Análises

Citizen Sleeper – Review

O poder maior da ficção científica não está na previsão do futuro nem em atirar em aliens e robôs, mas em mostrar novas formas de enxergar a(s) realidade(s). As melhores histórias de sci-fi sempre partem da pergunta “e se…?” e tentam descobrir até que extremo conseguem levar essa questão.

E se a exploração capitalista do trabalho chegasse a um ponto tão invasivo que as pessoas poderiam vender suas mentes para serem emuladas pelas corporações e instaladas em corpos artificiais? Não sendo pessoas, esses corpos com mentes funcionais não têm identidade própria, direitos e necessidade de saúde, segurança ou preservação, perfeitos para os trabalhos mais pesados, perigosos e incessantes.

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Eles trabalham enquanto seus antigos donos ficam adormecidos em criogenia por anos de suas vidas. O contrato diz que eles serão acordados quando a cópia for descartada e receberão o pagamento pelo sacrifício de sua própria cópia emulada. Como chamaremos isso? Esperteza? Tolice? Desespero? Benefício ao trabalhador ou escravidão institucionalizada para o lucro das mega-empresas que ditam as regras nos planetas que governam?

Você é uma dessas mentes emuladas, chamadas de Sleepers. Não lembra de quem já foi, ao ponto de não ter denominação sexual. Sim, você é protagonista não-binária, algo muito apropriado a quem parece ser, como diz a pequena Mina, “Robô”. Essa definição neutra é muito mais fácil de reproduzir em inglês, que, na verdade, é o único idioma disponível no jogo, mas tentarei mantê-la nesta análise mesmo assim.

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O que importa é que você fugiu da Essen-Arp, a empresa detentora da tecnologia que te criou. Você é uma propriedade intelectual, uma “entidade”, não-pessoa, não-cidadã. No entanto, sua fuga deixa livre para fazer o que nunca teve a chance: viver como a pessoa real que você sente que é.

A nave de carga onde se escondeu chegou ao ferro velho do Olho de Erlin, uma estação anelar no meio do espaço. Sem um mundo, sem um sol, a estação está sempre sob o manto escuro da noite e as pessoas precisam contar o tempo em ciclos ao invés de dias.

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O Olho é uma estação distante e independente, sem governo centralizado por uma corporação, como acontece nos planetas centrais. Isso não significa que há um vazio de poder, é claro; várias corporações aproveitam essa terra sem lei para conseguir mão de obra barata e atuar em segredo, disputando espaço com gangues, associações e comunidades. A vida é difícil e precária, mas nem por isso as pessoas deixam de prosseguir.

Isso é só o cenário de fundo no qual Citizen Sleeper acontece, o meio onde você deverá construir uma vida e criar vínculos, tornando-se um ponto na complexa rede de relações que subsiste naquela distopia habitada pelos que deixaram outras distopias para trás, em galáxias muito, muito distantes.

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As histórias do jogo falam da busca pelo ganha-pão, de esperanças, empatia e boa-vontade, de desilusões, angústias e arrependimentos. Fiquei impactado com certos destinos. Eu queria ver aquelas pessoas bem, dei meu máximo por ela e até falhei, mas continuei me empenhando em quem mais me cativou.

Tudo isso ocorre na forma de textos longos, bem escritos e envolventes. A maior parte do seu tempo em Citizen Sleeper será lendo. O visual tem pouca atenção, uma vez que o Olho aparece em polígonos, sempre à distância, tendo no trânsito de naves o único movimento real.

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Os diálogos, por sua vez, são ilustrados por belas imagens estáticas dos personagens, transmitindo muito bem as personalidades de cada um, bem como a criatividade e a decadência esperadas do meio cyberpunk espacial.

É um alívio que essas ilustrações existam e sejam bem feitas, mas tem o efeito colateral de deixar transparecer como seria bom que mais trechos fossem representados graficamente, como os diferentes ambientes do Olho e os momentos-chave das muitas histórias que encontramos na campanha.

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Não precisaria de muita coisa, apenas algo geral. Basta observar a imagem de capa para pensar como as proporções das naves, edifícios e becos da estação seriam melhor retratadas por meio desses desenhos que, ao invés de limitar nossa imaginação, apenas nos daria mais embasamento artístico para imaginar o restante.

