. No círculo interno, você usará ataques físicos, enquanto no externo, ataques mágicos. Cada inimigo tem um contador de stun que é reduzido com um dos dois tipos de ataque, além de fraquezas elementais que só podem podem ser exploradas após o stun, seja com itens (mapeados para R1+botão de face) ou habilidades elementais. Você terá ainda ainda acesso a Friend Actions, uma habilidade de ataque em conjunto com um dos seus aliados que é ativada ao alcançar certas condições em combate.
O jogador precisa ainda estar atento à área de efeito dos ataques inimigos, já que você pode se defender, se esquivar de ataques diretos, incluindo uma nova mecânica chamada Precision Counter que é ativada ao esquivar e trocar de personagem e que causa muito dano, ou até fugir para fora da área de efeito, seja mudando de círculo ou andando lateralmente para uma zona segura. A esquiva e defesa perfeitas ajudam a subir o Battle Rate, um medidor que, quanto mais cheio, mais ele acelera o cooldown dos seus ataques, te permitindo agir cada vez mais.
É um sistema de combate muito divertido, mas que só acaba se tornando cansativo e repetitivo por um sistema meio confuso. Basicamente, ao entrar em combate, há uma curta transição para uma “área de batalha”, ainda que seja dentro do mapa que você está explorando. Isso faz com que todo o restante ao seu redor desapareça, o que não seria um problema, se não fosse pelo fato de que, mesmo que seus inimigos estejam em grupos grandes, nem sempre você entre em batalha com todo esse grupo, os chamados Rumble Encounters. É muito mais comum entrar em rápidas batalhas individuais chamadas Split Encounters, o que faz com que, muitas vezes, você precise enfrentar grandes grupos de inimigos um a um, todos com sua própria transição que, mesmo que seja rápida, torna o processo de batalha mais cansativo que deveria ser, especialmente graças à grande quantidade de inimigos no mapa.
Uma outra reclamação é que um dos sistemas mais interessantes, o Mana Surge, que é basicamente um medidor que vai sendo preenchido ao usar itens e melhora as habilidades dos personagens ao ser ativado e dá acesso a um ataque especial muito poderoso, só fica disponível após o nível 50, já bem avançado na história. E o sistema de progressão em si, apesar de bem vasto, acaba sendo relativamente simples e bem direto, sem muita customização, algo tão presente em outros elementos do jogo. São pequenas reclamações, mas válidas considerando o esforço do jogo para evoluir vários dos seus sistemas.
Dito isso, se você é um fã de longa data ou um novo interessado, Atelier Yumia: The Alchemist of Memories & the Envisioned Land é mais um grande acerto da série em sua jornada para se consolidar como um dos grandes nomes do segundo escalão dos JRPGs. A trilha sonora é, novamente, excepcional, o jogo é visualmente, dentro das já esperadas limitações de orçamento, bem agradável aos olhos no PS5 e o jogo entrega uma performance bem satisfatória.
O grande destaque, como era de se esperar, fica realmente por conta da ótima narrativa que segue numa nova direção, evitando as já esperadas comparações com a trilogia passada, além do ótimo novo grupo de personagens, além do novo sistema de síntese que consegue entregar algo novo e bem legal dentro dos conceitos que ele busca entregar.
O único passo em falso fica por conta do combate, mas mesmo ele tem muito a se aproveitar e curtir, fazendo com que, no todo, Atelier Yumia: The Alchemist of Memories & the Envisioned Land seja um ótimo primeiro passo nessa nova subsérie daquela que, pouco a pouco, vai se consolidando como, não só uma das minhas favoritas, mas certamente uma das mais consistentes franquias de JRPGs da atualidade.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Koei Tecmo.