Na corrupta e fedorenta Merdópolis, onde o único crime intolerável é não cometer crimes, quatro grandes gangues comandam o caos com bastante orgulho, garantindo que o lugar se mantenha firme no topo do ranking das cidades mais violentas (e absurdas) de todo o mundo.
No meio dessa desordem, há um sujeito que prefere levar a vida de acordo com suas próprias regras. Anger Foot é um cara desencanado que curte a tranquilidade de seu apartamento na companhia de sua esposa, assistindo filmes, consumindo guloseimas e venerando sua extravagante coleção de pisantes raros.
A vida sossegada do protagonista sofre um baque quando as principais gangues da cidade decidem roubar seus tão preciosos tênis. Inconformado com a situação, o protagonista se vê obrigado a fazer justiça com as próprias mãos (e também com seus pés), partindo literalmente para a bicuda para escancarar os esconderijos dos bandidos e derrotar cada um de seus líderes.
Toda essa premissa nonsense faz de Anger Foot um jogo de tiro em primeira pessoa bastante único. O título desenvolvido pela Free Lives, e publicado pela nada convencional Devolver Digital, mistura pancadaria exagerada, um senso de humor escrachado e uma estética visual claramente inspirada em títulos como Hotline Miami. A direção de arte abusa de cores fosforescentes e personagens cartunescos, criando um universo que mais parece uma versão psicodélica de um purgatório.
A comédia é um tema recorrente. Para isso, o game não tem vergonha de repetir continuamente piadas de duplo sentido, fazer referências de cunho sexual e explorar temas como o consumo de drogas lícitas e ilícitas. A cada cenário principal visitado, segredos podem ser encontrados nos muitos detalhes espalhados e diálogos com personagens em áreas de transição fornecem informações sobre o mundo e abusam de piadas de baixo calão.
A jogabilidade conta com elementos clássicos de um FPS arcade, com direito ao uso de armas tradicionais, como pistolas, submetralhadoras e escopetas, e outras um tanto peculiares, como um desentupidor de pias. Mas o grande diferencial é a habilidade de nosso justiceiro de sair chutando tudo que encontra pelo caminho. Isso inclui arrombar portas, quebrar vidraças e objetos de cenário e arrebentar a cara de seus inimigos.
Os cenários são curtos e lineares. Com isso, a jogabilidade se torna intensa. A trilha sonora que embala a ação abusa de elementos eletrônicos e psicodélicos para deixar tudo ainda mais acelerado, mas pode se tornar cansativa e não agradar os que não são fãs deste ritmo. Embora não haja uma obrigatoriedade para concluir cada mapa dentro de um limite de tempo, o design apertado da maioria das fases e a cadência do jogo faz com que haja um tom constante de urgência.
A maioria dos níveis pode ser concluída em poucos minutos, dependendo da abordagem escolhida pelo jogador, mas o game oferece desafios opcionais que rendem estrelas, as quais podem ser trocadas por novos pisantes para Anger Foot. Cada par de calçados desbloqueado traz modificadores únicos que alteram significativamente a jogabilidade. Desde conceder uma segunda chance após a morte até permitir chutar portas explosivas ou fazer com que os inimigos apareçam com cabeças gigantes, essa variedade amplia as possibilidades estratégicas e faz da experimentação um dos maiores atrativos do jogo.
Isso também contribui para o bom fator replay de Anger Foot. Muitos cenários trazem desafios que se contradizem, exigindo abordagens totalmente diferentes. Em um momento, você pode ter que finalizar uma fase usando apenas chutes; em outro, será preciso voltar ao mesmo mapa e eliminar todos os inimigos com tiros na cabeça. Além disso, algumas tarefas só podem ser cumpridas com pisantes específicos que são desbloqueados mais adiante na campanha, o que garante bons motivos para revisitar os primeiros mapas.
Os desafios que exigem completar as fases dentro de um tempo limite estão entre os mais complicados. Mesmo com a ajuda de energéticos e bebidas espalhados pelos cenários — que oferecem bônus temporários de velocidade —, buscar todas as estrelas pode se transformar em um verdadeiro teste de paciência e persistência para os que quiserem alcançar todas as conquistas.
Com certeza sua jornada por Merdópolis não será das mais simples. Grande parte dos cenários se resume a corredores estreitos, exigindo reflexos rápidos para lidar com inimigos que aguardam de tocaia a cada nova sala revelada. Da mesma forma que as armas e os chutes de Anger Foot são capazes de aniquilar seus adversários em segundos, os disparos e os golpes dos bandidos muitas vezes resultam em uma morte rápida ou, até mesmo, instantânea.
Há uma boa variedade na ambientação, com cada gangue sendo representada de acordo com sua temática. Esses mapas passam por condomínios residenciais, esgotos, boates, estações de metrô, prédios empresariais e até uma curiosa fábrica de pizzas. Apesar disso, a maneira como os níveis são estruturados cria uma inevitável sensação de repetição.
Talvez essa seja uma de minhas principais queixas sobre Anger Foot, pois além da estrutura dos mapas ser bastante similar, o jogo adota um formato de tentativa e erro que exige a memorização quase completa da posição dos inimigos para conseguir avançar pela maior parte dos cenários.
Como não há checkpoints, cada morte o levará de volta ao início da fase. Muitas vezes, a precisão dos tiros adversários e até algumas hitboxes exageradas me causaram a impressão de algumas mecânicas serem injustas, ao longo das oito horas necessárias para finalizar a campanha.
O jogo também conta com quatro batalhas contra chefes, que, apesar de trazerem mecânicas únicas e até criativas, destoam bastante dessa curva de dificuldade do restante da campanha. O que poderia ser um dos grandes destaques acaba deixando um gosto meio amargo, dada a facilidade dessas batalhas. Ainda assim, essas lutas cumprem o papel de quebrar o ritmo em meio à ação frenética dos demais cenários.
Os inimigos básicos até oferecem uma boa variedade no início, mas deixam de apresentar novidades após a metade da campanha. Uma abordagem mais interessante seria restringir certos tipos de inimigos às gangues específicas às quais pertencem. Em vez disso, praticamente todos os inimigos reaparecem ao longo do jogo, o que, apesar de ter uma justificativa dentro da história, acaba reforçando a sensação de repetição. A melhor forma de contornar isso é alternar constantemente entre armas e calçados, o que ajuda a manter a jogabilidade dinâmica durante a campanha.
Mas o que realmente atrapalha Anger Foot são os problemas de performance. Houve casos em que a taxa de quadros por segundo caiu consideravelmente, prejudicando minha experiência ao causar mortes involuntárias. Não é algo que o torne injogável, mas que pode levar a momentos de frustração. Além disso, em ocasiões nas quais muitas explosões aconteciam em sequência, o jogo chegou a congelar por mais de dez segundos. Isso aconteceu por mais de uma vez e ainda é algo que pode ser agravado caso esteja calçando um pisante com modificadores que potencializem mais explosões.
É uma pena que esses problemas técnicos atrapalhem o resultado final, pois Anger Foot, com sua proposta debochada e caótica, mesmo que tenha algumas mecânicas injustas, ainda é surpreendentemente viciante. Torço para que a desenvolvedora corrija essas falhas e entregue uma versão mais otimizada no futuro. Enquanto isso, o jogo certamente merece ser mantido no radar, pois trata-se de uma das experiências mais mirabolantes, estilosas e irreverentes lançadas recentemente.
Anger Foot está disponível para PS5 e PC. Esta análise é da versão PS5 e foi realizada com um código fornecido pela Devolver Digital.