Enquanto o mundo sofria com um dos mais duros períodos da Segunda Guerra, a indústria cinematográfica era silenciosamente revolucionada por um gênio visionário sem experiência alguma na área. Era a primavera de 1941, e Cidadão Kane chegava aos cinemas.

O longa-metragem de Orson Welles não foi muito bem recebido comercialmente, mas logo em seus primeiros dias já surpreendeu positivamente os críticos. Seu real legado, porém, tornou-se evidente apenas mais tarde. Suas técnicas de cinematografia sem precedentes, suas mecânicas narrativas inovadoras e seu uso engenhoso de efeitos especiais e elementos sonoros uniam-se para formar um conjunto em que até mesmo os menores detalhes tinham uma finalidade definida na construção da história.

Por sua primazia técnica, Cidadão Kane abriu os olhos de uma indústria inteira para seu real potencial, e influenciou praticamente todas as grandes obras que vieram depois daquela conturbada primavera.

E a nossa crítica especializada insiste em, ano após ano, buscar "o Cidadão Kane dos videogames". Jornalistas do ramo vêm há pelo menos duas décadas lançando seus corpos desesperadamente contra quaisquer oportunidades de premiar um ou outro lançamento com esse título, sempre subestimando o peso absurdo que ele carrega. A lista dos cidadãos interativos inclui desde menções razoáveis como Super Mario 64 e Metal Gear Solid 2 até outras ridículas no nível de Braid e Journey, e não pára de crescer nunca. BioShock Infinite nem saiu das fraldas e já foi jogado no cesto.

Existem diversos problemas com essa comparação, mas descartando os demais, o mais superficial deles já é suficiente para descreditar os que a utilizam em seus textos. Trata-se do fato de ser impossível garantir que um jogo terá um legado comparável ao do filme de Welles assim que ele chega às lojas. Suponha que The Last of Us seja o melhor game da história, que revoluciona todas as mecânicas de seu gênero de maneira inteligente. Não digo que esse seja o caso, mas imagine a hipótese. Mesmo em um mundo em que isso é verdade, um crítico não pode afirmar horas após terminar a campanha pela primeira vez que ela mudou o rumo da indústria, pelo simples motivo de que essas mudanças de rumo levam anos para tornarem-se evidentes.

O próprio Cidadão Kane, apesar de bem recebido inicialmente, rapidamente desapareceu dos círculos de discussões entre críticos, esquecido. Seu real impacto só começou a ser observado anos depois, quando o filme chegou à França depois da Guerra, impressionando intelectuais como o filósofo Jean-Paul Sartre e o cineasta Jean-Luc Godard, e sua popularidade só alcançou o nível que tem hoje 15 anos após sua estreia original, quando o circuito televisivo norte-americano obteve seus direitos de transmissão.

Críticos têm o direito de especular, claro. Mas em um texto analítico, comparar um jogo ao longa é um comentário vazio. Quando Matt Kamen, do Empire, equipara The Last of Us à Kane, ele está apenas fazendo uma aposta, que teria o mesmo valor em uma resenha de Star Trek: The Video Game – ou seja: nenhum.

Em sua conclusão, Kamen afirma que o mais recente lançamento da Naughty Dog tem potencial para tornar-se "uma obra-prima que será relembrada de forma favorável por décadas." E isso evoca o segundo problema com as comparações: os críticos não entendem o que estão dizendo quando citam Kane.

Na cabeça de Kamen, falar que The Last of Us "pode ser o Cidadão Kane dos videogames" é o mesmo que dizer da forma mais hiperbólica possível que o jogo "é muito, mas muito legal." Mas Kane não foi apenas um filme muito, mas muito legal – e sim um filme que mudou tudo. Jornalistas utilizam essa frase como se ela fosse apenas o mais alto elogio que um jogo pode receber, quando na verdade ela deveria representar mais que isso. Se um dia o Cidadão Kane dos videogames aparecer de verdade, ninguém acreditará, de tão diluída que está a comparação.

Claro: nem todos os críticos culpados de assinar textos com a comparação são como Kamen. Alguns deles entendem a real importância de Cidadão Kane – seu aspecto revolucionário. Mas interpretam mal os motivos pelos quais o filme é aclamado. A trajetória do protagonista Charles Foster Kane é interessante e envolvente, mas a obra de Welles não impactou a indústria por sua trama, e sim pela forma com que ela era contada, assistida por elementos como tomadas sob ângulos nada convencionais e efeitos sonoros utilizados como em uma produção de rádio.

