A jornada em busca do desconhecido, do exótico, do novo, sempre foi um tema que trouxe o conflito entre o fascínio e o medo para a humanidade desde os tempos mais imemoriais de nossa história. Não à toa, é uma temática que permeia não só a narrativa de nossos feitos mais heroicos, como também do nosso imaginário, do nosso faz-de-conta. Das mais célebres obras de ficção, que vão desde A Odisseia (Homero, séc VIII a.C.) à Viagem ao Centro da Terra (Júlio Verne, 1864); de Star Trek (Gene Roddenberry, 1966) a Viagem à Lua (Georges Méliès, 1902); às mais simples e corriqueiras, o mistério além da fronteira é sempre fato que alimenta nossas maiores curiosidades.
Não faltam obras também dentro do universo dos videogames que abordam esse tema e Journey to the Savage Planet bebe desta fonte, trazendo consigo algumas de suas mais clássicas indagações, conflitos mais instigantes e, claro, uma verdadeira jornada muito mais de descobrimento e desenvolvimento do próprio protagonista do que do mundo de onde se quer saber mais. Felizmente, o jogo vai muito além dos clichês do gênero e consegue entregar uma aventura com muito frescor, desafio bem equilibrado e doses cavalares de um humor ácido que se parece muito com uma sátira de Monty Python.
Mas calma, vamos por partes: Journey to the Savage Planet nos coloca na pele de um funcionário novato da Kindred Aerospace, orgulhosa de seu status de quarta maior empresa de exploração espacial do universo. Enviado como parte de um projeto de expansão e busca por novos recursos e até planetas habitáveis, nosso herói acorda em AR-Y 26 e logo de cara descobre que não dispõe de muitos recursos e ferramentas, nem de combustível para retornar à Terra. A exceção é um estoque infinito de Grobe, um composto, digamos, bastante eclético. Não tem como explicar melhor e os primeiros minutos do nosso gameplay (no topo deste texto) é a melhor forma de entender esse negócio. Imperdível.
Sua missão, portanto, é buscar pelos recursos deste lugar desconhecido e, sozinho (ou com um companheiro de exploração), encontrar um jeito de voltar para casa. Uma trama padrão, contada a partir de vídeos em live action que vão sendo enviados conforme o jogador avança nas missões propostas, e que vai ganhando contornos cada vez mais bizarros, com direito a conspirações e descobertas surpreendentes, das quais é melhor não falar muito mais para não estragar surpresas. Contudo, o contraste entre o que vem da Terra e o que encontramos em AR-Y 26 vai nos colocando na cabeça uma certa dúvida sobre o quanto desejamos cumprir esses objetivos inicialmente propostos.
Importante compreender, no aspecto narrativo, que o jogo é uma proposta solitária, onde tudo o que precisamos saber se dá por meio de mensagens gravadas – em texto ou vídeo – que recebemos da empresa para a qual trabalhamos. Documentos e cenas são muito bem organizados, com uma linguagem divertida e menos protocolar do que outros exemplos de mundos que se apresentam por meio de informações deixadas por NPCs. O subtexto é parte fundamental da trama, conferindo-lhe uma personalidade bastante peculiar e oferecendo uma substância pouco vista em jogos do gênero.
Bem… tudo isso é parte da introdução do jogo antes mesmo de sairmos da nave. No momento em que pisamos no tal planeta AR-Y 26 o mundo a nossa volta nos parece bem familiar, e completamente bizarro ao mesmo tempo. É um ambiente essencialmente selvagem e, com um ritmo crescente, as vezes hostil, que precisa ser desbravado. Se é verdade que não temos nem uma vareta para começar a caminhada, a impressora 3D que convenientemente imprime uma diversidade grande de utensílios logo nos garante uma pistola para nos defender e apetrechos para facilitar a locomoção, criando uma base para assim, coletarmos itens, metais e outros compostos necessários.
Em grande parte do tempo, o jogo vai funcionar como um shooter em primeira pessoa, mas logo evidencia que não é bem esse o foco da experiência, trazendo elementos de crafting, plataforma e exploração. Será necessário analisar cada item da flora e da fauna deste planeta desconhecido para compreende-lo, bem como desenvolver novas ferramentas e, assim, explorá-lo em sua plenitude. São dezenas de animais, dos mais amistosos aos mais agressivos (o mesmo vale para plantas e outros seres vivos) que contam um pouco mais da história daquele lugar, tornando-o de fato intenso e cheio de possibilidades. Cavernas, penhascos, pântanos, geleiras, florestas densas e outros ambientes criam um ecossistema bastante colorido e complexo para se conhecer.
Ainda que seja um jogo pautado pela exploração relativamente livre, o jogo não chega a apresentar um mundo completamente aberto, muito menos se configura como um sandbox. Diferente de No Man’s Sky, por exemplo, há um roteiro com missões mais amarradas ao desenvolvimento da trama. Alcançar certos espaços depende de uma progressão muito bem engendrada com a criação de itens para escalada, salto duplo e tudo mais. E para isso funcionar bem, há um dos maiores trunfos da produção: o level design é afiadíssimo e consegue ser muito bem estruturado para funcionar organicamente, sem apelar para elementos baratos para barrar ou liberar acesso a áreas específicas.
