Contam as lendas que, lá pelas tantas dos anos 1980, um artista ainda iniciante chamado Tim Burton saiu da Walt Disney Studios supostamente pelo estilo sombrio do seu trabalho, algo que não estaria dialogando com o que o estúdio desejava naquele momento. Mesmo que, depois de alguns anos e da consagração como cineasta, ele tenha retornado para projetos exitosos como O Estranho Mundo de Jack e o live action de Alice no País das Maravilhas, havia uma curiosidade sobre como o seu estilo peculiar funcionaria conjugado à típica animação clássica das princesas da Disney.
Não sei se este pensamento chegou perto das inspirações por trás do desenvolvimento de Bye Sweet Carole, ou se os responsáveis pela desenvolvedora Little Sewing Machine, dos bem sucedidos jogos da série Remothered, têm qualquer afinidade com esta página curiosa da história do audiovisual. Mas é evidente que o projeto consegue explorar o traço artístico tão reconhecível em uma temática bem menos confortável que as obras mais conhecidas advindas da casa do Mickey.
Na trama, em pleno auge do movimento sufragista na Inglaterra que redefiniria algumas das verdades sociais estabelecidas até então, conhecemos Lana Benton, uma jovem à procura de sua amiga Carole Simmons, que havia desaparecido sem deixar vestígios. Suas investigações a levam a caminhos obscuros e eventos misteriosos, passando pelo sinistro orfanato Bunny Hall (onde muitos arquétipos de gênero se fazem presentes e são problematizados com o tom certo pelo game) até o reino de Corolla, comandado por uma criatura que parece muito interessada na moça.
É uma história, guardadas as devidas proporções características da mídia, que em nada deve ao material onde se inspira. O texto tem muitos méritos, mesmo sem grandes invencionices ou qualquer pretenção de soar pedante, melodramático ou exageradamente lírico, como correria o risco em mãos gananciosas demais. É um roteiro sutil, sensível no ponto certo, e muito bem estruturado para manter o interesse até a batalha final.
Magistralmente desenhado, o jogo nos transporta logo em seus primeiros instantes para uma animação tradicional não só pelas linhas e contornos da personagem nos remeterem diretamente a protagonistas como Bela, Ariel ou Jane, mas principalmente pelo clima de uma fábula moderna tão bem estabelecido pelos longas que marcaram as décadas de 1980 e 1990. Desenhos feitos à mão, ambientação incrível e a fluidez artesanal são latentes, sedimentando uma identidade bastante peculiar dentro do universo dos games.
Há de se destacar, assim, o belíssimo trabalho artístico desenvolvido aqui, com um alcance visual admirável. Podemos contemplar prados verdejantes e paisagens encantadoras, mesmo que o clima central da história seja focalizado nos soturnos corredores de construções decrépitas e nos ambientes labirínticos em um mundo triste e opressor. A magia e o encantamento, porém, são uma marca indelével do estilo emulado e não poderia ficar de fora.
O uso de uma palheta de cores difícil, com a composição de muitos marrons e cinzas, se aproveita bem da textura das animações inspiradoras da obra, e mesmo que a noção de profundidade não seja perfeita, deixando muitas vezes a dúvida entre o que está no fundo do cenário e o que está no mesmo plano da ação, funciona muito bem como concepção do espaço cênico.
Destaca-se ainda uma composição sonora que não só aproveita dos ruídos e dos bons diálogos falados, como também de canções orquestradas que servem bem à ambientação, mesmo que não sejam utilizadas como centro das atenções como seriam em filmes musicais.
A construção deste mundo – ou deste lugar estranho entre mundos – é essencial para o desenvolvimento do sistema de controle e solução de enigmas, algo com que Lana precisa lidar se quiser encontrar sua amiga e resolver os mistérios que circundam seu sumiço. É um jogo de navegação lateral em essência, com solução de puzzles contextuais como cerne na escapada e na sobrevivência.
A heroína, pois, não é das combatentes mais habilidosas, e seu chute de canela mal serve para abrir passagens ou afastar seres rastejantes, o que significa que é pela inteligência que ela deve encontrar seu caminho. Com mecânicas características de um bom point and click, portanto, a aventura soturna se desenvolve em um ritmo cadenciado, mas firme e constante até o desfecho.