Sem sequer entrar no mérito da história de Grand Theft Auto IV, esse fato torna as comparações entre o jogo e o filme clássico mais risíveis que Hilary Goldstein declarando que a trama do jogo era "digna de Oscar." Isso porque os aspectos do cinema revolucionados por Kane têm como equivalentes na indústria de games as mecânicas de jogabilidade, e o título de mundo aberto da Rockstar falha miseravelmente até mesmo em executar muitas dessas de forma consistente. Revolucioná-las, então?

Em uma outra faceta do espectro das interpretações equivocadas está Michael Thomsen, que argumentou em uma rede de TV aberta norte-americana que Metroid Prime, sim, seria o Cidadão Kane dos videogames, porque o jogo é supostamente muito mais imersivo que todos aqueles que o precederam. Como evidências de sua tese, o jornalista citou como os jogadores sentem-se na pele da heroína Samus Aran por enxergarem o mundo através de seu visor, sendo capazes de ver gotas d’água escorrendo nele e o reflexo de seu rosto em explosões, e também por poderem conhecer mais sobre o mundo ao seu redor através de detalhes plantados nos cenários.

O erro de Thomsen está no fato de que nenhum dos exemplos que ele menciona são exclusivos dos videogames. Um visor com gotas d’água é algo que pode ser facilmente reproduzido na forma de uma pintura, de uma fotografia, ou até mesmo de um filme – e ele certamente não representa uma revolução em termos de jogabilidade, independentemente do quanto ele torne a experiência mais envolvente.

Ao estudar a fundo exemplos de textos que utilizam essa comparação, é fácil perceber que os críticos que a fazem não sabem do que estão falando. De uma forma ou de outra, é possível demonstrar como eles estão sempre equivocados sem nem precisar macular as famas e os méritos dos jogos analisados. É claro que The Last of Us e Metroid Prime são bons games. Mas de onde surge a ânsia de rotulá-los de Cidadão Kane dos videogames?

Claro: da crise de identidade nascida da imaturidade da indústria. Aqui entra aquele debate em torno da pergunta "videogames são arte?", que já está velho e surrado. Há no meio uma busca desesperada pela validação dos jogos como uma mídia adulta. Não artística! Antes de tudo, desenvolvedores, jornalistas e fãs estão atrás de ter as produções que se encaixam no rótulo de entretenimento interativo reconhecidas como algo a mais do que meros passatempos para crianças.

Alguns querem traçar paralelos entre diferentes ramos para que os games sejam mais respeitados. Mas nessa busca, perde-se o foco na realidade de que cada mídia é única. Para a tristeza de Goldstein, uma trama de jogo nunca será "digna de Oscar" simplesmente por não estar sendo apresentada no formato de um filme. Da mesma forma, não existe e nunca existirá um Cidadão Kane dos videogames. Pelo contrário: na indústria dos jogos, podem existir vários Kanes – e, logo, nenhum. Não é possível que uma única produção tenha na nossa mídia um impacto tão grande quanto o filme de Welles teve na dele, porque a mídia interativa tem como sua maior especificidade uma diversidade descomunal.

Super Mario Bros. revolucionou a forma com a qual jogos de plataforma 2D eram produzidos, enquanto Super Mario 64 construiu a base para o gênero no âmbito tridimensional. The Legend of Zelda: Ocarina of Time, EverQuest, Grand Theft Auto III… Todos fizeram suas pequenas revoluções e deixaram um legado enorme. Mas nenhum deles conseguiu, e nenhum futuro lançamento jamais conseguirá ser o único marco divisor de águas para a indústria, porque ela apresenta suas produções em um número infindável de formatos diferentes que pouco compartilham entre si. Ela é muito mais diversa que a indústria cinematográfica.

Comparam jogos à Cidadão Kane com a noção errada de que sua chegada às telonas foi o que legitimizou a produção cinematográfica e que, de forma semelhante, haverá um título específico que mudará a percepção do mundo em relação à produção de games. Heavy Rain, Red Dead Redemption e muitos outros tiveram suas chances e vários ainda terão, mas esse dia jamais chegará. Essa busca dos jornalistas pela rotulação do “Cidadão Kane dos videogames” é fútil, e a contraprodutiva fraqueza dos que não resistem e convocam Orson Welles em suas críticas serve apenas para exemplificar a imaturidade da indústria.

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