No começo, os vários conceitos e tutoriais, assim como a interface baseada em textos, podem intimidar, mas os sistemas são mais simples do que parecem. Após alguns ciclos, você terá entrado na rotina do jogo, cuja lógica não é tão diferente da nossa: trabalhe, coma, encontre pessoas, faça escolhas e, quando acabar sua disposição, volte para casa e descanse.

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Na prática, funciona assim: todos os ciclos, você começa com uma rolagem de até cinco dados que dão os números que você tem para gastar em ações. A cada dia sua condição física piora, o que impacta na quantidade de dados e nos resultados das rolagens. Então, é preciso gastar dinheiro para comer e, de tempos em tempos, em estabilizadores, que são mais caros.

O dinheiro será obtido em diversas atividades nos diferentes lugares do Olho. Ou seja, você vai fazer muitos bicos para se virar, como na construção de uma nave e servindo em um bar. A maioria das atividades tem uma pontuação para ser preenchida ao realizá-las cotidianamente. Completar esse requisito faz aquela determinada subtrama avançar, como, nos exemplos citados, a situação dos trabalhadores da nave quando ela fica pronta e sua amizade com a dona do bar, que agora quer expandi-lo, gerando mais atividades.

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Completar atividades abre novas opções. Gaste suas ações conhecendo o mercado o suficiente e descobrirá um mercador de recursos. Coma algumas vezes no cozinheiro ambulante e ele pedirá um ingrediente para uma nova receita. Ajude um pai a cuidar da filha e ele poderá buscar um novo trabalho.

Essas cenas sempre são recheadas de boa prosa e algumas opções de diálogos, mas não espere por alternativas drásticas. O jogo mantém um tom coeso de interação humana e não tem a intenção de criar caminhos “bons” e “maus”. É você quem se adapta às suas limitações e às condições de vida no Olho, não o contrário. Faça o seu melhor para viver como puder. Escolha como quer gastar seus dados e com quem vai passar seu tempo.

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Os dados são os comuns, numerados de um a seis, o que estabelece as chances de uma atividade ter resultado bom, neutro ou ruim. Usar um seis garante 100% de chances de sucesso, mas um quatro ainda tem 25% de chances de falha, o que o jogo vai determinar de forma aleatória, como se um novo dado invisível fosse rolado naquele momento. Falhar implica em perda de condições e outras penalidades que podem influenciar naquele segmento narrativo.

Como em todo bom RPG, você tem atributos que influenciam nos resultados, mas nada de luta, dano e poderes psíquicos. Concluir certas ações e missões dá ponto extra para investir neles, o que também concede vantagens, como 20% de desconto em compras ao investir em Engage (interação). No início é possível escolher entre três classes que, na prática, só influenciam nos seus atributos iniciais, sem grandes consequências.

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Voltemos aos dados. E quando sua rolagem do ciclo vem baixa, com resultados um e dois? Não se preocupe, isso não te obriga a acabar o ciclo sem usá-los. Você ainda pode arriscar uma atividade, o que reflete a precariedade de como Sleeper vive, ou gastá-los nas opções que o jogo preparou para dar utilidade a esses números, que são na outra realidade do Olho.

Por trás da vida comum, Sleeper pode ver, como em sonho, um mundo eletrônico/virtual com circuitos e conexões que fazem de todo o Olho de Erlin uma rede de informações. Essas informações podem ser obtidas com pouco esforço (números baixos) e usadas como recursos em outras atividades, mas isso atrai a atenção do Caçador, uma entidade bizarra que parece um animal tentacular de cabeça luminosa que transita por ali, à procura de infratores como você, o que também é uma subtrama que avança em texto sempre que a coisa te encontra.

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Levar certas histórias até o fim também traz o final de Sleeper. Quando o jogo acaba pela primeira vez, não é necessário começar tudo de novo para tentar ver as aonde as outras histórias levarão. Você pode recarregar aquele ciclo e tomar a decisão  que evita o fim, continuando sua vida no Olho, mas não creio que dê para alcançar todos os finais dessa forma, pois alguns parecem ter oportunidades que podem ser perdidas definitivamente.

Há muito a explorar e fazer em Citizen Sleeper, ainda que tudo ocorra na forma de leitura e planejamento de uso dos dados, considerando riscos e benefícios. Assim como um videogame, Sleeper é uma vida emulada pela qual prezamos e que queremos ver prosperar, mas, como na vida real, seguimos em frente para descobrir que o futuro nos trará.

Jogo analisado no PS5 com código fornecido pela Fellow Traveller.

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