Meu primeiro encontro com as investigações do detetive particular Edward Carnby foi acontecer só no quarto título da franquia, ainda no PSOne no começo do século. Lá se vão mais de 20 anos desde o lançamento de Alone in the Dark: The New Nightmare, título que, pelo prisma das revistas e fontes escassas da época, parecia tentar pegar uma boa carona na popularidade alcançada por Resident Evil não só pela temática de terror, mas principalmente pela ambientação, sistema de câmeras, combate e gerenciamento de inventário. Eu ainda não sabia que este era, na verdade, o retorno do precursor do gênero que consagrou Jill, Chris e Leon, para jogos que simplesmente estabeleceram os parâmetros do formato que, até hoje, mantem uma legião de fãs ávidos por cada novo lançamento.
Décadas e tentativas frustradas de retomada da marca depois, eis que Alone in the Dark busca um novo reinício, coincidentemente (ou não) pegando a esteira de remakes dos mesmos jogos clássicos de survivor horror que sedimentaram o conceito do gênero, trabalhando com um sistemas de exploração, narrativa e combate similares ao seu principal referencial. Ainda que pouco tenha se vendido assim, este jogo é uma reinterpretação, um remake cheio de liberdades criativas por assim dizer, da aventura original lançada em 1992, trazendo Carnby ao lado de Emily Hartwood, sua contratante e co-protagonista do título, investigando o desaparecimento de um parente da moça, Jeremy Hartwood, o que os leva a uma mansão um tanto quanto complicada, um refúgio para pessoas com distúrbios mentais conhecida como Derceto.
Não demora até que ambos percebam que este não se trata de um sumiço corriqueiro, e o contato com os estranhos moradores do local dá algumas pistas de que há coisas ainda mais nefastas acontecendo. Jeremy é uma pessoa absolutamente perturbada, e as pistas que os heróis encontram pela casa os levam aos lugares mais longínquos e profundos da mente e do espírito do pobre rapaz. Alone in the Dark pode se parecer, na casca, com Resident Evil, mas é em Silent Hill, e para os mais novos, no recente The Medium, onde a sua essência parece ter buscado algumas das mais importantes ideias desenvolvidas ao longo da campanha. Isso porque há duas grandes dimensões pelas quais iremos navegar, uma delas naquilo que convencionamos chamar de mundo real, e a outra, nos sonhos e devaneios de Jeremy.
Investigar as pistas, das mais sutis àquelas nem tanto, é algo que nos impele a explorar esta casa cheia de portas trancadas, passagens secretas e atalhos subterrâneos, cuja tensão se apoia em um clima noir de época onde tudo é esquisito, mas não necessariamente perigoso. São passagens de mais atenção, solução de enigmas e puzzles, e exploração cadenciada com algum backtracking que os fãs de jogos desse estilo adoram. Em pontos-chave da trama onde utilizamos uma espécie de amuleto para descobrir o código para um espaço sobrenatural diretamente vinculado à mente inquietamente corrompida do nosso investigado, a coisa se complica, abrindo espaço para aberrações assustadoras, lugares inesperados e corredores sombrios. No escuro sim, quase sempre, mas poucas vezes, sozinho.
Cada vez mais frequentes conforme avançamos na trama, esses momentos do outro lado trazem um pouco mais de linearidade e um modelo de combate bastante sólido. Atiramos com nosso calibre .38 bastante eficiente, e depois encontramos outras armas coerentes historicamente, como a escopeta e uma metralhadora, ambas bem úteis quando a coisa fica mais intensa. Além disso, podemos ainda nos apropriar de tijolos e garrafas molotov espalhadas pelo cenário – e sim, você sabe de onde vem a inspiração para isso – para melhorar a nossa preparação diante hordas e inimigos mais fortes, que se são pouco justificadas diegeticamente no cenário, são estrategicamente colocados para nos dar algumas vantagens imprescindíveis. E para os mais frios e calculistas, ainda é possível se esgueirar no bom e velho movimento stealth. Se o mostro não te percebe, não pode te atacar, certo?
