Análises

Painkiller – Review

Já se vão mais de 20 anos de que o primeiro Painkiller chegou aos PCs com uma proposta ousada em levar a jogabilidade clássica de tiro em primeira pessoa, hoje comumente chamada de boomer shotter, para uma experiência ainda mais alucinante, dinâmica e visceral. Agora, a franquia, que recebeu uma série de conteúdos extras até 2012, passa por um reboot completo prometendo renovara fórmula (ou ao menos atualizá-la) para alcançar um novo público.

A releitura nos leva diretamente para o Purgatório, reflexo de um passado em vida não muito digno. O histórico de violência, porém, nos permite sermos usados como ferramentas pelo próprio Criador, que nos dá uma oportunidade de redenção: lutar ao lado de outras almas sebosas como a nossa para derrubar o anjo caído Azazel que, ao lado dos seus três filhos nefilins, planeja um ataque à Terra utilizando-se de um verdadeiro exército de demônios.

Se a trama não parece exatamente original, ela se prova na prática uma mistura entre a dinâmica de progressão contra hordas de Doom e, principalmente, o enredo e a mitologia de Diablo, casamento que se reflete também na abordagem tonal da história do jogo. As referências são incríveis, mas podem acabar sendo muito mais um peso do que uma vantagem, já que o desenvolvimento narrativo do jogo é fraco, sem graça, e está longe ser considerado uma prioridade por seus desenvolvedores.

Tais similaridades se transportam também para os visuais e, principalmente, para a dinâmica acelerada do quebra-pau, e eu não me furtaria em dizer que o game poderia muito bem passar como uma expansão, ou mesmo um spin-off da modernização atual do próprio Doom. Pelo lado bom da coisa, esta nova versão de Painkiller é brutal na medida certa, valoriza a ofensiva, e está, mecanicamente, à altura da comparação.

A sua campanha single player é estruturada exatamente em três grandes mundos, um para cada rebento do grande chefão, e permite uma lógica não linear. Ou seja, dentre eles, podemos executar cada a próxima missão liberada na ordem que melhor nos servir. Por mais que seguir uma linha padronizada seja aconselhável pelo incremento da dificuldade de um para outro, a liberdade narrativa aberta é um sopro de frescor na comparação com outras propostas similares mais engessadas.

Antes de adentrar a loucura infernal, temos um tempo de preparação no hub central, onde adquirimos novos equipamentos, melhorias para as que já estão em nosso arsenal, além de cartas de tarô, que servem como modificadores consumíveis que podem melhorar algumas de nossas características, aumentar a coleta de recursos, dentre outras variáveis, de uma forma similar a sistemas roguelite.

Uma vez dentro do nível escolhido, sua progressão segue os parâmetros de arenas amplas interligadas de forma linear, sem labirintos ou backtracking. Funciona, aliás, muito bem como uma emulação para o modo multiplayer, principal espaço de permanência e longevidade da experiência, pois já no prólogo, nos unimos a dois companheiros bots que vão partilhar da jornada conosco, assumindo o papel de outros personagens dentre os que não escolhemos para nós.

São quatro os arquétipos a serem selecionados, cada qual com uma característica específica de contribuição para com o grupo: Ink, Void, Sol e Roch, com poderes respectivamente relacionados a energia, vida, poder e dano. Porém, se o aspecto estratégico na composição pode ser fundamental quando jogando ao lado de outras pessoas de verdade, aqui a escolha do nosso avatar normalmente segue o nosso perfil, e a CPU que lute para equilibrar as características do time.

Felizmente, ela o faz de uma forma muito satisfatória. Confesso que ao iniciar a jornada já com o tutorial nos ensinando a reviver companheiros e a atender seus pedidos por suporte, fiquei com receio do efeito Ashley e ter que ficar me preocupando com os amiguinhos enquanto tento sobreviver, mas o resultado foi um time com boa autonomia e um desempenho, mesmo nos níveis mais altos de dificuldade, melhores do que o esperado. De fato, eles estão lá para dar um bom apoio, não o contrário.

Já no multiplayer, a coisa é um pouco diferente, e a seleção estratégica se faz mais presente, tal como esperado. Compor bem o time é tão importante quanto uma comunicação eficiente que evite que todo mundo fique esperando que o outro execute uma ação de requisito. Mesmo assim, esqueça qualquer abordagem tática aqui, porque no final das contas, tudo se resume a alguma coordenação e muita matança, onde é cada um por si e ninguém por todos.

Para além da campanha – seja ela jogando sozinho e offline ao lado de bots, seja compartilhando a jornada com amiguinhos ou desconhecidos – há o chamado Modo Anjo Rebelde, que basicamente nos leva a um cenário novo que funciona com um sistema colaborativo de sobrevivência infinita, onde é necessário lutar contra infindáveis hordas e tentar ficar vivo pelo máximo de tempo possível.

Tudo isso funciona bem como uma estrutura sólida e contextual para um modelo de jogabilidade muito bem resolvido, que não reinventa o FPS em qualquer aspecto, mas executa sua premissa de forma exemplar. Atirar com o R2 sem usar o L2 para mirar é só a ponta de um iceberg bem mais profundo e estimulante.

Cada equipamento adquirido (sejam os primeiros, recolhidos no tutorial, sejam os demais comprados no hub do jogo com os recursos coletados durante as fases) tem dois movimentos principais, um mapeado para cada gatilho. Enquanto um usa a munição principal, o outro usa recursos especiais. A primeira arma, um lança-estacas, por exemplo, tem um disparador de granadas acoplado. Na prática, é basicamente ter duas em uma.