Tampouco é um game linear. Com poucas horas de imersão é perfeitamente possível esquecer completamente que há missões determinadas a se cumprir e logo começar a se desafiar a alcançar certo ponto no mapa, ou vencer algum tipo de chefão. O jogo não aprofunda questões de evolução de personagem, nível de inimigos ou coisas do gênero, o que significa que enfrentar inimigos que surgirem é uma decisão muito mais de disposição do que qualquer outra coisa. Em outras palavras, Journey to the Savage Planet sabe dosar muito bem as questões de exploração sem forçar ambientes gigantescos e esvaziados ou árvores de habilidades demasiadamente complexas, bem como o andamento narrativo sem amarrar demais as opções do jogador, equilíbrio que mesmo games de grande orçamento sofrem em alcançar.
Tudo isso se soma a um trabalho artístico muito genuíno, que abusa das cores e da saturação sem sutilezas e meios tons. Talvez a definição mais adequada para AR-Y 26 seja intensidade. É um mundo vivo e sem receio de usar tonalidades quentes em abundância, e mesmo nos ambientes gélidos, lida bem com nuances vibrantes. Os sistemas de luz e sombra evidenciam e potencializam essa vivacidade e a sensação é estar em meio a uma floresta tropical nativa estilizada, mas ainda assim palpável. Ainda que o horizonte, por vezes, pareça distante demais, o ambiente é estranhamente aconchegante, sensação que se quebra momentaneamente ou em eventuais lutas contra chefes, uma ou outra horda de inimigos ou com os vídeos alucinados que vem da Terra.
Por sua vez, a construção sonora se apoia na ambiência selvagem, em consonância com os elementos tecnológicos que trazemos conosco. Há um tom futurista clichê nos efeitos como tiros, portas se abrindo ou teletransporte que se mistura com sons de pássaros, vento soprando e aquela mescla de insetos e folhas se mexendo mais convencional. A música, sempre muito calma e incidental, surge em momentos específicos de forma bastante discreta, exaltando a sensação de solidão e de isolamento daquele lugar. A soma é um trabalho estético que sabe lidar com a contemplação, com o ritmo do jogador e, deste modo, valoriza os picos de ação, quando estes surgem.
A experiência do solidão ganha contornos mais sofisticados quando o game é jogado em parceria com outro explorador. Afinal, a colaboração e o compartilhamento de recursos se torna algo bem valoroso e que acrescenta uma camada que quebra o silêncio natural daquele mundo. Logo, o jogo não se torna necessariamente mais fácil – uma vez que a dificuldade, se assim podemos dizer, está muito mais na forma como adentramos em AR-Y 26 do que nas batalhas – mas certamente se torna ainda mais imersivo na medida em que a sensação de descoberta colaborativa cria uma dinâmica onde o clássico “duas cabeças funcionam melhor do que uma” faz todo sentido (a não ser para uma certa criatura medrosa que vemos vez ou outra durante o jogo).
Em resumo, Journey to the Savage Planet é muito mais sobre a “jornada” do que sobre o “selvagem”. A experiência da exploração e da catalogação de espécimes de plantas e animais pode soar (com um certo preconceito) como algo enfadonho e já abordado em outros jogos similares. Um dos grandes trunfos do game, contudo, é saber muito bem lidar com essa estrutura de progressão sem parecer superficial ou alongado demais. É uma jornada de algumas boas horas de descoberta, com 4 biomas diferentes entre si (e algumas variações de ambientes, como cavernas, construções e outros pontos de interesse) e mais de 30 criaturas – mesmo que algumas sejam variações dos mesmos simpáticos bafarinhos.
No fim, há ainda o grande mérito do jogo não nos deixar desgarrar tanto assim da narrativa que compõe o background desse universo, trazendo algumas surpresas bem instigantes, não só pelas descobertas no ambiente, que não é bem tão virgem assim, nem pelas mensagens cheias de mistérios que vão chegando pelo sistema de comunicação da sua nave. Há muito mais nesse estranho planeta que nos move a ir adiante, algo que, confesso, não esperava antes de conhecer o projeto a fundo. Ainda que não se pretenda um grande épico espacial com questionamentos filosóficos na linha de Interstellar, Planeta dos Macacos e 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Journey to the Savage Planet guarda suas surpresas e, quem sabe, entrega seus questionamentos. Uma ótima surpresa de 2020.
Veredito
Journey to the Savage Planet é uma experiência de descoberta muito agradável e intrigante, equilibrado e com um humor bastante particular. Visualmente cativante, o jogo sabe dosar momentos de ação com plataforma e seu sistema de crafting incentiva a exploração sem forçar uma repetição cansativa e, somada a tudo isso, uma história leve e muito bem contada. Recomendadíssimo.
Jogo analisado no PS4 padrão com código fornecido pela 505 Games.
Veredito
Veredict
Journey to the Savage Planet is a very pleasant and intriguing discovery experience, balanced and with a very particular mood. Visually captivating, the game knows how to dose moments of action with platforming, and its crafting system encourages exploration without forcing a tiring repetition and, added to all this, a light and very well told story.