Seja qual for o personagem escolhido, você ainda conta com um espaço para uma arma de uso corpo-a-corpo, como marretas, pás, canos ou remos quebrados, e por fim, um slot específico para item de cura, que nada mais é do que uma boa dose alcoólica para manter todo o clima de meio do século passado. Com a possibilidade do combate a distância ou mais próximo, nada mais útil que um comando de esquiva para desviar dos agressores, e mesmo com a movimentação um pouco mais desengonçada que jogos de ação frenéticos, algo que faz muito sentido visto que nossos protagonistas não são exatamente exímios atletas, o game é muito competente em, sem complicar demais, nos dar subsídios para sobreviver até o fim.
São poucos os suprimentos disponíveis, sobretudo na dificuldade mais elevada, mas se o jogador tiver isso em mente, não ficará indefeso em momento algum. Alone in the Dark não nos dá uma árvore de habilidades, ou mesmo um inventário limitado para cuidar, o que não significa que não precisemos cuidar dos poucos recursos que temos, como cura e munição. O game, porém, evita compartilhar os mesmos espaços para componentes de batalha, como armas e balas, com itens de missão, como peças, chaves e engrenagens. São dois locais diferentes onde essas coisas ficam armazenadas, e normalmente serão poucos os materiais que se acumulam antes de utilizá-los. Por mais que se aproveite de elaborados quebra-cabeças, eles normalmente são mais diretos e demandam mais raciocínio que coleta.
Isso significa que tem pouca coisa para se pegar pelo ambiente? Ao contrário. Além desses itens, temos uma série de documentos que nos ajudam a entender o contexto desses lugares, alguns cheios de dicas para a solução de problemas; e uma quantidade bem razoável de colecionáveis, artefatos que também ajudam a contar a história deste universo cheio de meandros instigantes. Para quem gosta de revirar cada cantinho do cenário atrás de coletáveis, posso dizer que há aqui um prato cheio. E quem for mais dedicado a um formato clássico, é possível complicar a vida conscientemente desligando, logo de largada, o sensor que destaca coisas interativas, o que nos obriga a procurar e experimentar ainda mais para achar tudo o que o game tem a oferecer.
Tudo isso é bem valorizado por um level design inteligente. Se as passagens únicas nos devaneios de Jeremy tem seus momentos de exploração, mas são via de regra mais lineares, o próprio leiaute da casa principal é bem formatado para que, mesmo quando perdidos, seja intuitivo entendermos onde buscar saídas. A descrição das missões evita floreios e também é de grande ajuda quando somado ao mapa que lembra os melhores exemplos do gênero. Nada aqui, seja na navegação, seja no combate, é muito inventivo ou particularmente inovador, e provavelmente não tem nenhuma aspiração no aspecto da originalidade, mas se apropria do que já comprovadamente funciona, e não sofistica demais o que não precisa.
Ainda assim, há muito espaço para surpresas. Você está esperando por uma casa com quartos de crianças com brinquedos macabros? Escadarias tortuosas? Porões mal iluminados? Sim, está tudo lá. Mas há outras ambientações extremamente inesperadas que mudam a lógica estabelecida pela ambientação inicial. Méritos a uma direção de arte riquíssima em detalhes, preocupada com uma produção de objetos característicos do período, algo que se reflete na mobília, na tapeçaria e em cada cantinho dos suntuosos salões desta mansão. O que mais brilha, porém, é um trabalho de fotografia extremamente virtuoso e cheio de personalidade, que abusa dos marrons e da saturação amarelada para supor um clima de época. Se, no que está relacionado a mecânicas, o jogo nos lembra de muitas coisas comuns, é no audiovisual que o game transborda identidade.
A trilha musical é absolutamente perfeita, com passagens que abusam daquele blues arrastado, com destaque para um saxofone melancólico tão típico dos melhores filmes noir. São canções econômicas inevitavelmente charmosas, contrastando com as batidas intensas dos momentos de perigo. As passagens entre dimensões, muitas vezes inesperadas, conseguem arrepiar a espinha por um trabalho sonoro que evita o jump scare barato e, no lugar, traz o incômodo e um sentimento de ignorância com o que pode acontecer a seguir. Alone in the Dark brinca com a forma como gera expectativas e, por mais que algumas sejam cumpridas (como espalhar munição e recursos por um galpão aberto e inicialmente vazio), outras são subvertidas e, por isso mesmo, nos mantém interessados o tempo todo.
Completa o ótimo departamento sonoro do game o trabalho competente de vozes, principalmente de David Harbour e Jodie Comer, figuras conhecidas da TV e do cinema que interpretam ambos os personagens principais do game, mas sem deixar de lado o bom elenco de apoio que traz nuances bem perturbadoras para um bando de desajustados. Infelizmente não há vozes brasileiras, mas a boa notícia é que o jogo é totalmente localizado para o português (tirando um ou outro documento esquecido) em textos, menus e legendas, com uma ótima adaptação para o nosso idioma. Por outro lado, a modelagem das figuras humanas ainda carece de um pouco mais de refinamento, e mesmo com a captura de expressões e movimentos, tudo parece ainda bem artificial, principalmente quanto a olhos e bocas. Detalhes bobos, como a barba por fazer de Carnby piscando, podem incomodar os mais perfeccionistas, então não espere aqui o ápice do que a geração pode entregar nesse aspecto.
Com a campanha base durando algum em torno das nove a dez horas para quem, assim como eu, ficar procurando em cada cantinho por colecionáveis, há uma outra similaridade com seu espelho que, mesmo parecendo um pouco repetitivo, precisa ser destacado. Assim como em Resident Evil 2, é necessário jogar o game ao menos duas vezes para se conhecer toda a história, já que cada um dos protagonistas tem jornadas separadas. Coisas se repetem, soluções parecem mais óbvias na segunda jornada, mas há coisas que acontecem na primeira vez que parecem inexplicadas que serão elucidas pelo segundo ponto de vista, então mesmo que você tenha um favorito, certamente vai aproveitar a jogatina com Carnby e Hartwood para curtir o máximo que o jogo pode oferecer.
Outro detalhe que pode parecer bobo, mas que é necessário para um jogo com essa natureza nostálgica de resgate, é a capacidade da produção em reverenciar aquilo que tornou a marca conhecida. Aqui, falta uma galeria de imagens históricas mais recheada, sistemas comparativos e coisas assim, mas na Deluxe Edition há espaço para skins originais (que achei estouradas demais) para os heróis que, creio, poucos vão utilizar por tempo suficiente, mas ainda assim é uma ótima menção; e filtros para cenários que não são tão valorosos assim, mas que mesmo assim tem seu significado. E por fim, uma faixa de comentários da equipe de produção que vale a pena curtir.
Alone in the Dark é, em essência, um jogo esperado, e ainda assim surpreendente. O combate é robusto, a movimentação arrastada é coerente com quem estamos controlando, e a exploração é o que há de mais clássico no gênero. Menos escuro do que eu esperava, há poucas passagens que se aproximam do terror clássico, e a segurança do mundo real torna tudo menos apavorante do que os exemplos mais assustadores do mercado atualmente. Há sim momentos de maior impacto, com alguns artifícios que, potencializados por quem joga na tranquilidade da madrugada com headset, podem trazer uma certa tensão, mas assim como seus predecessores, é muito mais um game de mistério investigativo noir com elementos sobrenaturais do que um terror de sobrevivência tal como concebemos atualmente. E, como saldo, é um grande jogo que parece estar trazendo a franquia, tão surrada ultimamente, para os trilhos certos.
Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela THQ Nordic.
Veredito
Alone in the Dark pode não ser o mais inventivo game do gênero, mas é extremamente competente em tudo o que propõe. Combate, exploração e narrativa são excelentes, com uma belíssima ambientação noir, escorregando em poucos detalhes visuais e de ritmo. O survivor horror original voltou, e em grande forma!
Alone in the Dark
Fabricante: Pieces Interactive
Plataforma: PS5
Gênero: Survival Horror
Distribuidora: THQ Nordic
Lançamento: 20/03/2024
Dublado: Não
Legendado: Sim
Troféus: Sim (inclusive Platina)
Veredict
Alone in the Dark may not be the most inventive game of its kind, but it is extremely competent in everything it proposes. Combat, exploration and narrative are excellent, with a beautiful noir setting, slipping in few visual details and rhythm. The original survivor horror is back, and in a big way!