Podemos equipar dois armamentos diferentes a cada nova incursão (diferente da autonomia do original onde você levava quantas tivesse), além da nossa inseparável Painkiller, esta mesma que dá nome ao game, um estiloso motor com lâminas giratórias próprio para desmembrar qualquer coisa que surja em nosso alcance, algo que vai servir com o recurso corpo-a-corpo infinito tradicional para o qual apelamos sempre a munição acaba.

Já para potencializar a movimentação em campo de batalha, a movimentação é um verdadeiro amálgama de recursos performáticos, com um escorregão bem generoso que serve como uma espécie de dash para escapar de cantos e momentos onde ficamos encurralados; e um salto que demanda certo costume para ser usado com cautela para navegação e plataforma.

O mais útil desses movimentos, contudo, com certeza é o gancho que pode ser usado como impulso, no melhor estilo Batman Arkham, que serve tanto para atalho entre precipícios como também para alcançar pontos elevados, que como bem nos ensinou Obi-Wan Kenobi, são muito mais vantajosos em combate. O ponto de vista em primeira pessoa pode não ser o melhor para nos localizarmos espacialmente no ar, mas no jogo, funciona a contento.

A matança desvairada é um dos princípios básicos do jogo, que simplesmente nos faz uma simples exigência: destruir impiedosamente qualquer coisa que se mover. Todas as mecânicas de gameplay são muito bem planejadas para isso. Já as poucas formas de interação com o ambiente, nem tanto. Encaixar dispositivos, acionar interruptores ou conectar cabos é um pouco mais desajeitado que executar dezenas de pobres coitados de uma só vez, por exemplo.

Por outro lado, é de se destacar um bom desempenho de modo geral, mesmo com a profusão de inimigos em tela, muitos efeitos de partículas (como explosões, névoa, fogo para todos os lados) e coisas do tipo. Vez ou outra, rodando no Playstation 5 padrão, tive alguns engasgos, curiosamente em pontos não tão críticos assim, mas foram eventualidades a princípio. Já no on-line, tive um travamento completo, o que incomodou bastante pelo tempo investido na incursão, mas isso não voltou a se repetir. Que sejam exceções.

Também presenciei alguns bugs um pouco menos satisfatórios, como eventos não disparados corretamente. Em certa ocasião, adentrei uma arena e, após a voz do Criador anunciar que eu estava diante um desafio supremo, nada aconteceu, a horda não surgiu e precisei reiniciar a missão, já bem avançada. Desconfortável, mas não se repetiu. Outros probleminhas menores, como ficar preso em cantos e quinas também acontecem, coisa que uma atualização aqui e ali deve resolver.

Considerando o nível da qualidade gráfica apresentado, é até surpreendente que o polimento esteja neste patamar. Painkiller não fica atrás dos maiores expoentes do gênero em termos estéticos, e tem alguns dos melhores designs de criaturas que eu vi nesta geração. Há um ótimo trabalho de modelagem e composição de ambientes, com cenários multiníveis muito bem desenhados.

Há um trabalho especial com texturas e iluminação que evitam a sensação de mesmice, mesmo quando adentramos cavernas e outros espaços sufocantes. O horizonte tem seus atalhos disformes, e os abismos se aproveitam da infinitude da escuridão para não destinar esforços desnecessários, o que ajuda a otimizar esforços para os espaços onde efetivamente a ação está acontecendo.

É um jogo, portanto, graficamente eficiente e bem trabalhado, que favorece a ação sem abrir mão de um certo deslumbramento visual. Painkiller é um verdadeiro espetáculo ao equilibrar visuais magníficos com uma jogabilidade fluida e hipnotizante, sem que um destes aspectos prejudique o outro. Ainda assim, é notável que seu antecessor era muito mais plural em nos colocar em lugares menos óbvios para lidar com os monstros.

O mesmo pode ser dito sobre a trilha sonora, com um belo (e óbvio) heavy metal temperado com uma certa cadência melódica apoiada no estilo gótico e em batidas pesadas que merecem um bom headset ou uma providencial soundbar para graves. A mixagem oferece ritmo e frenesi, sem que a música concorra com os ótimos efeitos sonoros do tiroteio, das explosões e dos desmembramentos contínuos. Há um destaque em primeiro plano para as vozes de cada personagem, cada qual com suas frases de efeito típicas do cinema de ação mais desbocado dos anos 1980.

Em resumo, esta nova versão de Painkiller é a essência daquilo que inspirou suas versões originais, com uma pegada ao mesmo tempo moderna e nostálgica, mas sem tanta personalidade. Parte da diversão está nesta composição de um arsenal diversificado, inimigos distintos que cobram nossas melhores habilidades, e muita ação frenética tal como a mais recente reimaginação de Doom (e outras propostas semelhantes) nos ensinou a admirar. Porém, talvez possa ser um pouco refém das inevitáveis comparações exatamente por ousar pouco naquilo que o fazia único.

A visão do Purgatório como um inferno genérico e o foco na colaboração podem ser grandes tiros explosivos no pé para um jogo que se notabilizou pela identidade própria em campanhas memoráveis. Aqui, a história fica de lado para favorecer uma ampliação do escopo de público e o tom multiplayer, mesmo quando jogamos em modo solo. Talvez vender a alma para expandir o nicho seja um preço alto demais para a franquia pagar.

Painkiller está disponível para PlayStation 5, Xbox Series e PC (via Steam) com localização em legendas e menus para o português do Brasil. Esta análise é da versão PS5 e foi realizada com um código fornecido pela Saber Interactive.

Veredito

Tecnicamente, este reinício de Painkiller é um grande acerto, contando com belos visuais e uma jogabilidade alucinante, fluida, desafiadora e energética. Seu maior problema está em se parecer mais com a atual visão de DOOM do que com suas próprias origens, o que lhe custou sua identidade em detrimento a uma visão mais genérica e rasa de mercado.

75

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo