Ao longo da geração passada, foi construída uma narrativa de que a “era dos JRPGs” já havia passado e o gênero estava “morto” (algo que tem servido para alimentar a discussão sobre o “renascimento” do gênero nesta geração, algo bem-vindo mas não tão real). Muito disso se deu pelo lançamento de jogos das grandes franquias com recepção menos favorável pelo público e pela falta de iniciativa dos “jornalistas especializados” em fugir desses nomes para encontrar onde as verdadeiras jóias da geração passada se encontravam.
Uma das franquias que acabaram não recebendo o reconhecimento que merece é a histórica série The Legend of Heroes, também conhecida como a série Trails/Kiseki, um dos principais pilares da Nihon Falcom, que teve seu primeiro jogo lançado ainda nos anos 80, mas que se tornou mais popular no Ocidente com o lançamento da fantástica sub-série Trails in the Sky para o PlayStation Portable.
The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel, o primeiro jogo da sub-série mais recente da franquia, lançado originalmente para PlayStation 3 e PlayStation Vita em 2015 no Ocidente e em 2013 no Japão, é um dos melhores exemplos recentes de como lançar um JRPG clássico, sabendo como modernizá-lo em alguns pontos necessários. O jogo chega agora ao PlayStation 4 para não só adicionar mais uma camada de beleza ao jogo que agora conta com resolução em 4K no PS4 Pro, mas algumas micro-adições que melhoram muito a qualidade de vida do jogador.
ToCS é o primeiro capítulo da história dos membros da chamada ”Class VII”, uma turma especial de alunos da Thors Military Academy criada para testar uma tecnologia nova e formar uma equipe de soldados especiais e mais preparados para lidar com eventuais conflitos que venham a envolver o Erebonian Empire. A história é contada do ponto de vista de Rean Schwarzer, um jovem espadachim através do qual o jogador interage com os seus colegas de classe e demais personagens desse mundo.
O mundo e a história, aliás, são o grande chamariz de Trails of Cold Steel. Por mais que a história seja ainda melhor para quem já está ambientado com esse universo (os jogos mais recentes da franquia dividem o mesmo mundo, mesmo se passando no geral em continentes e momentos na história diferentes), já que o jogo se passa após os acontecimentos de Trails in the Sky e simultaneamente ao arco Crossbell (que ainda não foi localizado), ele faz um ótimo trabalho em lhe apresentar aos poucos todas as informações relevantes para a história, sem intimidar o jogador com o grande volume de coisas da lore que existem nesse mundo.
Da maneira como a academia e as diferentes partes dela e da cidade que a cerca são introduzidas ao jogador, com personagens relevantes para o conflito central do jogo sendo pouco à pouco colocados em evidência e desenvolvidos quase sempre da melhor maneira possível. Um exemplo disso é a forma como as tensões geradas pelo sistema de castas existentes em Erebonia (e que é algo central para todo o plot do jogo) é aos poucos apresentado ao jogador.
Erebonia é um império dividido em um sistema com duas classes: os nobres e os plebeus. No geral, toda a política e governo de Erebonia é controlado pelos nobres, com algumas pequenas vozes dissidentes vistas como reformistas lutando por um governo que se preocupe mais com o bem-estar dos plebeus. O conflito entre essas facções naturalmente se estende para a Thors Military Academy, já que as divisões aplicadas na sociedade para evitar que ambas as castas se misturem também estão presentes nela, com as Classes I e II sendo para a nobreza e as Classes III, IV e V para os plebeus.
Esse é mais um dos grandes diferenciais da Class VII, já que existem tanto nobres quanto plebeus, sem que os professores façam qualquer distinção entre isso, pois o mais importante é a habilidade de cada um. Isso força com que várias pessoas ideologias e visões de mundo distintas sejam forçadas a conviver e, principalmente, a aprender a confiar uns nos outros, já que um dos principais pontos da Class VII é testar os novos Arcus Units, um equipamento capaz de permitir que os soldados lutem em perfeita sincronia no campo de batalha, sentindo e prevendo detalhadamente cada movimento dos seus companheiros.
O jogo se passa ao longo do primeiro ano escolar da Class VII, com o jogador os guiando ao longo de várias expedições ao redor do Império, cujo objetivo é permitir que os membros conheçam a realidade das várias facetas dele, os expondo as experiências de vida completamente diferentes de cada, permitindo o crescimento e amadurecimento dos personagens, além de apresentar aos poucos o porque cada um dos membros foi escolhido para ela.
É difícil entrar no mérito geral da história sem dar grandes spoilers, mas, se você se interessa por intrigas políticas, com uma história bem desenvolvida e com um propósito claro, com um toque mais leve de anime, sem focar em fanservice ou outras características que afastam os jogadores de vários JRPGs modernos, Trails of Cold Steel é um jogo perfeito pra você, mesmo que termine em uma espécie de cliffhanger, já que os quatro jogos da sub-série são todos ligados entre si.
Uma grande qualidade do roteiro é que é possível sentir os personagens evoluindo pouco a pouco do seu início quase como bases clichê de anime, incluindo a forma como o background dos personagens é trabalhado e incorporado a história meticulosamente, sendo o seu desenvolvimento um dos principais méritos dele, ainda mais considerando o quão grande o elenco de personagens é, conseguir desenvolver todos é muito impressionante, por mais que isso não seja tão profundo quanto jogos com elencos menores (como em Trails in the Sky, por exemplo).