As ações possíveis se baseiam em investigar informações, encontrar chaves e outros objetos de interesse, acionar interruptores e coletar itens que, sozinhos ou combinados, serão fundamentais para ultrapassar obstáculos, abrir passagens ou enfrentar certos inimigos inconvenientes. São poucos os trechos onde a agilidade e atributos de ação serão exigidos, salvo pelas constantes perseguições pelas quais passamos de tempos em tempos.
Sem poder enfrentar frontalmente grandes inimigos, muitas vezes nos deparamos com essa necessidade de fugir, seja correndo até despistar o perseguidor, seja nos escondendo em cantinhos escuros e segurando a respiração para não sermos encontrados. Fazer barulho pelo caminhar rápido ou pela distração em derrubar vasos e outras coisas quebráveis, portanto, é bem pouco recomendável.
A maior dificuldade aqui, para o uso dos controles, está nas opções de interação um tanto quanto desajeitadas. Ainda que Lana não seja um grande exemplar atlético e, portanto, ser meio atrapalhada é parte do seu charme e da concepção diegética de personagem, muitas das falhas passam pela confusão de comandos. Não são raros os momentos, por exemplo, onde esconderijos ficam ao lado de outros pontos de interesse com funções distintas para o mesmo botão. Você pode querer se esconder e, por alguns centímetros, acionar uma manivela, por exemplo.
Por mais que isso signifique uma atenção redobrada por parte do jogador na exatidão do comando, acaba sendo um fator involuntário de complicação das ações, algo que poderia facilmente ser resolvido com um melhor mapeamento de funções para cada botão do controle, considerando os frames valorosos demandados pelo estilo de fluidez da animação. Ou seja, um melhor trabalho de design de controle valorizaria o estilo adotado no jogo.
Por sua vez, o ciclo de gameplay de investigação furtiva e fuga poderia se tornar um problema pela repetição, não fossem duas possibilidades intrigantes e muito bem contextualizadas. A primeira delas é a capacidade de Lana em se transformar em um adorável coelhinho, perdendo algumas capacidades de manipulação de dispositivos, mas ganhando agilidade, velocidade e acesso a locais mais apertados. Isso garante uma camada extra na solução de alguns quebra-cabeças que contam com a alternância entre a forma humana e a animal.
A segunda é assumirmos, em certas passagens, o papel de um personagem curioso chamado Sr. Baesie, com um foco mais dedicado ao enfrentamento direto a perigos, inimigos e armadilhas. São trechos de respiro bem articulados no roteiro que garantem uma renovação de interesse e uma nova motivação para que sigamos em frente só por mais alguns minutinhos, que acabam se transformando em horas madrugada adentro.
Como um todo, há um certo conflito entre o estilo artístico e algumas exigências de maior ação e precisão de poucas passagens. Na maioria das vezes, as coisas são bem resolvidas com o bom e velho empirismo da tentativa e do erro, outras com QTEs pontuais, mas nem sempre as coisas são tão coesas assim. Ainda bem que Bye Sweet Carole evita um punitivismo exagerado, e a barra de energia agrega alguns tropeços antes de nos levar de volta ao checkpoint.
É, de um modo geral, uma experiência riquíssima e, curiosamente, encontra em elementos tão tradicionais e consagrados (como o estilo da animação, as mecânicas point-and-click de interação e de furtividade, e a temática de horror de sobrevivência), sua âncora de originalidade em um gênero que tem sofrido com o aspecto criativo. Com alguns conflitos entre seus pilares aqui e ali, é um jogo que vale um olhar mais cuidadoso mesmo daqueles que torcem o nariz para suas partes separadas pois, juntas, elas são capazes de dar vida a um belo e sombrio conto de fadas moderno.
Bye Sweet Carole está disponível para PS5, Xbox Series, Switch e PC (via Steam) com localização em legendas e menus para o português do Brasil. Esta análise é da versão PS5 e foi realizada com um código fornecido pela Maximum Entertainment.