Há, inclusive, um sistema bem similar aos Social Links da série Persona chamado de Link System, sendo possível ganhar Bonding Points e participar em Bonding Events para estreitar as relações do Rean com vários personagens do jogo. Isso pode parecer mais um clichê, considerando a ambientação escolar e tudo, mas Trails realmente desenvolve todos esses momentos como poucos jogos o fazem, fazendo com que cada diálogo e cada evento valha a pena.
Todos esses sistemas, naturalmente, levam a um dos grandes pontos altos que é o seu combate. O jogador explora os diferentes mapas do jogo (não se trata de um mundo aberto) e pode interagir com ele, inclusive, com os inimigos que estão localizados nas áreas, sendo possível escolher quando se vai entrar em uma luta ou não. Quando ver um inimigo, o jogador pode simplesmente correr até ele e encostar para iniciar o combate ou usar um ataque preventivo que pode ativar alguns bônus durante a batalha.
Quando em batalha em si, o que temos é um sistema por turnos bem clássico. As equipes são compostas por até quatro personagens ao mesmo tempo, dispostos em mini-arenas, sendo possível (e necessário) se movimentar por elas. Você pode escolher entre ataques simples, usar itens, Arts, que são as magias do jogo e consomem EP, e Craft Skills, habilidades especiais de cada personagem que consomem a barra da CP (que, diferente das outras, é preenchida durante o combate). O posicionamento se torna importante por causa delas, já que muitos dos ataques especiais tem efeito de área (tanto para dano quanto para buff/debuff), e os ataques só podem ser realizados dentro do círculo de alcance de cada personagem.
O principal efeito do Link System também é sentido no campo. Quanto mais estreito forem os laços entre os personagens, mais poderosos eles se tornam em combate juntos. Se no início esse sistema permite ataques simultâneos, logos vários bônus são dados entre os personagens e você sente a evolução da história e das relações entre os membros da Class VII refletindo nas batalhas. Todos esses sistemas, casados com coisas tradicionais como saber explorar as vulnerabilidades dos inimigos e o que já se espera do gênero, além de um equilíbrio muito bem alcançado entre desafio e agilidade que evita que as lutas em algum momento sejam entediantes, torna o sistema de batalha do jogo uma versão muito melhorada e modernizada de um combate por turnos.
E, mesmo caso o jogador sinta isso, a versão de PS4 traz um Turbo Mode que, com o toque de um simples botão, coloca tudo com o dobro da velocidade, fazendo com que a exploração dos mapas em especial seja ainda mais ágil, mesmo que, por ter sido um jogo desenvolvido com o Vita em mente, muitos dos andares sejam consideravelmente curtos. A versão para PS4 também resolve muitos dos problemas de loading que o jogo possuía em suas versões anteriores, rodando muito bem no console mais recente da Sony. O maior problema talvez seja que, ao contrário do que acontecia na versão de Vita, às vezes o texto nas caixas de diálogo é grande demais, mesmo quando não se está tentando passar a impressão de um personagem estar gritando.
Os gráficos do jogo estão, naturalmente, mais bonitos pelo simples fato de estar em full HD, mas isso não esconde o fato de que, inevitavelmente, os modelos dos personagens não tem nada de muito especial. Enquanto as artes 2D que são utilizadas em vários momentos são muito bonitas, os ambientes 3D e os personagens em si são no máximo adequados, sofrendo com a clara limitação de orçamento que o jogo original possuía. Óbvio que, por mais que gráficos mais bonitos seriam mais um ponto positivo, é inegável que a altíssima qualidade da história e do gameplay são muito mais importantes e mais do que compensam o visual mediano.
Felizmente, isso não se estende a trilha sonora do jogo que é incrível e entretém o jogador mesmo por longas horas de jogo. Algo que é importante destacar é que esse lançamento para PS4 traz algumas novidades aqui também, com mais de 5.000 linhas de diálogo dublado em inglês que só estavam presentes na versão de PC adicionadas a versão de PS4 e finalmente a possibilidade de se jogar com a dublagem original em japonês, servindo como mais um chamariz para os fãs que já possam ter jogado no PS3/Vita e se sentirem tentados a jogar novamente, podendo, inclusive, importar os seus saves dessas versões para a atual sem qualquer problema.
Quando se considera que o ponto mais fraco de um jogo é o seu visual, algo que, no grande contexto das coisas nem é tão importante assim, fica claro que Trails of Cold Steel não é só um “bom” jogo, mas sim um dos melhores RPGs lançados para o Vita/PS3 e que finalmente chega ao PS4, sendo uma ótima oportunidade para os fãs do gênero que podem ter deixado ele passar batido darem uma chance a esse que é o primeiro capítulo de uma das melhores sub-séries da história dos JRPGs.
Veredito
The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel é um dos melhores RPGs dos últimos anos, com uma história incrível e personagens muito bem desenvolvidos, além de contar com um ótimo sistema de combate, sendo essa a chance perfeita para não deixar esse jogo maravilhoso passar batido.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela XSEED Games.
Veredito
Veredict
The Legend of Heroes: Trails of Cold Steel is one of the best RPGs of the last few years, with an amazing story and very well-developed characters, as well as a great combat system, being this the perfect chance to not let this marvelous game goes by unnoticed.